Opinião

Instrução Normativa nº 2.179/2024 da Receita e presunção de inocência

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20 de março de 2024, 19h30

Nos últimos anos tem ocorrido um movimento de “flexibilização” do princípio da presunção de inocência.

Desde o julgamento da ADC 29 [1], que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar 135/10 (Lei da Ficha Limpa), o Supremo Tribunal Federal, desviando-se do entendimento anterior, consolidado no voto do ministro Celso de Mello na ADPF 144 [2], passou a defender uma interpretação restritiva do artigo 5º, LVII, da Constituição, como se fosse aplicável apenas à esfera criminal.

Na ocasião, formou-se maioria pela constitucionalidade da previsão do artigo 1º, I, ‘e’, da Lei Complementar nº 64/90, segundo o qual são inelegíveis para qualquer cargo “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”. Passou-se, então, a aceitar que condenações não definitivas pudessem restringir direitos do cidadão, mesmo que fossem depois reformadas.

Gostemos ou não, estamos na era de uma espécie de constitucionalismo “relativizante”, que, a pretexto de preservar o texto constitucional “atualizado a seu tempo” e atender anseios da sociedade [3], guia-se muita vez por opções menos jurídicas que políticas.

A ideia de que o juiz, de uma forma ou de outra, cria o direito, quando aplicada pelas cortes constitucionais, gera efeitos sistêmicos incontestáveis e, se não vier acompanhada de uma dose considerável de prudência, tem potencial para desequilibrar a tripartição de poderes.

Ainda sobre o tema, mais recentemente, no julgamento conjunto das ADCs 43, 44 e 54, o STF voltou a entender pela inconstitucionalidade da prisão em segunda instância (antes do trânsito em julgado da condenação), reafirmando a importância da garantia constitucional da presunção de inocência (ou de não culpabilidade), como fundamento do Estado democrático de direito brasileiro.

Portanto, trata-se de um tema que, nada obstante a clareza expressa no texto constitucional, tem gerado grandes debates e reflexões.

Lei de Improbidade

Em 2021, foi a vez da Lei de Improbidade (Lei Federal nº 8.429/92) ser reformada, seguindo um movimento de correção de rumos voltada à segurança jurídica na aplicação das sanções aos agentes públicos ímprobos.

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Não interessa a esse debate tratar de todas as alterações promovidas pela Lei Federal nº 14.230/21. Importa trazer apenas o § 9º do artigo 12 da LIA, segundo o qual “as sanções previstas neste artigo somente poderão ser executadas após o trânsito em julgado da sentença condenatória”.

O texto da lei é claríssimo ao prever o trânsito em julgado como condição para se iniciar a execução da sentença condenatória. Tratando-se de norma processual, sua aplicação é imediata aos processos em curso; vale dizer, todo processo em que houver condenação contra a qual caiba recurso deverá seguir esse comando, vedada a execução da sentença.

Entretanto, no último dia 5 de março, a Receita Federal publicou a Instrução Normativa nº 2.179/2024, que dispõe sobre “regimes especiais de tributação e pagamento unificado de tributos aplicáveis às incorporações imobiliárias e às construções de unidades habitacionais contratadas no âmbito dos Programas Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) e Casa Verde e Amarela”.

O RET — regime especial de tributação — nada mais é que um benefício fiscal concedido a determinados contribuintes que preencham certos requisitos impostos pelo governo, com a finalidade de fomentar certas atividades econômicas específicas, normalmente de interesse social, como é o caso da construção de unidades habitacionais pelos programas Minha Casa Minha Vida e Casa Verde Amarela. Basicamente, o regime consiste na simplificação de arrecadação e redução de alíquotas.

Ocorre que o artigo 5º, V e VI, da referida IN 2.179/24, ao prever as condições para os interessados optarem pelo RET, inclui a inexistência de “sentenças condenatórias decorrentes de ações de improbidade administrativa proposta contra o sócio majoritário ou administrador com base na Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 e de “sanções penais e administrativas derivadas de conduta e atividades lesivas ao meio ambiente, aplicadas contra sócio majoritário ou administrador com base na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.

A um olhar de certa forma ingênuo, pode parecer instintivo (ou óbvio) que essas duas condições previstas na IN pressupõem o trânsito em julgado das decisões condenatórias, tanto as relativas a atos de improbidade quanto aquelas decorrentes de lei de crimes ambientais. Em outras palavras, somente as condenações definitivas impediriam a empresa a optar pelo RET.

No entanto, além de ultimamente ser comum e necessário justificar o óbvio, o texto da IN não colabora.

O referido inciso V prevê, como condição de aderência ao RET, a inexistência de “sentenças condenatórias decorrentes de ações de improbidade administrativa proposta contra o sócio majoritário ou administrador“.

Impedimento de opção pelo RET

Em primeiro lugar, é evidente que, além de depender do trânsito em julgado, a sentença que impedirá a opção ao RET deverá ter condenado o sócio majoritário ou o administrador da empresa; não basta a simples condenação “decorrente” de uma ação proposta contra o sócio ou administrador. Ou seja, a ação pode ter sido proposta contra sócio majoritário ou administrador, e o pedido pode ter sido julgado procedente, mas é imprescindível que a condenação seja do sócio ou do administrador, não apenas “decorrente da ação”.

Em segundo lugar, lembre-se que o artigo 12 da LIA prevê, entre as sanções que podem ser aplicadas aos condenados por improbidade, a “proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário”.

Não é preciso muito esforço para se notar que a proibição prevista na LIA impediria, por si só, a adesão ao RET pelas empresas das quais o condenado seja sócio majoritário.

Agora, imagine-se a hipótese de a sentença não ter aplicado essa sanção específica — porque o caput do artigo 12 permite a aplicação isolada ou cumulativa das cominações. Então, como compatibilizar esse efeito da condenação com eventual não aplicação, pela sentença condenatória, da sanção de proibição de receber benefícios e incentivos fiscais?

Se o réu foi absolvido no processo de improbidade, não parece razoável que perca o direito de receber benefício fiscal, sobretudo quando essa restrição é prevista em ato infralegal e, mais ainda, quando é automática.

Ora, se a impossibilidade de optar pelo regime especial decorre da condenação por ato de improbidade, é de se esperar que haja uma relação entre as sanções.

Pode-se dizer que o artigo 12 faz a ressalva de que as sanções ali previstas não excluem as aplicáveis na esfera penal e administrativa.

Mas esse argumento não procede, já que a previsão de separação das instâncias de controle da probidade, evidentemente, pressupõe a existência de processos específicos voltados à apuração da responsabilidade dos agentes sob pena de se infringir o devido processo legal.

Além disso, o texto da lei se refere a “sanções administrativas previstas na legislação específica”. Ou seja, é necessário haver previsão expressa em lei a respeito da sanção administrativa decorrente da prática de ato ímprobo.

Assim, se a sentença não condenou à proibição de receber benefícios fiscais, a proibição imposta pela IN é ilegal.

Tudo que se disse sobre as condenações por improbidade aplica-se ao inciso VI, que trata das “sanções penais e administrativas derivadas de conduta e atividades lesivas ao meio ambiente, aplicadas contra sócio majoritário ou administrador com base na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998“.

Nesse caso, o texto veio um pouco melhor, porque prevê a restrição apenas para quem tiver sido sancionado, ou seja, já tiver cumprido ou estiver cumprindo a sanção. Caso contrário, também seria necessária a definitividade da condenação, seja penal seja administrativa.

Todavia, há problema pior, que envolve o devido processo legal e os limites subjetivos e objetivos das sanções.

Meio ambiente

A simples existência de sanção penal ou administrativa decorrente de atividades lesivas ao meio ambiente “aplicadas contra sócio majoritário ou administrador” não é capaz de, automaticamente, gerar mais uma sanção, do ponto de vista fiscal.

Aqui também não pode um ato infralegal tolher o direito do contribuinte (pessoa jurídica) de aderir a um regime menos oneroso porque o administrador ou sócio majoritário foi sancionado por ilícito ambiental.

Não é demais conferir que a Lei de Crimes Ambientais prevê expressamente a pena restritiva de direitos consistente na “proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações” (artigo 22, III).

Como se defendeu acima, não poderia a IN aplicar uma sanção (restringir o exercício de um direito) quando, no processo criminal, o juiz não a aplicou, ou quando a pessoa jurídica (cujo direito está sendo restrito) nem ao menos tenha participado do processo.

Importa, ainda, lembrar da garantia de que nenhuma pena “passará da pessoa do condenado (artigo 5º, XLV, CF), o que significa dizer que a sanção aplicada a um sócio majoritário ou administrador, para ser estendida à pessoa jurídica, precisará, antes de tudo, preencher duas condições: que o condenado permaneça sócio ou administrador e que a sanção tenha decorrido da prática de atos ligados à atividade da empresa.

Ou seja, que a pessoa jurídica também tenha sido condenada. Basta imaginar a hipótese de o administrador ou sócio ter sido punido porque pescou um dourado em período de defeso (artigo 34 da Lei de Crimes Ambientais). Não faz nenhum sentido que isso afete o direito da empresa de optar pelo RET.

Por fim, é preciso afastar a possível ideia de que, por se tratar de uma benesse, a opção pelo RET não é um direito, e Estado pode impor as condições que quiser. Não é bem assim. Considerando o ambiente concorrencial do mercado, a impossibilidade de aderência a um regime menos gravoso faz toda a diferença. As condições para o exercício de direitos devem ser balizadas pela lei, pela razoabilidade e pela proporcionalidade.

No caso da prática de atos de improbidade, de duas, uma: ou a sentença condenou à proibição de receber benefícios fiscais, e a previsão é inócua; ou a sentença não previu essa sanção, e não poderá a norma infralegal aplicá-la.

Quanto às sanções decorrentes de ilícitos ambientais, é necessário que os respectivos processos tenham tratado expressamente da proibição de receber incentivos fiscais ou que o ilícito esteja relacionado com a atividade da empresa, sob pena a exigência estatal, além de ser inconstitucional (artigo 5º, XLV, LIV e LV, CF), não ser razoável e não atender o comando do artigo 21 do Decreto-Lei nº 4.657/42 (Lindb).

Em resumo, o princípio da presunção de inocência (ou não culpabilidade) impede que o Estado restrinja direitos do cidadão até que a condenação seja definitiva. Do mesmo modo, sem o devido processo legal, ainda que coberta pela definitividade, uma condenação não poderá atingir terceiros.

Esperamos, todavia, que, na aplicação da IN aqui tratada, o óbvio prevaleça sem necessidade de explicações.

 


[1] “[…] 2. A razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético-profissional. 3. A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal” — ADC 29 – Relator(a): Min. LUIZ FUX, v. m., j. 16.02.12.

[2] “[…]PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA – EVOLUÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA – O TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CARÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL – O PROCESSO PENAL COMO DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA – EFICÁCIA IRRADIANTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA – POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DESSE PRINCÍPIO AO ÂMBITO DO PROCESSO ELEITORAL – HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE – ENUMERAÇÃO EM ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 14, §§ 4º A 8º) – RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR “OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE” – NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) – IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO “CORNERSTONE” EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA – PRIVAÇÃO DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL, POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – NECESSIDADE, TAMBÉM EM TAL HIPÓTESE, DE CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL – COMPATIBILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 (ART. 20, “CAPUT”) COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, c/c O ART. 37, § 4º) – O SIGNIFICADO POLÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA – RELEITURA, PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, DA SÚMULA 01/TSE, COM O OBJETIVO DE INIBIR O AFASTAMENTO INDISCRIMINADO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LC 64/90 (ART. 1º, I, “G”) – NOVA INTERPRETAÇÃO QUE REFORÇA A EXIGÊNCIA ÉTICO-JURÍDICA DE PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO – ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL JULGADA IMPROCEDENTE, EM DECISÃO REVESTIDA DE EFEITO VINCULANTE” — ADPF 144. Rel. Min. Celso de Mello, v. m., j. 06.08.08.

[3] É, no mínimo, curioso falar-se em atender os anseios da sociedade ao considerar constitucional a hipótese de inelegibilidade pela existência de condenação de órgão colegiado. Se a sociedade quer tanto tornar inelegíveis os cidadãos nessas condições, bastaria neles não votar. Afinal de contas, nesses casos, o eleitor é quem primeiro legislador.

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