Opinião

Por que a expressão humana deve ser protegida pelo Direito? (parte 1)

Autor

  • Rafael Dilly Patrus

    é advogado sócio do Cremasco Dilly Patrus Peixoto e Leão Advogados consultor legislativo na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG

30 de março de 2024, 13h19

A expressão humana, o evento da linguagem, o produto vivo da nossa interação no mundo, por que razões isso deve ser protegido pelo direito?

A resposta parece simples. Mas não é.

Não é simples, porque, tal qual acontece com a cláusula geral da liberdade de expressão – a exemplo dos incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988, que dizem ser livres a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, e a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença —, os argumentos que sustentam essa liberdade evocam ideias tão fluidas e abstratas que, embora seu enunciado geral não desperte controvérsias, para atribuir a elas algum sentido prático é inevitável adentrar um campo de discussões e disputas políticas muito acirradas.

É intuitivo assumir, em abstrato, que a expressão deve ser livre. No entanto, a liberdade só se justifica concretamente quando os motivos para proteger a expressão se mostram mais fortes e convincentes do que os motivos para restringi-la. Os conflitos sobre liberdade de expressão lidam sempre com um choque entre argumentações — a justificativa para garantir a preservação da expressão contra a justificativa para sua regulação.

Alguns autores afirmam que a liberdade tem precedência face a outros direitos e interesses tutelados e perseguidos pelo Estado, e teorias longas e sofisticadas foram desenvolvidas a partir dessa ideia — a ideia de que ser livre é um objetivo prioritário, pois a liberdade corresponde ao estado humano mais natural —, mas, mesmo para perspectivas como essas, quando restrições à liberdade são postas em discussão, é necessário fundamentar a prioridade, explicar a primazia, expor e defender os motivos pelos quais a liberdade é mais valiosa do que sua limitação.

Isso acontece, na verdade, porque todo direito é interpretado frente à realidade na qual é aplicado, e o que genuinamente importa é o porquê da liberdade — o porquê de, em alguns casos, a expressão ser livre e o porquê de, em outros casos, não ser. Direitos constitucionais complexos, dentre eles a liberdade de expressão, são na verdade direitos cuja proteção se justifica segundo razões múltiplas e sobrepostas. Estudá-las é essencial, já que é com base nelas que o intérprete define seu posicionamento em casos difíceis e controversos [1].

Liberdade de expressão possibilita identificação da verdade

Embora existam muitos motivos para tutelar a expressão humana, cinco teorias se destacam. Em resumo, a expressão deve ser livre, porque isso possibilita a identificação da verdade e estimula a produção e a propagação do conhecimento; viabiliza o autogoverno e impede a tirania; viabiliza a autoafirmação da identidade e garante a preservação de uma cultura de independência; assegura a legitimidade das escolhas coletivas; e catalisa o pluralismo social, político, artístico, cultural e étnico.

Em uma série de cinco artigos, proponho mapear, destrinchar e, por consequência, sistematizar esses argumentos.

Meu objetivo é oferecer às pessoas que estudam o Direito Constitucional e trabalham com ele, bem como à sociedade — que o vivencia diariamente —, um cabedal organizado das principais razões pelas quais se entende que a expressão humana deve ser protegida pelo direito, não apenas para habilitar essas pessoas a assumirem posições consistentes nas discussões jurídicas e políticas mais recentes, mas também, e especialmente, para deixar claro que nenhuma liberdade é um valor fechado em si mesmo.

Como todo propósito perseguido e tutelado pelo direito, a liberdade de expressão é um interesse que depende de justificação.

Teoria de Mill

Começamos com a defesa mais difundida e influente da liberdade de expressão no mundo moderno: a teoria de John Stuart Mill.

O pensamento norte-americano sobre a liberdade, que afetou, de formas múltiplas, as discussões a respeito do assunto em outras partes do Ocidente, tem por base essa teoria, e faz pelo menos cem anos que a Suprema Corte dos Estados Unidos e os acadêmicos que estudam a temática lançam mão dela em suas argumentações, seja para defender a tutela da liberdade, seja para opinar pela necessidade de restringi-la [2].

Segundo Mill, em um ambiente no qual a expressão circula livremente, os cidadãos se veem mais habilitados para identificar a verdade, rejeitar a mentira e produzir e propagar o conhecimento. A expressão deve ser livre não porque corresponde a um artefato de valor para seu autor.

Na verdade, a expressão livre é um direito de toda a coletividade, as gerações atuais e futuras: a propagação de uma opinião ou de um pensamento beneficia menos seu emissor e mais seus receptores, em especial aqueles que manifestam opiniões ou pensamentos divergentes.

Proteger a liberdade de expressão implica garantir que as manifestações humanas sejam não só veiculadas, mas sobretudo recebidas, assimiladas, apreendidas, acumuladas, comparadas e contrastadas, propiciando um longo e rico aprendizado.

Que circule a maior variedade possível de expressões é fundamental para assegurar sejam os entendimentos e as convicções da sociedade ora revisados, ora reforçados.

Tanto num quanto noutro caso, a expressão é livre não para o bem de quem fala, mas em favor de todos. Obstruir a veiculação de um pensamento viola o interesse coletivo, pois, nas palavras de Mill, “se a opinião está certa, somos privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; e se ela está errada, perdemos algo igualmente valioso: a chance de produzir, a partir da colisão com o erro, uma percepção mais clara e uma impressão mais viva da verdade” [3].

Spacca

Para Mill, os homens são imperfeitos e, por isso, perpetuam preconceitos, embustes e falsidades, ainda que de forma não intencional, quando cristalizam perspectivas e convicções, poupando-as da oxigenação do debate coletivo. Impedir que um determinado ponto de vista, mesmo que amplamente aceito, seja problematizado e posto em discussão importa em fraudar o progresso intelectual da coletividade: como dissemos, as pessoas são ou furtadas da possibilidade de rever seu convencimento e enxergar a verdade, ou privadas da chance de, percebendo o acerto de seu posicionamento, reforçar e, por consequência, aprimorar suas concepções. O silêncio impõe à inteligência coletiva uma amarga estagnação [4].

É precisamente por conta de o homem ser falho que ele necessita estar aberto a um contínuo processo de revisão e aprendizado. De acordo com Mill, apesar de a verdade absoluta não existir, é plenamente possível que a comunidade construa verdades adequadas à sua realidade.

Isso só se faz possível, contudo, quando as pessoas se reconhecem mutuamente como interlocutores livres e iguais, quando o espaço no qual interagem, debatendo as melhores soluções para os problemas da coletividade, está autenticamente aberto à difusão, à propagação e à contestação de ideias e preferências [5].

Essa elaboração constitui o principal embasamento para a leitura que a Suprema Corte dos Estados Unidos, desde pelo menos os anos 1960, faz do texto da Primeira Emenda à Constituição de 1787: “O Congresso não poderá produzir leis (…) cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa”.

A experiência norte-americana no uso da teoria de John Stuart Mill revela uma forte preocupação com a justificação filosófica da necessidade de a expressão ser o mais livre possível. Mesmo perante ordenamentos em que a regulação da expressão é muito mais abrangente, a exemplo dos países da América Latina, a influência da jurisprudência norte-americana sobre liberdade de expressão — e, indiretamente, do pensamento de Mill — é indiscutível [6].

O caso Abrams v. United States

Em seu voto dissidente no caso Abrams v. United States, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1919, o juiz Oliver Wendell Holmes escreveu que a Constituição norte-americana exige que os homens acreditem, mais do que em seus próprios argumentos e convicções, “que o bem final desejado é melhor alcançado pelo livre comércio de ideias, que o maior teste da verdade é a capacidade de um pensamento de ser aceito na competição do mercado, e que a verdade é o único meio pelo qual os desejos dos cidadãos podem ser realizados com segurança” [7].

Segundo Holmes, à luz da 1ª Emenda, para que a verdade prevaleça sobre a mentira, e para que a comunidade, revendo seus entendimentos, produza e propague novos conhecimentos, contribuindo com o propósito coletivo de evolução intelectual, é essencial que discursos os mais variados possam veicular-se e mover-se livremente, vingando, a cada rodada, a concepção mais aceita no “mercado de ideias”. Essa é, com poucas variações, a formulação sedimentada na teoria de Mill [8].

New York Times Co. v. Sullivan

Quarenta anos mais tarde, as frases de Holmes foram evocadas pela Suprema Corte como fundamento para uma orientação menos leniente com a regulação da liberdade de expressão. Dentre muitos, um caso de grande importância é New York Times Co. v. Sullivan.

Em 1960, o jornal The New York Times publicou um manifesto de apoiadores de Martin Luther King Jr. criticando a polícia da cidade de Montgomery, no Alabama, em virtude da maneira violenta como seus agentes tinham tratado os participantes de um protesto pelos direitos civis.

Creative Commons

O documento continha uma série de erros e incongruências, como, por exemplo, o número de vezes que King fora preso, a canção que os ativistas haviam cantado, e o fato de estudantes terem podido participar das manifestações.

Com base nisso, L. B. Sullivan, então comissário de polícia de Montgomery, ingressou em juízo contra o The New York Times, alegando que o jornal havia cometido difamação contra ele e seus colegas policiais. As instâncias inferiores deram ganho de causa a Sullivan, condenando o Times a lhe pagar uma quantia vultosa a título de indenização.

A Suprema Corte, por sua vez, reverteu a condenação, asseverando, em uma decisão unânime, que, quando a inverdade divulgada disser respeito a fato da vida ou da atuação de um agente público, a difamação somente estará configurada se ficar demonstrado que o falante veiculou a notícia com “malícia efetiva”, isto é, ou agiu consciente de que dizia uma mentira, ou espalhou a informação sem nenhuma consideração pela forte possibilidade de ela ser falsa [9].

Em Make no Law, Anthony Lewis sugere que, em seu voto no caso Sullivan, o juiz William Brennan não apenas redefiniu as possibilidades e os limites dos processos por calúnia e difamação, mas verdadeiramente redesenhou as premissas da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

Segundo Lewis, a liberdade de expressão garantida na Primeira Emenda foi predominantemente compreendida, durante mais de um século, como uma cláusula que proibia a chamada “restrição prévia”, isto é, a censura antecedente de determinado conteúdo. Nessa linha, o autor de determinada manifestação poderia ser responsabilizado civil ou criminalmente no caso de suas palavras se revelarem falsas, perigosas ou ofensivas.

Nos anos 1960 e 1970, como vimos, a Suprema Corte passou a encampar a posição antes minoritariamente defendida por Holmes e Brandeis, no sentido de proibir apenas as expressões que resultassem em um “perigo claro e iminente”, mas, pelo menos em um primeiro momento, dentre as exceções a essa regra (mencionadas pela própria corte em julgados da mesma época), manteve-se viva a possibilidade de responsabilizar o autor de um discurso pelos crimes de calúnia ou difamação.

Em Sullivan, a Suprema Corte promove um giro [10]. Segundo Dworkin (que se dizia um entusiasta do livro de Lewis), “o caso Sullivan entrou para a história não apenas porque nele foi revisto o direito constitucional sobre a calúnia e a difamação, mas também porque a linguagem e as imagens de Brennan passaram a definir todo o arquétipo do direito previsto na Primeira Emenda” [11].

Paradoxo

Por trás da argumentação que norteia a decisão em Sullivan, está, novamente, a tese de John Stuart Mill. Segundo a linha de raciocínio desenvolvida pela corte, a violação ao direito está na malícia do falante, e não na notícia inverídica em si.

Ou seja, mesmo quando ficar comprovado que determinada afirmação é falsa, ainda assim ela deve poder circular no mercado aberto de ideias, porque é a própria abertura do debate público — a circunstância de a arena de discussão estar desobstruída, e de nela transitarem pensamentos, visões e pontos de vista os mais variados — que possibilita às pessoas isolar a mentira e identificar a verdade.

Paradoxalmente, é a exigência da busca pela verdade que assegura a divulgação e o alastramento da mentira — uma ideia que, embora extrema em sua inclinação liberal, influenciou muito o debate sobre a liberdade de expressão tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos.

 

 


[1] DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 196.

[2] KALVEN JR., Harry. A worthy tradition: freedom of speech in America. New York: Harper & Row, 1988, p. 76. Ver também LEWIS, Anthony. Make no law: the Sullivan case and the First Amendment. New York: Vintage, 1992, p. 46.

[3] MILL, John Stuart. On liberty. London: Penguin Classics, 2017, p. 66, tradução nossa. No original: “If the opinion is right, they are deprived of the opportunity of exchanging error from truth; if wrong, they lose, what is almost as great a benefit, the clearer perception and livelier impression of truth, produced by its collision with error”.

[4] Ibid., pp. 82-90.

[5] Ibid., pp. 125-126.

[6] SCHAUER, Frederick. Freedom of speech: a philosophical enquiry. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 35.

[7] Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em Abrams v. United States, 250 U. S. 616. Washington/DC, 1919, § 58.

[8] LEWIS, Anthony. Freedom for the thought that we hate: a biography of the First Amendment. New York: Basic Books, 2009, p. 48.

[9] Cf. Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em New York Times Co. v. Sullivan, 376 U. S. 254. Washington/DC, 1964. Posteriormente, no caso Curtis Publishing Co. v. Butts, a Suprema Corte estendeu a tese da “malícia efetiva” para os casos de calúnia e difamação envolvendo não apenas agentes públicos, mas quaisquer “figuras públicas”. Ver em Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em Curtis Publishing Co. v. Butts, 388 U. S. 130. Washington/DC, 1967.

[10] LEWIS, Anthony. Op. cit., 1992, pp. 14 e 95.

[11] DWORKIN, Ronald. Op. cit., 1996, p. 201.

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