Apostas online: um novo desafio para o Direito de Família
6 de março de 2025, 17h14
O crescimento das plataformas de jogos de apostas online no Brasil tem provocado discussões sobre os impactos sociais, econômicos e legais. Entre os diversos ramos do Direito, o Direito de Família é um dos que mais sofrem reflexos, visto que a relação entre o jogo e as questões familiares pode ser complexa e delicada, envolvendo desde a dissolução de uniões até a proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Este artigo explora os principais pontos de tensão entre os jogos de apostas online e o Direito de Família, buscando soluções na legislação brasileira.
Contexto legal dos jogos de apostas online no Brasil
Após alguns anos no limbo jurídico, o mercado de apostas online no Brasil finalmente recebeu a devida regulamentação. A Lei nº 14.790/2023, sancionada em 2024, passou a regulamentar as apostas esportivas online (bets) no Brasil, estabelecendo regras para a operação das empresas e a tributação dos apostadores. Com a nova legislação, as casas de apostas devem obter licença do governo para operar legalmente no país e pagar impostos sobre suas receitas. Além disso, os apostadores também serão tributados sobre os prêmios ganhos, o que formaliza a atividade e gera arrecadação para o governo.
Com a nova lei, o Brasil deu um passo importante na legalização e fiscalização das apostas esportivas, garantindo mais segurança e transparência no setor, prevenindo fraudes e protegendo os consumidores. Porém, a discussão da regulamentação não priorizou a análise do impacto social e da saúde mental, resultando em consequências negativas para diversas áreas da vida familiar.
A influência das casas de apostas no futebol brasileiro é evidente, com patrocínios estampados nas camisas dos principais clubes da Série A. Essa presença, embora traga recursos financeiros para os times, levanta questionamentos sobre a mensagem que está sendo transmitida, especialmente para os jovens.[1]
O contraste com a Premier League, que baniu patrocínios de apostas das camisas dos clubes, ilustra a divergência de opiniões sobre o tema. Enquanto no Brasil as apostas esportivas são vistas como uma importante fonte de recursos para o futebol, na Inglaterra a preocupação com a saúde pública e a imagem do esporte levou à proibição.[2]
Essa disparidade evidencia a necessidade de um debate mais amplo sobre os riscos associados à proliferação das apostas esportivas, especialmente no contexto brasileiro, onde a indústria está em expansão, mas ainda carece de mecanismos de controle efetivos. É crucial que a sociedade esteja atenta para os efeitos negativos e que medidas sejam tomadas para proteger os indivíduos e as famílias dos problemas relacionados ao jogo compulsivo.
Apostas online no orçamento da família
O mercado de apostas esportivas no Brasil cresceu 89% entre 2020 e 2024, movimentando entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões em 2023. Esse crescimento tem afetado o orçamento das famílias, especialmente das classes mais baixas, com muitos realocando dinheiro que antes era destinado a investimentos, alimentação e lazer para as apostas.

Segundo um estudo da PwC e Instituto Locomotiva, 52% dos consumidores deixaram de guardar dinheiro em poupança, enquanto 48% reduziram gastos com bares, restaurantes e delivery para apostar, impactando o comércio. Cerca de 33 milhões de brasileiros de baixa renda já apostaram, sendo que 22 milhões fazem isso regularmente.
As apostas já representam até 76% dos gastos familiares com lazer e 5% dos gastos com alimentação, sendo 12 vezes maiores que os gastos com cinema e 40 vezes superiores à compra de ingressos para jogos de futebol. Parte do dinheiro retorna à economia através dos vencedores, mas a maioria é reinvestida em novas apostas, beneficiando as plataformas, que retêm cerca de 12% do valor apostado como lucro.[3]
Como visto, as apostas online tem potencial de gerar diversas consequências jurídicas. E para melhor ilustrar como isso se dá na prática, exploro os principais pontos sobre como isso acontece no âmbito do Bolsa Família, do regime de bens e partilha do patrimônio, da pensão alimentícia, da guarda e convivência com filhos.
Bolsa Família
Os jogos online afetam principalmente o Bolsa Família, que, segundo dados do Banco Central, dos 14,1 bilhões de reais distribuídos mensalmente pelo governo, 3 bilhões foram repassados para as “bets”. Esses dados são ainda mais assustadores quando levamos em conta que eles se referem apenas aos pagamentos via pix. [4]
O uso do Bolsa Família para jogos de apostas online tem gerado preocupações sociais e políticas, já que o programa é destinado a garantir a subsistência de famílias em situação de vulnerabilidade. Casos de pessoas utilizando o benefício para apostar levantam debates sobre, principalmente, o vício em jogos e como isso afeta ainda mais as famílias das classes C e D.
Regime de bens e partilha de patrimônio
Em regimes de casamento como a comunhão parcial ou universal de bens, os prejuízos financeiros decorrentes de apostas podem gerar questões sobre a administração do patrimônio comum.
Por exemplo, um cônjuge que realiza apostas e perde consideráveis quantias pode ser acusado de dilapidação do patrimônio familiar, prejudicando o bem-estar da família. De acordo com o artigo 1.667 do Código Civil, a administração do patrimônio comum deve ser exercida em prol da família, e comportamentos que prejudiquem esse princípio podem ser questionados judicialmente.
Há inúmeros casos, inclusive, de cônjuges se endividando sem que o outro saiba, escondendo o vício e comprometendo o patrimônio da família, o que pode ensejar ações de divórcio, medidas cautelares para proteger o patrimônio que ainda resta ou até mesmo ações de indenização por danos morais e patrimoniais.
Além disso, o Código Civil prevê regras para sucessão patrimonial. Se um indivíduo dissipa seu patrimônio em apostas online, pode reduzir consideravelmente o montante da herança dos herdeiros legítimos. Em situações extremas, pode-se discutir a anulação de doações feitas a terceiros se configurado prejuízo ao patrimônio sucessório.
Pensão alimentícia
A fixação e o cumprimento de obrigações alimentícias também podem ser afetados por situações envolvendo jogos de apostas. Um genitor que utiliza seus recursos financeiros para apostas em detrimento da obrigação de pagar pensão alimentícia pode ser responsabilizado civil e criminalmente.
Se o genitor deixar de pagar a pensão alimentícia de forma reiterada e injustificada, ele poderá ser denunciado criminalmente pelo crime de abandono material.
O genitor que deixa de pagar a pensão alimentícia por causa de jogos de azar pode ser acionado judicialmente em uma ação de execução de alimentos, na qual o juiz poderá determinar o pagamento dos valores em atraso, acrescidos de juros e correção monetária, e até mesmo penhorar bens do devedor para garantir o pagamento.
Ou ainda, se for demonstrado que o genitor que deveria pagar a pensão tem recursos financeiros, mas os utiliza de forma imprudente, como em apostas, o outro genitor pode pedir judicialmente a revisão do valor da pensão, ajustando-o para um valor mais adequado à realidade financeira da pessoa que paga. Isso pode ser feito através de uma petição com a comprovação dos gastos excessivos.
O artigo 1.694 do Código Civil assegura o direito aos alimentos, independentemente das dificuldades financeiras do devedor, e a omissão deliberada em cumprir esse dever pode levar à prisão civil do devedor, conforme artigo 528 do Código de Processo Civil.
Guarda e convivência com os filhos
Em casos de disputa de guarda, a prática excessiva de apostas online pode ser utilizada como argumento para questionar a capacidade de um genitor de cuidar do filho. O princípio do melhor interesse da criança, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no artigo 1.583 do Código Civil, exige que o genitor assegure um ambiente saudável, estável e livre de riscos para o desenvolvimento da criança. Situações em que o comportamento compulsivo com jogos online compromete a rotina ou a segurança da criança podem levar o juiz a modificar a guarda ou impor restrições ao convívio.
Dissolução do casamento e apuração de culpa
Apesar de o divórcio não depender mais da apuração de culpa, comportamentos que prejudicam a convivência familiar podem ser relevantes na partilha de bens ou em outras decisões patrimoniais. Um cônjuge que demonstrar prejuízo financeiro em razão de comportamentos compulsivos do outro pode requerer medidas protetivas ao seu patrimônio.
Proteção de menores e exposição ao jogo

O acesso de menores a plataformas de jogos online é uma questão crescente de preocupação. Pais que permitem ou negligenciam o envolvimento de filhos menores em jogos de apostas podem ser responsabilizados civilmente, além de sofrerem consequências em disputas de guarda. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a proteção integral dos menores, sendo dever dos pais evitarem situações que comprometam sua formação moral ou psicológica.
Nesse sentido, recentemente, entidades católicas, representadas pelo padre Júlio Lancellotti e Frei David, moveram uma ação civil pública contra empresas de apostas online, acusando-as de permitir acesso irrestrito de menores, sem mecanismos eficazes de controle de idade. A ação destaca o uso de celebridades, que atraem jovens para as plataformas. Alegam que a ausência de barreiras tecnológicas e o apelo emocional gerado pelas celebridades aumentam o risco de exposição precoce a práticas de jogos de azar.[5]
As entidades pedem a suspensão das atividades das empresas até que mecanismos eficazes para bloquear o acesso de menores sejam implementados. O MPF manifestou apoio à suspensão das plataformas, citando os danos psicológicos e financeiros às crianças e a violação de leis como o ECA e a Lei das Bets (Lei 14.790/23).
O papel do advogado em situações envolvendo jogos de apostas e famílias
O advogado desempenha um papel essencial na defesa dos interesses das partes envolvidas em situações que envolvem jogos de apostas online e questões de direito de família.
Ele é responsável por orientar sobre os direitos e deveres patrimoniais, esclarecendo como o regime de bens e a responsabilidade patrimonial podem ser impactados por perdas financeiras decorrentes de apostas. Além disso, o advogado auxilia em disputas de guarda, demonstrando como comportamentos relacionados ao jogo podem afetar o ambiente familiar e o bem-estar das crianças, e também auxilia na fixação ou revisão de pensão alimentícia, garantindo que as necessidades da família sejam atendidas, mesmo em cenários de dificuldades financeiras causadas pelo jogo.
Portanto, os impactos diretos e indiretos das apostas online no direito de família exige uma análise jurídica criteriosa em cada caso. Desde a partilha de bens até questões de guarda e pensão alimentícia, o comportamento relacionado ao jogo pode gerar conflitos que necessitam de intervenção judicial. Diante da crescente popularidade das plataformas de apostas online, cabe aos operadores do Direito garantirem que o princípio do melhor interesse da família e, principalmente, das crianças, seja sempre preservado.
[1] Fonte: Meio & Mensagem. “Bets dominam patrocínios dos clubes da Série A do futebol brasileiro.” Disponível:https://www.meioemensagem.com.br/marketing/bets-dominam-patrocinios-dos-clubes-da-serie-a-do-futebol-brasileiro.
[2] Fonte: Lance. “Premier League proíbe patrocínios de casas de apostas na frente das camisas.” Disponível:https://www.lance.com.br/lancebiz/premier-league-proibe-patrocinios-de-casas-de-apostas-na-frente-das-camisas.html.
[3] PwC Brasil. “Parte do orçamento familiar no Brasil é transferido para apostas esportivas e setor de varejo sente o impacto.” 26 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.pwc.com.br/pt/sala-de-imprensa/release/pwc-parte-do-orcamento-familiar-no-brasil-e-transferido-para-apostas-esportivas-e-setor-de-varejo-sente-o-impacto.html.
[4] Revista Piauí. “A farra das apostas.” Edição de janeiro, 2025.
[5] Migalhas. “Padre Júlio Lancellotti e Frei David movem ação milionária contra bets.” Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/423544/padre-julio-lancellotti-e-frei-david-movem-acao-milionaria-contra-bets.
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