Público & Pragmático

Marco Legal dos Games como primeiro passo de regulação do setor no Brasil

Autores

  • André Castro Carvalho

    é bacharel mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo com estudos em nível de pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology - MIT (em 2016) e na Faculdade de Direito da USP (2017-2018) professor de pós-graduação e educação executiva em diversas escolas de negócios como Insper Ibmec-SP Trevisan FIPE FIA e Fipecafi ex-vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (2019-2023) e atualmente membro do seu Comitê de Ética membro de Comitê de Auditoria em duas companhias em São Paulo consultor e advogado em São Paulo.

  • Murilo Ruiz Ferro

    é mestre em Direito pela Universidade de São Paulo advogado e consultor jurídico em Direito Público em São Paulo.

31 de março de 2024, 8h00

Akira Toriyama é um dos mais renomados desenhistas de mangá e anime por sua obra Dragon Ball, conhecida mundialmente. Entretanto, poucos sabem que ele é um ator relevante na história dos games, sobretudo por integrar o time criador de Chrono Trigger (1995), considerado um dos melhores jogos eletrônicos de todos os tempos.

Akira Toriyama, criador de “Dragon Ball”

Essa produção consagrou um dream team ao reunir, ao lado de Toriyama, Hironobu Sakaguchi (produtor da série Final Fantasy) e Yuji Horii (diretor da série Dragon Quest, a qual também foi desenhada por Toriyama), tendo ainda Nobuo Uematsu no auxílio do então estreante Yasunori Mitsuda na celebrada trilha sonora.

Por uma dessas coincidências (nem sempre agradáveis) da vida, o artista infelizmente nos deixou em março deste ano, no mesmo mês em que avança no Senado brasileiro, com a aprovação, por sua Comissão de Educação, o Marco Legal dos Games no Brasil (Projeto de Lei nº 2.796/2021). Embora ainda não seja lei, é muito provável que nos próximos meses tenhamos a sua aprovação legislativa e sanção presidencial.

Eis que o ordenamento pátrio, finalmente, começa a dar alguma relevância jurídica aos jogos eletrônicos, que aqui se consolidaram há mais de 40 anos.

À diferença do Direito norte-americano, o qual sempre se preocupou e cuidou dessa indústria bilionária (hoje maior do que a da sétima arte), o tratamento do Direito brasileiro aos games nunca foi muito diferente do que o dado ao truco ou ao dominó.

Basta perceber que é pouco valorizado o histórico do empreendedorismo brasileiro nessa seara. Sim, ele existe, e não podemos deixar de lembrar, por exemplo, do pioneirismo e bravura da fábrica de brinquedos TecToy: na década de 1990, arriscou-se ao desafio de produzir em terras tupiniquins (o que era inacreditável, pela caótica situação econômica do país naquela época) os mais icônicos consoles lançados pela desenvolvedora japonesa Sega, como Master System, Mega Drive, Sega CD e Sega Saturn.

Ferramenta educacional

Importa, portanto, celebrar iniciativas como a atual preocupação do Poder Legislativo ao considerar os jogos eletrônicos como importantes ferramentas na formação dos indivíduos.

Afinal, abundam games que podem naturalmente ensinar História (Age of Empires), Lógica e Matemática (Big Brain Academy e Tetris), Geografia (Onde Está Carmen Sandiego), Física (os últimos The Legend of Zelda e Portal 2), Filosofia (BioShock) ou até mesmo Inglês (a série Baldur’s Gate), sem contar outros campos do conhecimento e possibilidades de desenvolvimento dos jogadores.

Nem se diga também o quanto os jogos eletrônicos têm cada vez mais auxiliado a tecnologia de treinamentos de adultos em determinadas atividades profissionais, por meio dos chamados games simuladores, caso do Flight Simulator, Euro Truck Simulator 2 e Chemical Spillage Simulation Day 1.

Ou seja, aquela pecha de que os jogos eletrônicos só estimulam a violência entre os jovens resta superada não apenas pela literatura técnica atualizada, mas pela própria aceitação e utilização da sociedade.

Os games são, na verdade, voltados à instrução cultural, educacional e profissional das pessoas, e, nesse sentido, o marco inova ao prescrever que o poder público pode promover políticas públicas para a utilização de jogos eletrônicos nas escolas públicas — algo impensável na década de 1980, quando o videogame era considerado um grande vilão educacional.

Interessante notar também que o Marco prevê o uso de jogos eletrônicos para fins terapêuticos, como o exemplo do EndeavorRX, que pode ser utilizado para auxiliar no tratamento de TDAH em crianças.

O marco, inclusive, harmonizará com a recente Lei nº 14.826/2024, a qual estabeleceu como políticas de Estado a parentalidade positiva e o direito ao brincar.

Os games, além de uma estratégia educacional, também podem ser uma importante ferramenta de fortalecimento do relacionamento familiar entre pais e crianças, devendo ser estimulados por meio de políticas públicas.

Décima arte

Sob os aspectos cultural e econômico, o PL nº 2.796/2021 viabiliza a canalização de recursos da Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991) para os games, já que alguns podem ser considerados verdadeiras obras de arte (a “décima arte”), tanto na parte visual quanto em trilha sonora e enredo.

Aliás, o próprio marco utiliza expressões como artista visual para jogos, artista de áudio para jogos, designer de narrativa de jogos, entre outras, para designar o profissional da área de jogos eletrônicos.

Em termos visuais, por exemplo, destacam-se ao longo dos tempos vários pixel art inesquecíveis, como Terranigma, e jogos pré-renderizados, como Grim Fandango. Em termos de áudio, Super Mario Galaxy, Street Fighter II e Cuphead entregam trilhas sonoras que são reproduzidas por diversas orquestras mundo afora.

Em termos de roteirização e dramaticidade, The Last of Us é comparável com grandes produções do cinema – curioso notar que este jogo virou série da HBO em 2023. Antigamente, eram os games que imitavam o cinema; hoje, é o contrário.

Por isso, com o apoio da Lei Rouanet, desperta-se a esperança de que o benefício agora possa também alcançar os artistas que se envolvem na indústria que muitas vezes não contam com o devido reconhecimento, e que podem se beneficiar desta importante ferramenta de fomento da atuação estatal na cultura. O próprio marco, inclusive, coloca que os jogos eletrônicos podem ser utilizados para fins de entretenimento ou contemplação artística.

Filtros de proteção

Outro aspecto, ademais, não menos importante do Marco vem com o estabelecimento de formas de proteção aos jogadores, algo que já é bastante discutido no âmbito do Parlamento Europeu.

Uma delas é a possibilidade de recebimento de denúncias de jogadores em jogos multiplayer, em especial para a proteção de as crianças e adolescentes. Dado o caráter global desse formato, com jogadores interagindo ao vivo, torna-se realmente difícil implementar filtros prévios para proteção dos menores de idade que interagem nesse ambiente, o que pode favorecer a prática de condutas criminosas por pessoas mal-intencionadas.

Daí a necessidade de um sistema de denúncias, a fim de que os jogadores, além dos próprios pais e responsáveis legais, possam reportar as atividades ilícitas que estejam ocorrendo no espaço virtual. Isso porque os breves relatórios dessas denúncias podem subsidiar procedimentos internos para que os maus jogadores sejam banidos dos servidores, mantendo-se a integridade e a conformidade dentro do ecossistema.

Desafio eterno

O Marco não resolve o problema por completo e é certo que outras questões ainda aparecerão, até mesmo em razão dos consecutivos ciclos de disrupção tecnológica, tão inata ao universo dos games. O desafio legislativo-regulatório para acompanhar a velocidade da evolução gamer será contínuo e eterno.

Neste sentido, acreditamos que as autoridades terão muitas “missões” normativas e regulatórias pela frente, como, por exemplo, na otimização de nossa política tributária destinada a essa indústria, tendo em vista que o Estado deve agir como um facilitador (e não um entrave) de indústrias que favoreçam o desenvolvimento econômico.

E desenvolvimento econômico, nesse caso, afora a geração de empregos e fomento do consumo que essa indústria gera, significará, principalmente, extensão e modernização de possibilidades pedagógicas na Educação, amplificação do horizonte cultural de milhões de pessoas e, em sinergia com tudo isso, aumento do incentivo à cultura, isto é, ao mais que bem-vindo surgimento de jovens artistas brasileiros.

Afinal, todos nós sabemos que o Brasil é um celeiro de talentos e, assim como o Japão — país com o qual mantemos intensa conexão econômica e cultural —, carrega suficiente potencial humano de criatividade para agraciar o mundo com seus próprios e futuros Akiras Toriyamas.

Autores

  • é bacharel, mestre, doutor e pós-doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e entusiasta da indústria de games desde a infância. Elaborou pesquisa em nível de pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e atualmente está envolvido em um projeto de desenvolvimento de um jogo eletrônico cuja temática é o fomento de práticas de sustentabilidade, liderado pelo professor Felipe Neves, do IFRN.

  • é bacharel pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), especialista em Direito da Infraestrutura pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, advogado e consultor jurídico em São Paulo e dimpatizante dos chamados games retrô.

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