Abolição da escravatura: feliz rebeldia ao federalismo centralizador brasileiro
3 de setembro de 2024, 13h25
O Brasil, a despeito de ser um Estado federal, tal como os Estados Unidos, deste muito se diferencia no tocante ao nível de autonomia dos entes federados. A distinção decorre da formação histórica destes dois países.
Na América do Norte, 13 colônias inglesas relativamente autônomas, quando do avanço das discussões em torno da independência, tiveram, como um dos pontos nevrálgicos, a preocupação acerca da preservação da autonomia dos entes federados na fusão para a criação de uma única nação.
Hamilton, em O Federalista, relata o temor em se criar um governo central excessivamente poderoso, com a absorção de poderes residuais então conferidos aos estados. Porém, rechaçou tal possibilidade devido à ausência de disposição do primeiro em usurpar funções próprias das legislações locais. [1] Como resultado, as partes se uniram, dando origem a um país cujo nome faz jus a este processo de formação, típico de um federalismo de agregação, aglutinação ou centrífugo: Estados Unidos da América.
O Brasil, por seu turno, experimentou processo absolutamente inverso. A colonização portuguesa, consolidando o território conquistado, deu origem a capitanias divididas pelo governo lusitano. Posteriormente, a independência acabou por converter estas em províncias, geridas por um presidente, nomeado pelo imperador, removível quando este entender “assim convém ao bom serviço do Estado” (artigo 165, da Constituição de 1824).
A proclamação da República transformou as províncias em estados, nos termos do artigo 1º, da Constituição de 1891. Esta, curiosamente, nominava o país “República dos Estados Unidos do Brasil”, a despeito de longe estar de ser uma união de estados para formação de uma federação. Na verdade, trata-se de divisão feita sob a chancela do poder central, “de dentro para fora”, característico do chamado federalismo por segregação ou desagregação.
A distinção vai muito além de reminiscência histórica. Nos Estados Unidos, dado o alto grau de autonomia e desenvolvimento de cada colônia, estas impuseram o respeito e preservação da grande maioria de suas competências desde o seu nascedouro, concedendo apenas algumas poucas delas ao ente central, indispensáveis à unidade nacional. Já no Brasil, a despeito das autonomias concedidas nas diversas Constituições brasileiras aos estados-membros, estas o foram por obra do governo federal. Deste modo, é natural que este último conservasse consigo a maior gama de atribuições, delegando aos entes descentralizados apenas aquilo que bem lhe aprouvesse.
A título comparativo, verifica-se a competência exclusiva da União para legislar, dentre outras tantas matérias, sobre direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral e do trabalho (artigo 22, inciso I, CRFB), que, assim, são uniformes em todo o território nacional. A Constituição também uniformizou a estrutura dos Poderes Executivo e Legislativo estaduais, impondo o unicameralismo (Assembleia Legislativa), governador e deputados eleitos para mandatos de quatro anos (artigos 27, § 1º e 28, caput), inclusive impondo o número de deputados por estado, de acordo com o respectivo contingente populacional (artigo 27, caput).
Apesar de os estados serem regidos por suas respectivas leis e constituições, no exercício do chamado poder constituinte derivado decorrente, estas devem observar os princípios da Constituição (artigo 25, caput). A despeito da vaguidade da previsão, a exegese do Supremo Tribunal Federal estende-se muito além do respeito a meros princípios, mas a necessidade de seguir rigidamente o modelo federal na seara dos Estados, sob pena de inconstitucionalidade por ausência de simetria.

Os Estados Unidos, por seu turno, estabeleceram, na Constituição de 1787, sem posterior modificação, a competência para cada Estado-membro tratar, de forma autônoma, de grande parte das matérias acima. Elencou as competências do Congresso (artigo 1º, Seção 8). A Emenda X rechaçou qualquer dúvida acerca dos poderes remanescentes dos estados: “Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por ela negados aos estados, são reservados aos estados ou ao povo”. Nota-se que a redação ainda deixa claro que a elaboração da Constituição é obra da delegação da competência inerente a cada Estado ao poder central, reforçando o federalismo de agregação.
Assim, na sistemática estadunidense, cada ente federado determinada a idade para aquisição da maioridade civil; as condutas criminalmente puníveis e respectivas penas (o que incluiu a adoção ou não da pena de morte e o respectivo método de aplicação), dentre outras inúmeras matérias. A própria organização dos poderes federados é feita sem ingerência do poder central. Nesse sentido, é possível encontrar Senados e Supremas Cortes estaduais, podendo cada estado se organizar com ampla autonomia, observando suas peculiaridades.
Repartição de competências legislativas no Estado brasileiro
Devido ao acentuado grau de concentração no poder central das competências legislativas, seguindo em grande parte o sistema dos textos pretéritos, a Constituição de 1988 conferiu aos municípios, agora elevado ao status de ente federativo, assim como os estados, diferentemente do extenso rol de competências legislativas da União, pura e simplesmente, a tarefa de “legislar sobre assuntos de interesse local” e “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (artigo 30, incisos I e II).
No caso dos estados, determinou-se a organização com base na respectiva Constituição Estadual e nas “leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição” (artigo 25, caput). Quanto às matérias, determinou que “são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição” (§ 1º).
Por fim destaca-se a adoção de um sistema de matérias de competência legislativa concorrente, para as quais a União edita normas gerais (artigo 24, caput e § 1º).
Do arcabouço normativo acima, nota-se uma extensa gama de matérias reservadas privativamente à União (aquelas consideradas de maior importância), enquanto os estados e municípios foram dotados de competências remanescentes, ou seja, podendo legislar sobre o que não tenha sido conferido à União, de caráter meramente residual. A técnica até não seria tão diferente da estadunidense, não fosse a enumeração tão ampla das competências federais.
Visto o panorama da repartição das competências legislativas no Brasil, historicamente houve acentuada centralização de competências na esfera federal. Com a colonização, foram criadas as capitanias pela Coroa Portuguesa, num modelo de governo pelo qual esta delegava a colonização e exploração do vasto território americano para nobres que desejassem propagar o poder real.
Após a independência, as capitanias foram transformadas em províncias, mas a Constituição de 1824 adotou o modelo de Estado unitário. A proclamação da República trouxe consigo a federação, com a divisão de poder entre a União e os estados-membros. De lá para cá, manteve-se o traço comum de centralização do poder, acentuado nos governos ditatoriais implantados pelas Constituições de 1937 e 1967, mas não destoando, em grande medida, dos textos de 1891, 1946 e mesmo da atual Carta de 1988, a despeito desta ter repartido o poder em três esferas: central (União), regionais (estados) e locais (municípios) e fixado a forma federativa como cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, inciso I).
Como consequência, os estados pouco conseguem inovar e exercer de fato autonomia, restando engessados pelo modelo federal fixado na Constituição da República.
Progressiva abolição da escravidão ‘de dentro para fora’
Na história do Brasil, ao longo de três séculos de colonização portuguesa e dois de independência, um dos temas mais sensíveis, que nem o passar de mais de um século parece conseguir apagar as trágicas consequências é a escravidão.
Nos Estados Unidos não foi diferente. A abolição foi um dos principais estopins para a Guerra de Secessão, o maior conflito interno dos Estados Unidos, que, entre 1861 e 1865, opôs os Confederados do Sul e a União dos Estados do Norte, com mais de 600 mil mortos, incluindo o assassinato do presidente Abraham Lincoln, e que resultou na abolição da escravidão, com a aprovação da Emenda XIII à Constituição estadunidense em 1865 [2].

Já no Brasil, o século 19 trouxe a progressiva abolição da escravatura, o que não significa, de modo algum, que a questão foi enfrentada com a rapidez e seriedade devidas. Pressionado pelos ingleses, em 1826 o Brasil assumiu o compromisso de abolir a escravidão em três anos. Assim, em 1831 adotou a chamada Lei Feijó, que proibia o tráfico intercontinental e libertava os escravos que chegassem no país após sua edição. Porém, sua sistemática inobservância, por traficantes e autoridades brasileiras, tornou-a ineficaz, fazendo surgir daí a expressão de lei “para inglês ver”.
A situação apenas passou a se modificar na segunda metade do século. Em 1850, a Lei Eusébio de Queirós proibiu o tráfico de negros escravizados da África no Brasil. Em 1871 a Lei do Ventre Livre outorgava liberdade aos filhos de mulheres escravizadas no Brasil desde o nascimento. Em 1885, a Lei dos Sexagenários conferia a condição de libertos aos escravos com mais de 60 anos (o que, diga-se de passagem, dadas as condições de vida, especialmente no meio rural, era extremamente raro).
A efetiva abolição da escravidão no Brasil apenas veio a lume com a edição da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, a chamada Lei Áurea, sancionada pela princesa imperial regente Isabel.
Todas as leis acima, como era de se esperar, foram adotadas pelo poder central, na época do Império brasileiro, quando sequer havia maior autonomia às províncias. Contudo, isto não impediu que a escravidão fosse abolida com maior antecedência em âmbito local e regional. É aqui que vemos um momento ímpar na história do Brasil.
Em sua trilogia da escravidão, um dos trabalhos mais completos sobre o tema, Laurentino Gomes, destaca o precursor anúncio, pelo governador do Ceará, Sátiro Dias, em 25 de março de 1884, do fim da escravidão na Província. Na sequência, em 10 de julho o governador do Amazonas Teodureto Carlos de Farias Souto tomou igual providência.[3] Antes disso, a Vila de Acarape (atual cidade de Redenção), foi declarada a primeira cidade brasileira livre da escravidão, seguida por Pacatuba, São Francisco, Icó e Baturité, até chegar a Fortaleza, em 24 de maio, alcançando 18 municípios livres da escravidão até o término daquele ano. [4]
Muito provavelmente, se à época tais normas tivessem sido objeto de controle de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal as teria declarado inconstitucionais, seja pela ausência de normativa do poder central, seja pela violação ao sagrado, absoluto e perpétuo direito de propriedade, legislação sobre direito civil e comercial… enfim, não faltariam fundamentos na Constituição para declarar a usurpação de competência da União por províncias e cidades rebeldes.
De todo modo, é de se destacar que, num país com alto grau de centralização do lavor legislativo nas mãos do poder central, essa rebeldia de províncias e vilas para antecipar o fim da escravidão servem de alerta para a necessidade de se conferir maior autonomia aos entes descentralizados. Com isto, iniciativas pioneiras podem servir de modelo para a adoção de novas e boas práticas. Afinal, ao se convergir todo o foco das importantes deliberações legislativas no Congresso, certamente este não possui condições de enfrentar todas as demandas que lhe são submetidas.
Como resultado, relevantes demandas deixam de ser pautadas por falta de agenda ou por um momento político sempre inadequado ante a precedência de outros temas de suposta maior relevância (ao menos para determinados parlamentares e grupos de interesse).
Em tais casos, a possibilidade de se vivenciar experiências em âmbito regional ou local possibilitam ao centro de poder, observando os ensaios feitos em um locus menor, ter maior segurança e previsibilidade para incorporar boas práticas com abrangência para todo o país. A antecipação da abolição da escravatura deve ser festejada e tomada de exemplo. Viva a rebeldia!
[1] HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist. Editado por Benjamin Fletcher Wright. New York: Barnes & Noble, 1996. p. 167.
[2] A abolição, todavia, não trouxe a convivência e tratamento igualitário aos afrodescendentes. Inaugurou uma repugnante política de segregação racial, com a leniência da Suprema Corte, que validou a manutenção de espaços separados para negros e brancos em 1896 (Plessy vs. Ferguson) até a consagração da plena igualdade ou equal protection em 1954 (Brown vs. Board of Education). De lá para cá a tensão racial ainda permanece no ar, com movimentos oriundos da Ku Klux Klan, o assassinato de Martin Luther King em 1968 e, mais recentemente, de George Floyd em 2020, dentre outros eventos.
[3] GOMES, Laurentino. Escravidão. Vol. III. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022, p. 419.
[4] Ibid., p. 420.
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