Opinião

Reforma tributária: quando o ITCMD poderá ser exigido sobre bens no exterior?

Autor

  • Pedro Furtado

    é advogado em planejamento patrimonial e sucessões sócio fundador da Batista Furtado Advocacia e consultor de valores mobiliários e wealth planner em Family Office.

28 de março de 2024, 7h05

O Supremo Tribunal Federal, em 2021, julgou inconstitucional uma série de normas estaduais que pretendiam instituir e regulamentar a tributação de heranças e doações envolvendo pessoas ou bens no exterior [1].

No Tema 825, com repercussão geral, a corte fixou a seguinte tese, utilizada posteriormente no julgamento das diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade:

“É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional” [2].

A mencionada lei complementar, cuja inexistência foi determinante para a vedação da instituição do imposto, carece de edição até o presente momento, conquanto o STF tenha, em junho de 2022, estabelecido prazo de 12 meses para que o Congresso o fizesse [3].

No entanto, a novidade que justifica a análise ora proposta é que, no bojo da fase da reforma tributária promulgada em dezembro de 2023 (Emenda Constitucional nº 132/2023), o Parlamento inseriu o seguinte dispositivo:

“Art. 16. Até que lei complementar regule o disposto no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal, o imposto incidente nas hipóteses de que trata o referido dispositivo competirá:

I – relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;

II – se o doador tiver domicílio ou residência no exterior:

  1. a) ao Estado onde tiver domicílio o donatário ou ao Distrito Federal;
  2. b) se o donatário tiver domicílio ou residir no exterior, ao Estado em que se encontrar o bem ou ao Distrito Federal;

III – relativamente aos bens do de cujus, ainda que situados no exterior, ao Estado onde era domiciliado, ou, se domiciliado ou residente no exterior, onde tiver domicílio o sucessor ou legatário, ou ao Distrito Federal.”

Dessa forma, percebe-se que o próprio constituinte estabeleceu um regramento originalmente previsto para a seara infraconstitucional. Mesmo que mantida a intenção de que lei complementar ainda trate do tema em maiores detalhes, fato é que se instaurou uma normatização mínima e provisória, tendente, ao menos, a evitar a repetição de problemas passados, como a bitributação entre os próprios entes nacionais [4].

Spacca

A intenção do presente arrazoado, no entanto, não é debater o mérito da nova norma constitucional, de como foram repartidas as competências para o tributo, nem da forma como este conviverá com seus equivalentes no âmbito do Direito Internacional [5].

A ideia, antes disso, é refletir sobre a própria aplicação no tempo das normas envolvidas; no particular, para investigar se, e quando, o ITCMD poderá voltar a ser exigido sobre heranças e doações no exterior.

1. Problematização

Para melhor visualização do objeto, temos, cronologicamente, esta sequência de atos:

  • Leis estaduais instituem imposto sobre heranças e doações envolvendo bens ou pessoas no exterior, com regramentos próprios, e os Estados-membros passam a exigi-lo;
  • A partir de 2021, decisões do STF declaram inconstitucionais esses dispositivos, sob o entendimento da obrigatoriedade de prévia mediação pela lei complementar prevista no art. 155, § 1º, III, da CF;
  • Em 2023, Emenda Constitucional prevê que, enquanto não editada a referida lei complementar, aplica-se regramento básico (por ela mesma instituído) acerca da divisão de competências tributárias para a instituição do tributo.

Pela interação entre essas normas e decisões e sua aplicação no tempo, surgem questões relevantes, e que podem gerar controvérsias no cenário tributário nacional.

Trazemos à análise as seguintes indagações:

  • As várias decisões do STF, impeditivas da incidência do tributo, restaram superadas? É dizer: com o artigo 16 da EC nº 132/2023, as legislações estaduais automaticamente recuperaram sua vigência?
  • Essa nova norma constitucional (artigo 16 da EC nº 132/2023) é dotada de eficácia plena? Em sendo, isso implica na possibilidade de cobrança do imediata do imposto pelas fazendas estaduais?
  • Ou será preciso que os Estados-membros editem suas próprias leis a respeito?

1.1. As hipóteses de repristinação ou constitucionalidade superveniente das normas estaduais declaradas inconstitucionais

No Direito, a repristinação consiste na restauração da vigência de uma norma em virtude da revogação de outra que, por sua vez, havia revogado aquela. Pressupõe-se, portanto, a interação de ao menos três diplomas legislativos.

Nesse ponto, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que a mencionada restauração depende de disposição expressa (artigo 2º, § 3º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942), não se admitindo, portanto, a repristinação tácita. O mesmo ocorre no âmbito constitucional, com fundamento nos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais (NOVELINO, 2017).

Além da repristinação propriamente dita, vale mencionar que também é reconhecido o chamado efeito repristinatório tácito, o qual se dá, por exemplo, quando no terceiro ato, ao invés de uma lei, tem-se uma decisão de inconstitucionalidade com efeitos “ex tunc”.

Tal decisão, segundo doutrina e jurisprudência majoritárias, ao declarar a nulidade da lei revogadora, permite o regresso da vigência da norma revogada, se esta for compatível com a Constituição (NOVELINO, 2017).

De todo modo, vê-se que a diferença ocorre no que chamamos, acima, de terceiro ato; nos dois primeiros, não há mudança: é preciso que uma lei tenha sido revogada por outra.

Por esses motivos, parece-nos que ambos os institutos não se amoldam ao caso proposto, uma vez que, além de não ter havido previsão expressa na Emenda Constitucional, as normas estaduais que impuseram o ITCMD sobre heranças e doações no exterior não foram revogadas por lei, mas sim declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte.

Logo, se temos a) num primeiro momento, uma lei inconstitucional, e b) num segundo, uma alteração no bloco de constitucionalidade, o que estamos aventando é a possibilidade que uma norma volte ao ordenamento jurídico pela alteração no parâmetro que justificou a declaração de sua inconstitucionalidade.

É o fenômeno da constitucionalidade superveniente.

Entretanto, é sabido que o STF reputa que “o sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente” [6], em razão de entender o ato inconstitucional como nulo, e não simplesmente anulável.

Foi o que ocorreu, por exemplo, na ADI 2.158, em que se discutia a inconstitucionalidade de lei do Paraná que estabelecera contribuição previdenciária para servidores estaduais inativos, antes que esta fosse autorizada pela Constituição.

O Supremo entendeu que, mesmo ante a superveniência da EC 41/2003 (que permitiu aquela taxação, e foi promulgada antes mesmo do julgamento da ADI), a lei paranaense continuava sendo inconstitucional.

Como de fato foi declarada:

“(…)

Em nosso ordenamento jurídico, não se admite a figura da constitucionalidade superveniente. Mais relevante do que a atualidade do parâmetro de controle é a constatação de que a inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se encontram mais em vigor.

(…)

A Lei estadual nº 12.398/98, que criou a contribuição dos inativos no Estado do Paraná, por ser inconstitucional ao tempo de sua edição, não poderia ser convalidada pela Emenda Constitucional nº 41/03. E, se a norma não foi convalidada, isso significa que a sua inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se encontram mais em vigor, alterados que foram pela Emenda Constitucional nº 41/03” [7].

Portanto, as legislações estaduais que trataram de heranças e doações englobando bens ou pessoas no exterior, a nosso ver, mantêm-se inconstitucionais, “nulificadas perante a regra da Constituição que vigorava à época de sua edição (princípio da contemporaneidade)” (LENZA, 2015, p. 362).

1.2. A hipótese de eficácia plena (e aplicabilidade direta e imediata) do artigo 16 da EC nº 132/2023.

Superada a possibilidade de as leis estaduais serem consideradas válidas por intermédio da (inviável) constitucionalidade superveniente, cabe-nos verificar se o artigo 16 da EC nº 132/2023 não teria eficácia plena, para – mediante sua aplicação direta e independente – permitir a exigência do tributo pelos Estados-membros.

Eficácia plena tem a norma que

contém todos os elementos e requisitos à sua incidência direta, isto é, sua configuração normativa é precisa a ponto de possibilitar que sejam extraídas condutas positivas ou negativas independentemente da mediação do legislador [8].

Em nossa opinião, para aferirmos se a norma é ou não plenamente eficaz, a primeira pergunta a ser respondida é singela: qual a sua finalidade?

No caso em questão, constata-se que a finalidade do artigo 16 da Emenda Constitucional nº 132/2023 é distribuir a competência para a instituição de hipótese de incidência do ITCMD sobre heranças e doações em que haja conexão geográfica – objetiva ou subjetiva – com o exterior.

É o que se extrai tanto de sua própria redação, como da letra do artigo 155, § 1º, III, da CF (ainda vigente e indissociável da nova norma derivada) e da própria decisão tomada pelo STF no Tema 825.

O dispositivo do texto constitucional originário, por exemplo, não deixa dúvidas com a sua literalidade: “(…) terá competência para sua instituição regulada por lei complementar (…)”.

E, em um segundo momento, foram exatamente essas palavras as refletidas na tese do STF, que se inicia mencionando ser “vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal (…)”.

Logo, o dispositivo em análise não tem sequer a pretensão de instituir hipótese de incidência de imposto, de modo que atribuir a ela tais efeitos seria descabido.

De outra forma não poderia ser, já que as normas constitucionais em matéria tributária não são vocacionadas à instituição de imposto, “apenas fixam as competências para que os gravames sejam criados” (SABBAG, 2023, p. 585).

Assim, é de se concluir que o multicitado artigo 16 é, sim, dotado de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata; porém, constrito aos seus próprios limites teleológicos: delimitar a competência para que os entes federativos responsáveis instituam o tributo.

Inferir que a nova norma constitucional tenha, ela própria, o condão dessa instituição é inclusive uma equivocada presunção da vontade legislativa (e não administrativa, é de se frisar) dos entes da federação.

A questão tem identidade flagrante com aquela decidida pelo STF na ADI 2.158 (citada alhures): 1) se foi instituída uma hipótese de incidência tributária por uma lei; 2) se esta foi julgada inconstitucional; e 3) se nova norma constitucional autoriza a instituição daquela mesma hipótese; é forçoso que somente uma nova e expressa legislação possa permitir a exigência do tributo.

Implica, portanto, em dizer que não basta o Poder Executivo dos estados-membros “decidirem” pela cobrança do imposto, pois não é uma questão meramente administrativa. É indelével que, além de haver nova manifestação (desta vez, constitucionalmente autorizada), esta se dê em forma de lei editada pelos Poderes Legislativos locais.

Conclusão

Diante desse arrazoado, opinamos que, para a exigência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) envolvendo elementos objetivos ou subjetivos de conexão com o exterior (CF, artigo 155, § 1º, III), à luz da norma provisória trazida pelo artigo 16 da Emenda Constitucional nº 132/2023, é necessária nova manifestação legislativa pelos Estados-membros, cuja eficácia estará sujeita ao princípio da anterioridade tributária.

 


[1] Simplificamos sob essa expressão todos os casos de doação ou transmissão causa mortis em que a localização do bem, a residência ou domicílio do doador, do donatário, do falecido ou dos sucessores, envolva conexão com o exterior. Embora haja discussão de que o objeto da decisão não alcançava (e, portanto, deveria continuar sendo tributado) o caso específico de doações em que o doador residisse no Brasil (não importando o local do bem, da efetiva transação ou de residência do donatário), na maioria dos Tribunais ficou pacificado que se houver qualquer tipo de conexão com o exterior, estaria presente o requisito de regulação prévia pela lei complementar (por todos: TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade nº 0004604-24.2011.8.26.0000, julgamento em 30/3/2011).

[2] STF, RE 851108. Rel. min. Dias Toffoli. DJe de 12/3/2021.

[3] STF, ADO 67. Rel. min. Dias Toffoli. DJe de 29/6/2022.

[4] Além do vício formal, um dos problemas práticos da regulamentação da tributação de heranças e doações no exterior pelos Estados foi a bitributação. Exemplo: uma pessoa domiciliada no exterior doou ações de uma S/A registrada em Goiás, mas o donatário residia em São Paulo; nesse caso, as legislações locais previam pagamentos sobrepostos, tanto pelo estado onde o ato fora formalizado, quando pelo de domicílio do donatário.

[5] Considerarmos, entretanto, que a discussão sobre a bitributação do imposto sucessório, no plano internacional, será um tema igualmente interessante.

[6] STF, RE 346.084/PR. Rel. min. Marco Aurélio. DJ de 1/9/2006.

[7] STF, ADI 2158. Rel. min. Dias Toffoli. DJe de 24/9/2010.

[8] NOVELINO, 2017, p. 112.

Autores

  • é advogado em planejamento patrimonial e sucessões, sócio fundador da Batista Furtado Advocacia e consultor de valores mobiliários e wealth planner em Family Office.

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