Ainda falta empenho institucional na produção de provas em processo criminal
21 de maio de 2024, 6h33
Passados mais de três anos e seis meses desde o julgamento do HC 598.886-SC, pela 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça, ainda se verifica muita dificuldade de assimilação da nova orientação jurisprudencial ali definida ali definida.

Vale recordar que até então os tribunais e juízes entendiam que a não observância do que dispõe o artigo 226 do Código de Processo Penal, relativamente ao ato de reconhecimento formal de pessoas suspeitas de crimes, não era suficiente para anular tal diligência, por se considerar que o procedimento para a realização do ato configurava uma mera recomendação do legislador, não se exigindo, portanto, o cumprimento dos requisitos de sua validade.
Nos anos que se seguiram a essa mudança de rumos da jurisprudência, as duas Turmas de competência criminal do STJ produziram centenas de decisões em conformidade com a nova orientação. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, ratificou igual posicionamento, ao julgar o RHC 206.846/SP em 23/2/2022.
Além disso, em 19 de dezembro de 2022 o Conselho Nacional de Justiça editou — fruto de grupo de trabalho sobre o tema — a Resolução nº 484, que minudenciou os cuidados que se devem adotar para que o reconhecimento de uma pessoa possa servir como prova da autoria do crime que lhe é atribuído que lhe é atribuído.
Resumidamente, tanto o STF, quanto o STJ e o CNJ assentaram que:
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O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa;
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A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas;
A despeito da clareza e da forca normativa da Resolução do CNJ e da unívoca e clara jurisprudência do STJ, continuam muitos agentes públicos e instituições a ignorar as novas diretrizes, insistindo em produzir e em utilizar uma prova feita em total descompasso com o que se espera de um Estado minimamente preocupado em não somente cumprir as decisões de quem é, por definição constitucional, incumbido de interpretar, definitivamente, as leis federais (STJ) e a Constituição (STF), como, mais ainda, com o que se espera de um Estado comprometido com a observância do devido processo legal e com o respeito às garantias individuais de quem se vê investigado ou processado criminalmente, o que inclui o direito a não ser condenado com o uso de provas ilícitas (artigos 3º, III, e 5º, LIV, LV e LVI).
Não se tem notado empenho institucional relevante, por parte da magistratura nacional, em seguir essa nova diretriz normativa. Há algumas exceções, que precisam ser mencionadas.
Bons exemplos
A primeira, uma recomendação, já em 2022, do então 2º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), desembargador Marcus Henrique Pinto Basílio, para que magistrados fluminenses “reavaliem, com a urgência necessária, as decisões em que a prisão preventiva do acusado foi decretada tão somente com base no reconhecimento fotográfico operado sem a observância do disposto no artigo 226 do CPP, realizado no bojo do procedimento investigatório respectivo, inclusive nos feitos suspensos na forma prevista no artigo 366 do CPP” (Aviso 2ª VP nº 01/2022 — aqui).
Outras exceções são mais recentes: a primeira vem do Rio de Janeiro, onde, ano passado, foi sancionada lei que, seguindo as orientações da Resolução nº 484/CNJ, estabelece requisitos e procedimentos para a validação do reconhecimento formal de pessoas.
Destacam-se, entre outros dispositivos da lei: o artigo 1º, § 2º, que prevê a necessidade de que a submissão de pessoa a reconhecimento, na condição de investigada ou processada, deva ser “embasada em outros indícios de sua participação no delito, como a averiguação de sua presença no dia e local do fato ou outra circunstância relevante”; o artigo 5º, verbis:
Art. 5º Os referidos procedimentos da presente lei visam impedir a condenação de inocentes e possibilitar a responsabilização dos culpados, a partir da adoção de procedimentos probatórios construídos à luz das evidências científicas e das regras do devido processo legal, que não constituam fator de incremento da seletividade penal e injustiças em procedimentos de matéria criminal (Lei nº 10.141, de 18 de outubro de 2023).
Também merece alusão a benfazeja iniciativa constante da Portaria DGP-26, de 30 de outubro de 2023, da Polícia Civil do Estado de São Paulo, cujo artigo 140, § 1º estabelece que “ o reconhecimento de pessoas, por sua natureza, consiste em prova irrepetível, realizada uma única vez, consideradas as necessidades da investigação policial e da instrução processual, bem como os direitos e garantias da pessoa investigada”.
Cito, por fim, o Procedimento Operacional Padrão 5, da Polícia Civil de Santa Catarina, “visando à realização do ato investigatório de acordo com as normas legais, com a jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, bem como com as garantias e formalidades a ele inerentes”, de modo a “apresentar os fundamentos técnico-científicos que justificam a realização do reconhecimento de pessoas suspeitas”.
São iniciativas institucionais de relevo, porque provenientes e dirigidas a quem realiza ou avalia o ato de reconhecimento formal de pessoas, além do quê são atos normativos oriundos de unidades federativas com significativo número de investigações e processos criminais, atuais ou futuros.
Entretanto, além de se constituírem em exceções, não me parece estejam tais orientações sendo seguidas à risca pelas unidades policiais dos respectivos estados, dada a quantidade de casos que ainda chegam aos Tribunais Superiores versando o tema do reconhecimento de pessoas.
Com efeito, a comprovação dessa apatia institucional sobre o tema se extrai da quantidade de habeas corpus diariamente impetrados, no STJ, para desconstituir prisões ou condenações baseadas exclusivamente em reconhecimentos formais realizados em total desconformidade com o modelo normativo. Apenas em meu gabinete não são menos que dois habeas corpus por dia com tal pedido.
Resultado preocupante
Ademais, em 2022, fizemos levantamento de processos julgados por todos os ministros da 3ª Seção, o que indicou, no período entre 27/10/2020 e 19/12/2021, a ocorrência de 89 julgados, sendo 28 por decisão colegiada e 61 por meio de decisões monocráticas, nas quais se absolveu o acusado ou se revogou sua prisão.
Repetimos agora a pesquisa, abrangendo todo o ano de 2023. O resultado é preocupante, pois, de 268 acórdãos e 4.674 decisões monocráticas em que se fez referência ao tema “reconhecimento formal”, 19 acórdãos e 358 decisões monocráticas tiveram como resultado a absolvição do paciente/recorrente ou a revogação de sua prisão, totalizando, portanto, 377 julgados (um aumento de cerca de 400% em relação à pesquisa anterior) reconhecendo a nulidade ou insuficiência do reconhecimento pessoal (predominantemente por meio fotográfico) feito na instância de origem.

Ao analisar-se um a um os quase 5.000 processos com tal referência, notou-se que a maioria dos julgados que absolveram o réu ou revogaram sua prisão tiveram como único elemento de prova o reconhecimento fotográfico, sem observar os procedimentos legais previstos no artigo 226 do CPP.
Em vários dos inquéritos que deram origem a processos criminais, o suspeito foi reconhecido por fotografia 3×4, em preto e branco, meses após o fato investigado, e não raramente a partir da apresentação da foto, pela autoridade policial à testemunha ou vítima, já com induzimento de ser da pessoa suspeita. Houve casos de remessa por e-mail ou WhatsApp de uma fotografia à vítima para que confirmasse ser da pessoa autora do roubo.
Ou seja, parece que nada mudou para uma considerável parte da Magistratura, do Ministério Público e da Polícia deste país: muitas pessoas continuam a ser presas e condenadas com base em uma prova ilegal, ou insuficiente para tanto.
Sob a perspectiva do sistema de justiça criminal, é possível concluir, apenas tomando como referência os processos da pesquisa feita sobre a base de dados de 2023, que, nesses 377 casos em que houve concessão do pedido, pelo menos um membro do Ministério Público que atuou no feito e magistrados que decidiram pedidos na instância de origem mantiveram processos e prisões em desacordo com a lei e com a Constituição, onerando excessiva e desnecessariamente o Superior Tribunal de Justiça com os recursos manejados pela defesa para desconstituir referida prova.
E sob a ótica do jurisdicionado, os números mostram uma realidade incômoda e perversa: uma quantidade enorme de pessoas foram investigadas, processadas e eventualmente presas e condenadas com base exclusivamente em prova viciada, ilegal e cientificamente inidônea para atestar a autoria delitiva da pessoa submetida ao reconhecimento formal.
Insisto: esses números somente existem porque um delegado de polícia realizou a prova de reconhecimento formal sem observar o que determina a lei; porque um promotor de justiça, mesmo incumbido de exercer o papel de fiscal da correta aplicação da lei, iniciou um processo apoiado apenas nessa prova ilegalmente colhida; e porque um magistrado, a quem compete realizar justiça e dizer o direito, deu início ao processo, condenou ou ordenou a prisão de quem foi acusado com base exclusivamente nessa prova. E mais, esses processos somente chegaram ao STJ porque órgão fracionário de um Tribunal de Justiça, em julgamento de apelação, revisão criminal ou habeas corpus, manteve a ilegalidade da prova.
Não sou ingênuo em afirmar que em todos esses casos nos quais se reconheceu a ilegalidade ou insuficiência da prova o réu não foi o autor do crime a que respondeu; em muitos desses processos, contudo, pessoas acusadas de crimes como roubos, estupros e homicídios, podem ter sido beneficiadas porque o Estado, por seus órgãos de investigação e de persecução penal, não foi capaz de produzir um conjunto probatório legal e idôneo para dar lastro a uma decisão judicial ética e epistemicamente sustentável.
Não posso deixar assim de perceber que uma infinidade de pessoas estão sendo mantidas presas, processadas ou condenadas, sem que tenham cometido o crime de que são acusadas, enquanto os efetivos autores desses delitos continuam impunes. Sim, pois para cada inocente injustamente preso ou condenado há um culpado não alcançado pelos braços da justiça.
Os casos que vêm à tona reportam situações dramáticas e ignominiosas, como a de Paulo Alberto, um jovem negro que, com base em fotografia extraída de redes sociais, foi acusado da prática de mais de 60 roubos em Belfort Roxo, na Baixada Fluminense, sem sequer uma única prova ter sido produzida, além do irregular reconhecimento fotográfico que permitiu à autoridade policial, comodamente, encerrar as respectivas investigações.
Esse rapaz passou três anos preso, em um “inferno” — como ele próprio definiu o presídio — longe do convívio dos filhos, irmã e mãe. Perdeu o emprego, perdeu a alegria de viver, perdeu a dignidade e perdeu um tempo de vida que não lhe poderá mais ser restituído que não lhe poderá mais ser restituído .
Ainda na semana passada a 5ª Turma do STJ libertou um homem que permaneceu 12 anos preso porque foi condenado em vários casos de estupro, todos eles com apoio em reconhecimentos, por foto e pessoalmente, sem a observância das regras legais sobre tal prova. A certeza da inocência do preso, cujas penas já somavam 170 anos de prisão, veio com a realização de exames de DNA.
Como dito pelo relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, “O Innocence Project Brasil, com ajuda do Ministério Público em Barueri, obteve cinco exames de DNA, todos elaborados pelo Instituto de Criminalística do Estado de São Paulo, os quais demonstram, sem sombras de dúvida, que o paciente não é o estuprador noticiado“.
Inúmeros casos similares, de comprovado erro judiciário como esses, poderiam ter sido evitados.
A responsabilidade, portanto, é de todos os profissionais do Direito que atuaram nesses processos. A responsabilidade é, em última análise, do Estado que, em visão e atuação meramente utilitarista, nega sua função primária de observar, com exação, o que determina a lei e a Constituição, a qual reconhece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, a liberdade e a justiça como como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, e a proteção do indivíduo contra atos abusivos e ilegais praticados pelo próprio Estado.
Já é hora de todos se empenharem para reverter esse quadro de deficiência da atividade probatória em investigações criminais. É preocupante que continuamos a trabalhar com a lógica da confissão ou de depoimentos testemunhais como bastantes para o esclarecimento de crimes. Novas tecnologias, novas técnicas de investigação precisam substituir esses métodos primários de se buscar a verdade.
A ciência deve predominar sobre a opinião; a racionalidade da prova deve substituir o subjetivismo como parâmetro epistêmico. Não há mais espaço para voluntarismos, para comodismo institucional, para negligências que afetam, definitivamente, a vida de seres humanos.
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