Opinião

Ônus da prova na cobrança da dobra do frete pela não antecipação do vale-pedágio

Autor

  • Rafael Caselli Pereira

    é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo) e advogado.

16 de setembro de 2022, 10h04

A Lei n° 10.209/2001 instituiu o vale-pedágio obrigatório para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário nas rodovias brasileiras (artigo 1º). No sentido de evitar uma prática muitas vezes abusiva adotada pelas empresas tomadoras e/ou embarcadoras das cargas, estabeleceu-se que o valor do vale-pedágio não integra o valor do frete, não será considerado receita operacional ou rendimento tributável, nem constituirá base de incidência de contribuições sociais ou previdenciárias (artigo 2º).

Spacca
Rafael Caselli Pereira 

Após anos de intensos debates jurisprudenciais sobre a validade da  indenização pela dobra do valor do frete pelo não fornecimento antecipado do vale-pedágio, concluiu-se pela constitucionalidade do artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001. Tal conclusão se deu na data de 27/03/2020, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 6.031 [1] proposta pela Confederação Nacional da Indústria, fixando precedente vinculante e obrigatório sobre o tema.

Importante destacar ser vedado o pagamento antecipado do vale-pedágio em moeda corrente (espécie). Em relação a prova do fornecimento antecipado do vale-pedágio pelo embarcador/tomador/subcontratante, há três formas disponíveis em lei, quais sejam: a) Uma das formas é por meio de cupons entregues ao contratado (transportadora ou transportador autônomo) e que devem conter todas as tarifas das praças de pedágios a serem percorridas (nestes cupons deve constar o valor do vale-pedágio e o número do comprovante da compra); b) outra modalidade de pagamento é o cartão eletrônico, que deve ser carregado com o valor total dos pedágios do percurso. Este cartão deverá estar acompanhado do comprovante de carregamento com as informações do responsável anexado junto ao documento de carga; e, c) o pagamento automático onde o embarcador/tomador/subcontratante precisa se cadastrar em uma das empresas habilitadas pela ANTT, utilizando o código do dispositivo eletrônico "Tag" do transportador (aquele adesivo colado na parte superior do vidro dianteiro do caminhão, fornecido por empresas como Sem Parar, Conectcar, dentre outras, anexando o comprovante de pagamento do total dos pedágios existentes no documento de carga.

Um dúvida corriqueira em tais ações diz respeito a possibilidade ou não de inversão do ônus da prova, mas, especialmente a quem caberia o ônus da prova?

Acerca da temática da distribuição do ônus prova, a doutrina pátria leciona que: "A distribuição do ônus da prova repousa principalmente na premissa de que, visando à vitória na causa, cabe à parte desenvolver perante o juiz e ao longo do procedimento uma atividade capaz de criar em seu espírito a convicção de julgar favoravelmente. O juiz deve julgar secundum allegata et probata partium e não secundum propriam suam conscientiam — e daí o encargo, que as partes têm no processo, não só de alega, como também de provar[1]".

Primeiro vamos analisar a questão da (im)possibilidade de inversão do ônus da prova. Uma corrente minoritária entende que haveria possibilidade de inversão do ônus da prova, com fundamento nos artigos 3º, §2º e 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, contudo, a jurisprudência[2] recente já vem sendo edificada em sentido contrário, afastando a inversão uma vez que nestas hipóteses a relação contratual existente entre as partes seria comercial e não de consumo, visto que nenhuma das partes seria destinatária final do serviço de transporte, hipótese em que não incidiria o Código de Defesa do Consumidor, mas sim a regra geral do ônus da prova (artigo 373 do CPC/2015).

Superada a questão relacionada a inversão do ônus da prova, questiona-se: em tais demandas a quem caberia o ônus da prova?

Como visto, a controvérsia aqui suscitada é a de estabelecer sobre quem recai o ônus da prova de comprovar o preenchimento dos requisitos para a incidência da penalidade prevista no artigo 8º da Lei nº 10.209/2001, qual seja, o pagamento em dobro do valor do frete proveniente do não adiantamento do vale-pedágio.

Sobre o tema, destaca-se o julgamento datado de 8/9/2020, do REsp 1.714.568/GO[3], de relatoria do Ministro Marco Aurélio, da 3ª Turma do STJ, o qual concluiu que "(…)3.2. Incumbe ao transportador, ainda, comprovar o valor total devido em cada frete realizado e que deixou de ser antecipado, especificando as praças de pedágio e os valores respectivos existentes no percurso entre a origem e o destino da carga. Feito isso, inverte-se o ônus probatório (artigo 333, II, do CPC/1973, atual artigo 373, II, do CPC/2015), cabendo ao embarcador a demonstração de que o vale-pedágio obrigatório foi entregue antecipadamente ao transportador, no ato de cada embarque que lhe era exigível tal obrigação (…)".

Nesta perspectiva, caberia ao autor (artigo 373, I, do CPC/2015) a comprovação do valor dos fretes, bem como a existência das praças de pedágios e seus respectivos valores à época da prestação de serviços, considerando a origem e destino da carga. Ora, a interpretação do julgado do STJ é clara ao definir o dever de comprovação do valor do frete e da existência das praças de pedágios e seus respectivos valores, ou seja, deve comprovar e especificar as praças de pedágios e os respetivos valores dos pedágios não antecipados na data do frete e não o dever de juntar os comprovantes de pagamento dos pedágios, o que é bem diferente da afirmação da Corte Superior.

Não é outra a interpretação do julgado do STJ na ótica do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, senão vejamos a opinião do desembargador Umberto Guaspari Sudbrack, da 12ª Câmara Cível ao julgar o Agravo de Instrumento nº 5048918-71.2022.8.21.7000[4], que assim concluiu: "(…) compete ao autor comprovar os contratos de frente e a existência de praças de pedágio nas rotas que efetuou para concretizar a contratação entabulada.(…) Esta Câmara entende que não há necessidade de comprovação do pagamento do pedágio. Com efeito, na hipótese de o autor demonstrar a contratação e a existência de praça de pedágios à época do frete, cabe à empresa ré acostar aos autos o comprovante de adiantamento do vale-pedágio".

Em síntese: a) Não cabe a inversão do ônus da prova nas relações entre contratante e contratado para prestar o serviço de frete;

b) Cabe ao autor – contratado/subcontratado — (artigo 373, I, do CPC/2015) comprovar ter efetuado o frete, bem como comprovar a existência das praças de pedágios, especificando sua localização e valor dos pedágios à época do frete, considerando as concessionárias e praças existentes entre a origem e destino dos fretes;

c) Feito isso, inverte-se o ônus probatório (artigo 373, II, do CPC/2015), cabendo ao demandado — embarcador/tomador/subcontratante — a demonstração de que o vale-pedágio obrigatório foi entregue antecipadamente ao transportador, no ato de cada embarque que lhe era exigível tal obrigação, contemplando todas as praças de pedágios transitadas pelo contratado.


[1] CINTRA, Antônio Carlos de Araujo, Grinover, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R. in Teoria Geral do Processo, 10ª Edição, Ed. Malheiros, p.349.

[2] Agravo de Instrumento, Nº 50955973220228217000, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Ines Claraz de Souza Linck, Julgado em: 24-08-2022.

[3]  REsp n. 1.714.568/GO, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/9/2020, DJe de 9/9/2020.

[4] Agravo de Instrumento, Nº 50489187120228217000, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em: 28-06-2022.

Autores

  • é advogado no Rio Grande do Sul, mestre pela PUC-RS, especialista e membro da Academia Brasileira de Direito Processual (ABDPC), além de professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA).

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