Opinião

Preliminares do recurso e preliminares da causa: análise doutrinária e processual

Autor

  • Carlos Jar

    é servidor efetivo do TJ-AL assessor judiciário do gabinete do des. Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho (TJ-AL) e integrante da Comissão Permanente de Revisão e Aperfeiçoamento do Regimento Interno do TJ-AL.

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9 de setembro de 2024, 15h20

1. Introdução

No âmbito do Direito Processual Civil brasileiro, a compreensão das questões preliminares assume papel fundamental para o adequado desenvolvimento do processo e, em particular, para o julgamento dos recursos. Neste contexto, emerge como tema de relevância a distinção entre as preliminares do recurso e as preliminares da causa, cuja análise aprofundada se faz necessária para a correta aplicação das normas processuais e para a efetivação da justiça.

Este artigo se propõe a examinar detalhadamente essa distinção, fundamentando-se nas contribuições doutrinárias de renomados processualistas brasileiros, com especial atenção às obras de José Carlos Barbosa Moreira, Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. A partir dessa base teórica, buscar-se-á elucidar as características, funções e implicações práticas de cada categoria de preliminar no sistema processual civil contemporâneo.

2. Conceituação e classificação das questões preliminares

2.1 Questões preliminares: aspectos gerais

As questões preliminares, juntamente com as questões prejudiciais, integram o gênero das questões prévias, caracterizando-se pela prioridade que demandam no julgamento da causa. Conforme lecionam Marinoni e Mitidiero [1] (2021), as questões preliminares podem ser materiais (de mérito) ou processuais, ambas abrangidas pelo artigo 938 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015).

A essência das questões preliminares reside em sua capacidade de impossibilitar ou tornar desnecessária a análise das questões posteriores. Em outras palavras, as questões preliminares condicionam a própria colocação das questões subsequentes ao conhecimento do órgão jurisdicional.

2.2 Preliminares do recurso

As preliminares do recurso, conforme a precisa definição de José Carlos Barbosa Moreira [2] (2009), são “as questões de cuja solução depende a possibilidade de julgar-se o mérito da impugnação”. Estas questões estão intrinsecamente ligadas à admissibilidade do recurso, abrangendo aspectos como:

  1. Competência do órgão ad quem;
  2. Cabimento do recurso;
  3. Legitimação para recorrer;
  4. Interesse recursal;
  5. Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer;
  6. Tempestividade;
  7. Regularidade formal; e
  8. Preparo.

A análise dessas preliminares é crucial para determinar se o recurso poderá ou não ser conhecido pelo órgão julgador. Como observam Didier Jr. e Cunha [3] (2024), as preliminares do recurso compõem o juízo de admissibilidade recursal, que precede logicamente o juízo de mérito do recurso.

2.3 Preliminares da causa

Por outro lado, as preliminares da causa, também denominadas preliminares ao julgamento do mérito, são aquelas que condicionam o exame do mérito da própria demanda. Marinoni e Mitidiero [4] (2021) exemplificam essa categoria com os pressupostos processuais, a legitimidade para a causa e o interesse de agir.

Spacca

É fundamental ressaltar que, no âmbito recursal, as preliminares da causa podem se apresentar como questões pertinentes ao mérito do recurso. Barbosa Moreira [5] (2009) ilustra essa situação com o exemplo da apelação interposta contra sentença que declarou o autor carecedor de ação por falta de legitimação para agir. Neste caso, ao resolver a questão da legitimidade, o órgão ad quem estará decidindo o mérito do recurso, e não sua admissibilidade.

3. Distinção entre preliminares do recurso e preliminares da causa

A distinção entre preliminares do recurso e preliminares da causa é de suma importância para a correta condução do processo e para a adequada prestação jurisdicional. Conforme ensina Barbosa Moreira [6] (2009), é necessário evitar a confusão entre essas categorias, frequentemente observada na prática forense.

3.1 Natureza e função

As preliminares do recurso, como já mencionado, dizem respeito à admissibilidade do recurso. Sua função é determinar se o recurso preenche os requisitos necessários para ser conhecido e, consequentemente, ter seu mérito apreciado. Por outro lado, as preliminares da causa estão relacionadas a questões que podem obstar o julgamento do mérito da própria demanda, independentemente do recurso em si.

3.2 Momento de análise

Didier Jr. e Cunha [7] (2024) ressaltam que as preliminares do recurso devem ser analisadas antes de qualquer outra questão, pois delas depende a possibilidade de o tribunal examinar o mérito recursal. Já as preliminares da causa, quando suscitadas em sede recursal, integram o próprio mérito do recurso e só serão analisadas após a superação das preliminares recursais.

3.3 Consequências do acolhimento

O acolhimento de uma preliminar do recurso, como explica Barbosa Moreira [8] (2009), pode resultar no não conhecimento do recurso ou, em casos específicos, na remessa dos autos a outro órgão julgador. Em contrapartida, o acolhimento de uma preliminar da causa em sede recursal leva ao provimento ou desprovimento do recurso, a depender de quem o interpôs, e não ao seu não conhecimento.

3.4 Equívocos comuns na prática forense

É importante ressaltar que a distinção entre preliminares do recurso e preliminares da causa nem sempre é observada com o devido rigor na prática forense. Barbosa Moreira [9] (2009, p. 702-703) alerta para um equívoco recorrente:

“Lê-se com certa frequência, em minutas de julgamento e em acórdãos concernentes a recursos, que o órgão julgador, “preliminarmente”, rejeitou a arguição de ilegitimidade ad causam, a de prescrição, e assim por diante. Tal modo de falar deve ser evitado como equívoco; há confusão entre preliminar do recurso e preliminar da causa. A questão de ilegitimidade ou a da prescrição pode constituir o próprio objeto da impugnação do recorrente, de modo que, depois de decidi-la, e ressalvada a hipótese do art. 515, § 3º, o órgão julgador já nada mais teria que apreciar. O recurso, insista-se, terá sido julgado no mérito.”

Este trecho evidencia a importância de se compreender corretamente a natureza das questões em análise no âmbito recursal. Questões como ilegitimidade ad causam ou prescrição, quando discutidas em sede de recurso, não são preliminares do recurso, mas sim questões de mérito do próprio recurso, ainda que possam ser consideradas preliminares da causa em primeira instância.

A correta identificação da natureza dessas questões é fundamental para a adequada estruturação das decisões judiciais e para a compreensão precisa do alcance e dos efeitos do julgamento realizado pelo órgão recursal.

3.5 Exemplos de questões de mérito do recurso

Para melhor compreensão da distinção entre preliminares do recurso e questões de mérito recursal, é importante destacar alguns exemplos de matérias que, embora possam ser consideradas preliminares da causa em primeira instância, constituem mérito do recurso quando discutidas em sede recursal. Entre estas, podemos citar:

  1. Cerceamento de defesa: Quando alegado em recurso, o cerceamento de defesa não é uma preliminar do recurso, mas sim uma questão de mérito recursal. O recorrente argumenta que houve violação ao seu direito de defesa durante o processo, o que, se acolhido, pode levar à anulação da sentença e ao retorno dos autos à instância inferior para nova instrução processual;
  2. Prescrição: Embora seja uma preliminar de mérito da causa, quando discutida em sede recursal, a prescrição integra o mérito do recurso. Se o recurso versa sobre a ocorrência ou não da prescrição, o tribunal, ao analisá-la, estará julgando o mérito recursal, e não uma questão preliminar à admissibilidade do recurso; e
  3. Decadência: De maneira similar à prescrição, a decadência, quando objeto de discussão em recurso, compõe o mérito recursal. O tribunal, ao decidir sobre a ocorrência da decadência, estará provendo ou desprovendo o recurso, e não realizando um juízo de admissibilidade.

Estes exemplos reforçam a lição de Barbosa Moreira [10] (2009) sobre a necessidade de distinguir claramente entre as preliminares do recurso e as questões que, embora possam ser preliminares da causa, constituem o próprio mérito da impugnação recursal.

Didier Jr. e Cunha [11] (2024) corroboram esse entendimento ao afirmarem que:

“O mérito do recurso pode não coincidir com o mérito da causa. É possível que uma questão seja de admissibilidade da causa e, ao mesmo tempo, seja uma questão de mérito do recurso. Se o juiz, por exemplo, profere uma decisão sobre sua competência, está integrará o mérito do recurso, embora não seja o mérito da ação. Jamais uma mesma questão pode ser de admissibilidade e de mérito em relação a um mesmo procedimento. Na prática, não se costuma tomar o cuidado de atentar para essa sutileza. A “legitimidade extraordinária” é um requisito de admissibilidade do processo, mas pode ser questão de mérito de um recurso em que se discuta a legitimidade de uma das partes”.

Essa distinção é crucial para a correta estruturação das decisões judiciais e para a compreensão precisa do alcance e dos efeitos do julgamento realizado pelo órgão recursal. Ademais, tem implicações práticas relevantes, como na contagem de prazos e na definição dos efeitos da decisão recursal.

4. Ordem de apreciação das questões e primazia do mérito

O CPC/2015 trouxe importantes inovações quanto à ordem de apreciação das questões preliminares e de mérito. O artigo 488 do CPC/2015 permite ao órgão jurisdicional julgar o mérito a favor de quem o acolhimento de determinada preliminar favoreceria. Marinoni e Mitidiero [12] (2021) destacam que essa previsão é uma manifestação do princípio da colaboração e da primazia do exame do mérito.

Essa flexibilização da ordem de apreciação das questões representa uma evolução em relação ao sistema anterior, no qual, como lembra Barbosa Moreira, prevalecia o dogma da absoluta prioridade das preliminares processuais sobre o mérito da causa.

5. Conclusão

A distinção entre preliminares do recurso e preliminares da causa é um tema de grande relevância para a compreensão e aplicação do direito processual civil. Enquanto as primeiras dizem respeito à admissibilidade do recurso, as segundas se relacionam com o mérito da causa e, quando apreciadas em sede recursal, integram o próprio mérito do recurso.

A correta identificação e tratamento dessas categorias de preliminares são essenciais para a efetividade da prestação jurisdicional e para a concretização dos princípios processuais consagrados no CPC/2015, notadamente o da primazia do julgamento de mérito.

O estudo aprofundado dessa temática, à luz das contribuições doutrinárias aqui apresentadas, revela-se fundamental para a formação e atuação dos operadores do direito, propiciando uma compreensão mais acurada do sistema recursal brasileiro e contribuindo para a realização dos fins de justiça do processo.

 


Referências

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 21. ed. Salvador: JusPodivm, 2024, p. 187.

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 926 ao 975. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 230-232.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Volume V: arts. 476 a 565. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 702-703.

[1] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 926 ao 975. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 230.

[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Volume V: arts. 476 a 565. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 702-703.

[3] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 21. ed. Salvador: JusPodivm, 2024, p. 187.

[4] MARINONI; MITIDIERO, 2021, p. 231.

[5] MOREIRA, 2009, p. 702-703.

[6] MOREIRA, 2009, p. 703.

[7] DIDIER JR., CUNHA, p. 187.

[8] MOREIRA, 2009, p. 702-703.

[9] MOREIRA, 2009, p. 703.

[10] MOREIRA, 2009, p. 703.

[11] DIDIER JR., CUNHA, p. 187

[12] MARINONI; MITIDIERO, 2021, p. 230-232.

Autores

  • é servidor efetivo do TJ-AL, assessor judiciário do gabinete do des. Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho (TJ-AL) e integrante da Comissão Permanente de Revisão e Aperfeiçoamento do Regimento Interno do TJ-AL.

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