Opinião

Aplicação da supressio para ações de cobrança da dobra do frete

Autor

  • Rafael Caselli Pereira

    é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo) e advogado.

21 de março de 2024, 18h17

A Lei n° 10.209/2001 instituiu o vale-pedágio obrigatório para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário nas rodovias brasileiras (artigo 1º). No sentido de evitar uma prática muitas vezes abusiva adotada pelas empresas tomadoras e/ou embarcadoras das cargas, estabeleceu-se que o valor do vale-pedágio não integra o valor do frete, não será considerado receita operacional ou rendimento tributável, nem constituirá base de incidência de contribuições sociais ou previdenciárias (artigo 2º).

Rafael Caselli Pereira, advogado

Após anos de intensos debates jurisprudenciais sobre a validade da indenização pela dobra do valor do frete pelo não fornecimento antecipado do vale-pedágio, concluiu-se pela constitucionalidade do artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001. Tal conclusão se deu na data de 27/3/2020, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 6.031 [1] proposta pela Confederação Nacional da Indústria, fixando precedente vinculante e obrigatório sobre o tema.

ADI 7.460

Enquanto a jurisprudência é controvertida sobre a questão da aplicação da nova lei para os fretes prestados antes ou somente para os fretes prestados após a data da sua vigência (21/10/2021), havendo, ainda, uma terceira corrente que entende pela aplicação da nova lei apenas para as ações ajuizadas após o transcurso de 12 meses da vigência da nova lei (21/10/2022),inaugurou-se no dia 21/9/2023 um novo capítulo sobre o tema com a proposta da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.460, conforme já noticiamos por aqui [2].

A CNTA e Conftac ajuizaram a ADI, sob o patrocínio dos advogados doutor Alziro Motta Santos, dr. Helder Eduardo Vicentini e do autor deste artigo, dr. Rafael Caselli Pereira, e com parecer do professor doutor José Miguel Garcia Medina. Atualmente a ADI 7.460 está aguardando despacho do ministro Luiz Fux, acerca do pedido de suspensão de todas as ações ajuizadas no Brasil após a vigência da Lei nº 14.229/2021.

Já tivemos oportunidade de tratar da questão das formas de antecipação do vale-pedágio e sobre o ônus da prova de tais ações [3].

‘Se colar, colou’ e a jurisprudência

As empresas que descumprem uma lei que já existe há 23 anos insistem em lançar argumentos e invocar institutos da prática reconhecida como “se colar, colou” que não são aplicáveis para as ações que buscam a indenização pela não antecipação do vale-pedágio obrigatório como tentativa de se eximir da sua obrigação decorrente de lei.

A jurisprudência do STJ é pacífica em relação à impossibilidade de aplicação dos institutos derivados da boa-fé objetiva como supressio, surrectio ou venire contra factum proprium para as ações de indenização pela dobra do frete ante a não antecipação do vale-pedágio, uma vez que há norma cogente e especial regulando a matéria, sendo vedado as partes alterar o conteúdo na Lei n 10.209/2001.

No julgamento do REsp nº 2.071.747/RS [4], em acórdão de relatoria da ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma, foi reafirmado que não é admitida aplicação da supressio para as ações envolvendo a indenização pela “dobra do frete”, a qual se constitui uma sanção legal e deve ser aplicada em sua integralidade, não admitindo convenção das partes para lhe alterar o conteúdo ou a sua limitação com base no artigo 412 do CC/2002, na boa-fé objetiva (artigo 422 do CC/2002), diante da natureza cogente e especial da norma.

Em decisão datada de 3/8/2023, o eminente ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do AREsp 2.360.765 [5], reformou decisão do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo que havia reconhecido a hipótese de supressio, tendo determinado o retorno dos autos para que o recurso seja julgado de acordo com a orientação firmada pelo STJ, qual seja, de que não é admitida supressio, sendo vedada a possibilidade do vale-pedágio integrar o valor do frete, o que viola o disposto no artigo 2º, da Lei nº 10.209/2001, a qual estabelece que

“o valor do Vale-Pedágio não integra o valor do frete, não será considerado receita operacional ou rendimento tributável, nem constituirá base de incidência de contribuições sociais ou previdenciárias.”

Ainda, no julgamento do REsp nº 1.694.324-SP [6], julgado em 27/11/2018 restou ratificado que as partes não podem livre dispor do que consta em lei, ou seja, é nula qualquer disposição de vontade (cláusula contratual) que busque alterar o que consta em lei. A conclusão do julgado foi de que

“(…) O instituto da supressio não é aplicável ao caso, em virtude da natureza cogente da norma que estabelece a multa denominada de ‘dobra do frete’. A penalidade prevista no art. 8º da Lei nº 10.209/2001 é uma sanção legal, de caráter especial, prevista na lei que instituiu o Vale-Pedágio obrigatório para o transporte rodoviário de carga, razão pela qual não é possível a convenção das partes para lhe alterar o conteúdo, bem assim a de se fazer incidir o ponderado art. 412 do CC/02.”

Como visto, a jurisprudência do STJ já pacificou entendimento no sentido de que não se aplicam os institutos derivados da boa-fé objetiva quando há obrigação decorrente de lei, não sendo admitida convenção das partes para lhe alterar o conteúdo.

Inaplicabilidade em quatro fundamentos

Diante disso, serve o presente artigo para demonstrar quatro fundamentos que afastam a possibilidade de aplicação da boa-fé objetiva e seus desdobramentos, como o nemo potest venire contra factum proprium (proibição do comportamento contraditório), a supressio e a surrectio para as ações que buscam a indenização pela dobra do frete pela não antecipação do vale-pedágio.

O princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais é previsto, dentre outros dispositivos, no artigo 422, ao estabelecer que os “contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.

Como anexos do princípio da boa-fé objetiva, o Direito brasileiro adotou os institutos do venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque. Estes institutos devem ser empregados como função integrativa, suprindo lacunas do contrato e trazendo deveres implícitos as partes contratuais [7], destaca Flávio Tartuce.

A proibição do venire contra factum proprium, isto é, do exercício do direito por alguém, “em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado” [8].

O nemo potest venire contra factum proprium destina-se ao combate à incoerência e à deslealdade, garantindo-se a segurança jurídica e a confiança das relações jurídicas respaldadas na boa-fé objetiva, mas que não são aplicáveis quando existente norma cogente que regulem determinadas relações entre particulares. A confiança deve, ainda, ser legítima, o que implica a INEXISTÊNCIA de norma legal que regule determinadas relações entre particulares.

Em primeiro lugar, destaca-se que o princípio da boa-fé e seus conceitos correlatos como supressio, surrectio e venire contra factum proprium somente são aplicáveis quando não há uma norma cogente e dispositiva, contudo, os artigos da Lei nº 10.209/2001 caracterizam-se como norma cogente e dispositiva.

Em segundo lugar, a indenização pela dobra do frete não envolve multa contratual estipulada mercê da livre deliberação dos contratantes, mas sim de sanção legal (artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001) imposta com redobrada censura e rigor justamente para coibir prática ilícita deplorada pelo próprio legislador.

Em terceiro lugar, a penalidade prevista no artigo 8º da Lei nº 10.209/2001 é uma sanção legal, de caráter especial, prevista na lei que instituiu o vale-pedágio obrigatório para o transporte rodoviário de carga, diferentemente do Código Civil e suas disposições gerais como o artigo 422 do CC/2002.

Desse modo, prevalece o critério da especialidade, com a aplicação dos exatos termos do disposto no artigo 2º, § 2º, da Lindb, que dispõe: A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

Em quarto lugar, destaca-se que a referida normal legal previu duas sanções diversas para a hipótese de descumprimento da obrigação de antecipação da despesa com pedágio. Como se verifica, a multa prevista no artigo 5º [9], da Lei nº 10.209/2001 é de caráter eminentemente administrativo, aplicada pelo órgão estatal competente, no caso, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) — artigo 6º—, que poderá delegar a atribuição a outros órgãos ou entidades da administração pública.

De outro lado, a sanção disposta no artigo 8º possui natureza diversa e tem como finalidade indenizar o transportador pelo não cumprimento da obrigação de antecipação do Vale-Pedágio. O valor da penalidade será equivalente a duas vezes o valor do frete, por isso denomina-se “dobra do frete”.

Na hipótese, percebe-se a existência de norma cogente, de observância obrigatória, a qual não pode ser livremente disposta pelas partes, pois o legislador impôs sua obrigatoriedade, independentemente da vontade das partes. Cuida-se de uma obrigação imposta a todos igualmente, e que é fiscalizada pelo poder público.

Considerando que o artigo 8º [10], da Lei nº 10.209/2001 é uma lei norma cogente, uma lei especial, verifica-se que a mesma possuía prazo prescricional decenal e desde 21/10/2021, possui o prazo prescricional de 12 meses, vigente desde 21/10/2022, ao menos enquanto não julgada a ADI 7.460.

Tal prazo prescricional é aplicável tanto para cobrança das multas pela ANTT, quanto pelo transportador/transportadora contratados que não receberam o vale-pedágio de forma antecipada ou que receberam o vale-pedágio embutido no valor do frete, diante disso, verifica-se que já há  uma previsão temporal para tais cobranças, sendo inaplicável os institutos da supressio, surrectio e venire contra factum proprium.

Pensar diferente é entender que o descumprimento de uma lei será premiado sob a alegação “forçada” de supressio, surrectio ou venire contra factum proprium, ou seja, de que a parte prejudicada teria concordado com o descumprimento da lei, só que norma cogente não admite convenção entre as partes.

Tal situação, aliás, traria um duplo benefício ao infrator, uma vez que se a parte prejudicada não poderia cobrar judicialmente a indenização do artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001, de igual forma. A ANTT também não poderia cobrar a sanção (artigo 5º, da Lei nº 20.209/2001).

Imaginemos o seguinte exemplo: Um determinado sujeito “A” agride física ou verbalmente um sujeito “B” por várias semanas, gerando, a possibilidade do sujeito “B” exercer seu direito e ajuizar ação de reparação civil pelo ilícito cometido, tendo até três anos da data do fato para exercer sua pretensão, sendo este o prazo prescricional para esta hipótese. Faltando um ou dois dias ou até mesmo meses para prescrição do direito a referida ação é ajuizada.

Neste caso, acolher a tese de supressio, surrectio ou venire contra factum proprium (vedação ao comportamento contraditório) e por consequência concluir que o ofendido não teria direito à sua pretensão pelo fato de ter sido ofendido alguma vezes e não ter ajuizado ação judicial anteriormente chega a caracterizar má-fé de quem busca tal fundamento para fugir da responsabilidade pelo descumprimento de determinada lei.

Conclusão

Diante disso, verifica-se que a jurisprudência do STJ possui jurisprudência íntegra, estável e coerente desde o ano de 2018 para cá no sentido de que não há como aplicar nenhum dos institutos extraídos do princípio da boa-fé objetiva, seja supressio, surrectio ou instituto do venire contra factum proprium (princípio que veda o comportamento contraditório) uma vez que há uma norma cogente, imperativa e especial que regula uma situação jurídica e prevê uma sanção (artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001) seja para ausência de fornecimento antecipado do vale-pedágio (artigo 3, da Lei nº 10.209/2001), seja por embutir o valor do pedágio no valor do frete (artigo 2º, da Lei nº 10.209/2001).

 


[1] STF – ADI: 6031 DF, Relator: CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 27/03/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 16/04/2020.

[2] https://www.conjur.com.br/2023-out-16/rafael-caselli-adi-7460-perspectiva-declaracao-inconstitucionalidade-prescricao-anual/

[3] https://www.conjur.com.br/2022-set-16/rafael-caselli-dobra-frete-antecipacao-vale-pedagio/ Importante destacar ser vedado o pagamento antecipado do vale-pedágio em moeda corrente (espécie). Em relação a prova do fornecimento antecipado do vale-pedágio pelo embarcador/tomador/subcontratante, há três formas disponíveis em lei, quais sejam: a) Uma das formas é por meio de cupons entregues ao contratado (transportadora ou transportador autônomo) e que devem conter todas as tarifas das praças de pedágios a serem percorridas (nestes cupons deve constar o valor do vale-pedágio e o número do comprovante da compra); b) outra modalidade de pagamento é o cartão eletrônico, que deve ser carregado com o valor total dos pedágios do percurso. Este cartão deverá estar acompanhado do comprovante de carregamento com as informações do responsável anexado junto ao documento de carga; e, c) o pagamento automático onde o embarcador/tomador/subcontratante precisa se cadastrar em uma das empresas habilitadas pela ANTT, utilizando o código do dispositivo eletrônico “Tag” do transportador (aquele adesivo colado na parte superior do vidro dianteiro do caminhão, fornecido por empresas como Sem Parar, Conectcar, dentre outras, anexando o comprovante de pagamento do total dos pedágios existentes no documento de carga.

[4] REsp n. 2.071.747/RS, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 22/8/2023, DJe de 24/8/2023.

[5] AREsp n. 2.360.765, ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 03/08/2023.

[6] REsp 1694324/SP, rel. ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 05/12/2018.

[7] TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. 3ª Ed. Vol. 3. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 120.

[8] SERRA, Adriano Paes da Silva Vaz. Abuso de direito (em matéria de responsabilidade civil). Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n. 85, 1959.

[9] Art. 5º O descumprimento do disposto nesta Lei sujeitará o infrator à aplicação de multa administrativa de R$ 550,00 (quinhentos e cinqüenta reais) a R$ 10.500,00 (dez mil e quinhentos reais), a ser aplicada pelo órgão competente, na forma do regulamento. § 1º No âmbito do processo administrativo sancionador, as notificações de autuação poderão ser encaminhadas por meio eletrônico para endereço eletrônico cadastrado formalmente para esse fim, de forma a assegurar a ciência da imposição da penalidade, nos termos do regulamento.   (Incluído pela Lei nº 14.206, de 2021) § 2º A notificação de autuação será expedida no prazo máximo de 30 (trinta) dias, contado da data do cometimento da infração, sob pena de o auto de infração ser arquivado e seu registro julgado insubsistente.   (Incluído pela Lei nº 14.206, de 2021) § 3º Da autuação e da aplicação de sanção caberá a apresentação, respectivamente, de defesa e de recurso pelo autuado, no prazo estabelecido em norma do órgão fiscalizador competente.   (Incluído pela Lei nº 14.206, de 2021) § 4º Prescreve em 12 (doze) meses o prazo para cobrança da pena de multa a que se refere o caput deste artigo, a contar da notificação de autuação.

[10] Art. 8º Sem prejuízo do que estabelece o art. 5º, nas hipóteses de infração ao disposto nesta Lei, o embarcador será obrigado a indenizar o transportador em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete. (Vide ADIN 6031)  Parágrafo único. Prescreve em 12 (doze) meses o prazo para cobrança das penas de multa ou da indenização a que se refere o caput deste artigo, contado da data da realização do transporte. (Incluído pela Lei nº 14.229, de 2021)

 

Autores

  • é advogado, doutor e mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil (IBDP), membro do Instituto Iberoameircano de Derecho Procesal, membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro), pós-graduado e membro honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC), autor de diversos artigos e livros e especialista nas ações de vale-pedágio.

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