Opinião

ADI 7.460 sob a perspectiva da declaração de inconstitucionalidade da prescrição

Autor

  • Rafael Caselli Pereira

    é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo) e advogado.

16 de outubro de 2023, 12h17

A Lei n° 10.209/2001 instituiu o vale-pedágio obrigatório, para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário, nas rodovias brasileiras (artigo 1º). No sentido de evitar uma prática muitas vezes abusiva adotada pelas empresas tomadoras e/ou embarcadoras das cargas, estabeleceu-se que o valor do vale-pedágio não integra o valor do frete, não será considerado receita operacional ou rendimento tributável, nem constituirá base de incidência de contribuições sociais ou previdenciárias (artigo 2º).

Após anos de intensos debates jurisprudenciais sobre a validade da indenização pela dobra do valor do frete pelo não fornecimento antecipado do vale-pedágio, concluiu-se pela constitucionalidade do artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001. Tal conclusão se deu na data de 27/03/2020, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 6.031 [1] proposta pela Confederação Nacional da Indústria, fixando precedente vinculante e obrigatório sobre o tema.

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Ocorre que a Lei nº 10.209/2001 sofreu alteração instituída pela Lei nº 14.229, de 21/10/2021. Estamos nos referindo ao artigo 4º da Lei nº 14.229/2021 que reduziu o prazo prescricional para 12 meses, através da inserção do parágrafo único no artigo 8º, na Lei nº 10.209/2001, dispondo que: "Parágrafo único. Prescreve em 12 meses o prazo para cobrança das penas de multa ou da indenização a que se refere o caput deste artigo, contado da data da realização do transporte". Antes da alteração legislativa o prazo prescricional pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça era o de dez anos [2], ou seja, reduziu-se substancialmente o prazo de prescrição.

A nova disposição legal entrou em vigor na data de sua publicação (cf. artigo 7º, inciso I da Lei nº 14.229/2021), isso é, em 22/10/2021 (dia em que a referida Lei foi publicada no Diário Oficial da União), contudo, por ausência de qualquer regra de transição e direito intertemporal, faz-se necessário demonstrar como se daria o alcance do prazo prescricional para os fretes prestados antes e após a vigência da Lei nº 14.229, em 21/10/2021.

Sobre o tema da irretroatividade dos efeitos da Lei nº 14.221/2021 para os fretes prestados antes da vigência da referida lei, já tivemos oportunidade de abordar o tema e expressar nossa opinião [3].

Enquanto a jurisprudência é controvertida sobre a questão da aplicação da nova lei para os fretes prestados antes ou somente para os fretes prestados após a data da sua vigência (21/10/2021), havendo ainda, uma terceira corrente que entende pela aplicação da nova lei apenas para as ações ajuizadas após o transcurso de 12 (doze) meses da vigência da nova lei (21/10/2022), inaugurou-se no dia 21/9/2023 um novo capítulo sobre o tema com a proposta da ADI 7.460 [4].

A CNTA e Conftac ajuizaram ação direta de inconstitucionalidade (ADI), sob o patrocínio dos advogados doutor Alziro Motta Santos, dr. Helder Eduardo Vicentini e do autor deste artigo, dr. Rafael Caselli Pereira, e conta parecer do professor doutor José Miguel Garcia Medina.

O objetivo da ADI é declarar inconstitucional o artigo 4º da Lei nº 14.229/2021, que reduziu o prazo prescricional para 12 meses para cobrança da indenização pela dobra do frete pela não antecipação do vale-pedágio obrigatório (parágrafo único no artigo 8º da Lei 10.209/2001).

O parágrafo único do artigo 8º da Lei 10.209/01 foi aprovado dentro de uma medida provisória que tratava de outro tema, em nada relacionado com indenização de vale-pedágio. A MP 1050/21, em que foi sorrateiramente incluída a prescrição para cobrança da indenização pelo descumprimento do vale-pedágio, tratava originalmente apenas sobre alterações no Código de Trânsito Brasileiro, tendo promovido alterações nas Leis nº 7.408/1985 (sobre tolerância na pesagem de carga em veículos de transporte) e nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro, para dispor sobre liberação de veículo removido por autoridade de trânsito).

O fundamento para declarar inconstitucional o referido artigo é que tal alteração fora incluída no formato das "emendas jabutis", ou seja, sem vinculação temática alguma com o texto original da MP 1050/21. Na prática, a questão da indenização pela dobra do frete não possui qualquer relação com as alterações do CTB, destacando-se que os relatores da Câmara dos Deputados e do Senado sequer mencionaram em seus relatórios qualquer fundamento sobre a questão da prescrição da indenização, impossibilitando a sociedade, em especial as categorias de transporte envolvidas de debater tal alteração no processo legislativo, caracterizando-se inconstitucional.

Ao analisar a questão, o professor doutor José Miguel Garcia Medina em parecer elaborado sobre o tema concluiu que "(…) os dispositivos previstos na Medida Provisória nº 1.050/2021 dispunham sobre questões relacionadas a direito administrativo. O artigo 8.º da Lei nº 10.209/2001 e seu parágrafo único, adicionado pela Lei nº 14.229/2021, cuidam de relação de direito privado existente entre embarcador e transportador. Ao se cotejar as exposições de motivos da Medida Provisória, também não se encontra algo que, de algum modo, sirva de amparo para a regra que veio a ser adicionada pela Lei nº 14.229/2021 à Lei nº 10.209/2001. Ao contrário, as razões contidas nas referidas exposições de motivos servem para extremar a Medida Provisória da disposição contida no parágrafo único do artigo 8º da Lei nº 10.209/2001. Não causa espanto o fato de, na tramitação legislativa do projeto de conversão da medida provisória em lei, inexistir qualquer justificativa para o acréscimo que veio a ser realizado. Está-se, no caso, diante de autêntico exemplo de 'emenda jabuti' ou de 'contrabando legislativo', expressões corriqueiramente utilizadas para apontar o vício existente no acréscimo de regras que não guardam pertinência com a medida provisória que deu origem ao processo legislativo. No caso aqui analisado, está-se diante de hipótese qualificada do vício, caracterizada pela absoluta ausência de debate a respeito da redação acrescida e aqui apontada como formalmente inconstitucional, incorporada ao texto do projeto por emenda sem autoria ou justificativa conhecidas. Há, aqui, um ponto que chama a atenção. Não é de se estranhar que a previsão da regra aqui analisada na versão aprovada pela Lei nº 14.229/2021 guarde alguma relação com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 6031, que declarou que o artigo 8º, caput, da Lei nº 10.209/2001 é constitucional. Essa decisão transitou em julgado em 2020, afastando qualquer dúvida quanto à constitucionalidade do direito do transportador à indenização contra o embarcador, caso este descumpra as obrigações relacionadas à antecipação obrigatória do vale-pedágio. Mas eis que, em seguida, surge regra que não apenas mutila, mas, na maioria dos casos, destrói o direito dos transportadores, reduzindo o prazo prescricional para o exercício da pretensão indenizatória de dez anos para 12 meses".

A ADI 7.460 já está em tramitação e sob a relatoria do ministro Luiz Fux, o qual destacou ao receber a ADI que "a matéria se reveste de grande relevância e apresenta especial significado para a ordem social e a segurança jurídica. Nesse particular, enfatizo a conveniência de que a decisão venha a ser tomada em caráter definitivo, mediante a adoção do rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei federal 9.868/1999. Ex positis, notifiquem-se as autoridades requeridas, para que prestem informações no prazo de dez dias. Após, dê-se vista ao Advogado Geral da União e à Procuradora-Geral da República, para que cada qual se manifeste, sucessivamente, no prazo de cinco dias".

Diante deste novo e relevante capítulo, agora tratando da legalidade (constitucionalidade) da substancial alteração da redução da prescrição envolvendo a indenização pela dobra do frete, pela não antecipação do vale-pedágio e independente do efeito vinculante e ex tunc (todos os efeitos da inaplicabilidade da norma retroagem no tempo até a data de sua criação), entende-se necessária a suspensão de todas as ações ajuizadas após o prazo de 12 meses da vigência da nova lei até julgamento do mérito da ADI 7.460, sob pena de prejudicar a segurança jurídica de centenas de ações ajuizadas após 21/10/2022, no caso de ser acolhida a prescrição prevista no ainda vigente parágrafo único no artigo 8º da Lei 10.209/2001.

 


[1] STF – ADI: 6031 DF, Relator: Cármen Lúcia, Data de Julgamento: 27/03/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 16/04/2020.

[2] STJ – REsp: 1520327 SP 2011/0283355-0, relator: ministro Luis Felipe Salomão, Data de Julgamento: 05/05/2016, T4 – Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 27/05/2016.

Autores

  • é advogado no Rio Grande do Sul, mestre pela PUC-RS, especialista e membro da Academia Brasileira de Direito Processual (ABDPC), além de professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA).

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