Opinião

A palavra da vítima e a presunção de inocência

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24 de julho de 2022, 7h06

"La presunzione d'innocenza è un corollario logico del fine razionalmente assegnato al processo. Se tal fine pratico consista nella scoperta della verità rispetto all'imputazione del reato, gli è naturale che vi si contrapponga l'ipotesi che l'imputato sia innocente".
(Luigi Lucchini) [1]

Uma pessoa se apresenta às autoridades, diz que foi vítima de um crime e designa o autor. Em princípio, estamos diante de uma notitia criminis (artigo 5º, II, CPP). Mas esse requerimento do ofendido, a princípio uma notitia criminis  e, em si mesmo, uma acusação contra alguém , não pode se tornar, em si e por si mesmo, uma prova em juízo? Prevê a lei que, essa mesma palavra do ofendido, tem o valor de prova (artigo 201, CPP). Seria possível considerar como "prova" da acusação em juízo, as declarações de uma vítima que, na origem, foi a causa deflagradora da persecução? Trata-se de uma situação bem singular que merece atenção, que é o tormentoso problema do valor da palavra da vítima.

Malatesta [2] procurou fazer uma abordagem bem interessante a respeito desse problema: se debruçou sobre a palavra da vítima quando ela, isoladamente, afirma o crime na sua objetividade (materialidade) e na sua subjetividade (autoria).  Para ele, é preciso tomar muito cuidado com essas situações em que a acusação pública não tem como "prova" senão a afirmação da vítima, vale dizer, o próprio fato da acusação, da qual ela, a acusação pública, retirou sua iniciativa. Segundo Malatesta, existe uma "ficção" que faz com que essa acusação isolada da vítima passe a ostentar, perante os olhos de todos, a condição de "prova" dos fatos imputados:

"No julgamento criminal, há a intervenção de uma pessoa que concretiza uma ficção jurídica: é o Ministério Público, em quem se finge encarnada a ação penal. Ora, vendo-se nesta terceira pessoa que intervém, vendo-se no Ministério Público a enunciação da acusação, como coisa distinta do testemunho único, julga-se ver neste uma prova que pode ser convincente. (…). Mas, senhores, o que é a acusação pública senão o eco daquela prova única?" [3].

Seguindo os passos de Malatesta, tomemos como exemplo os crimes de fato transeunte, cuja materialidade que os consumam dispensam o exame de corpo de delito, e, que, portanto, podem ser provados pelas palavras da vítima. Uma mulher acusa o seu chefe de assédio sexual. As palavras da ofendida-denunciante declinam o crime na sua subjetividade (autoria) e na sua objetividade (materialidade). Estamos falando de uma situação em que a própria materialidade e a autoria do crime que se imputa, sem o concurso de qualquer outra prova, nem mesmo um indício, é "provada" pelo próprio depoimento único da ofendida que é, insista-se, a própria acusação em última análise. Em outras palavras, o acusado passa a ostentar essa condição já pela força exclusiva da própria acusação que se lhe imputou a vítima.

Para Malatesta, nessas hipóteses em que a acusação pública retira toda a sua força probatória da palavra da vítima, que afirma o crime na sua subjetividade e objetividade, e é a própria causa deflagradora da ação persecutória do Estado, a Justiça jamais poderia pronunciar uma condenação. Diz ele: "Mas a acusação, não é inútil repeti-lo, na hipótese de um único testemunho acusatório, não extrai o seu conteúdo senão do próprio testemunho que é único a acusar, e cujo valor se estuda; e contudo a acusação e o testemunho único são, enquanto à origem do seu conteúdo, uma só e idêntica coisa" [4].

A presença do Ministério Público, ou de quem lhe faça às vezes subsidiariamente, isto é, do acusador em juízo, tem o perigo de disfarçar essa insídia, pois, insista-se, a palavra da vítima passa a adquirir a feição de "prova" da acusação, quando, na verdade, essa suposta "prova" da acusação não é senão a acusação mesma, da qual a acusação pública é uma tímida e pobre reprodução. Nesses casos, ensina Malatesta, essa afirmação única da subjetividade e da objetividade do crime feita pela vítima, e que é também a causa deflagradora da ação penal, deve assumir antes o valor da enunciação de um fato do que a sua prova [5], já que, "para provar a verdade da acusação não pode alegar-se o fato da acusação, sem se cometer uma vergonhosa petição de princípios" [6].

Esse problema atormenta com frequência os juízes nos crimes sexuais ou crimes de violência contra a mulher, onde a palavra da vítima costuma absorver em si toda a prova da materialidade e da autoria. Aquela trágica situação em que um afirma e outro nega, sem qualquer outra prova sob a qual a justiça possa se apoiar. Em outras palavras, a Justiça se encontra diante de duas alternativas: ou acreditar na palavra da dita vítima, e condenar; ou acreditar na palavra do acusado, e absolver.

Em casos que tais, a tarefa do juiz é de submeter a palavra da vítima a um escrutínio minucioso, pois é ela, em última análise, a verdadeira e única acusação, e, portanto, não poderia ser "prova de si mesma". O juiz deve extrair da dita vítima todos os detalhes possíveis da sua acusação, para poder extrair desta acusação elementos objetivos que possam ser confrontados e, assim, confirmados ou desmentidos, neste último caso através da palavra do réu, inclusive.

Nesse contexto, é crucial desfazer um perigoso raciocínio que costuma amaldiçoar a praxe forense quando da análise da palavra do réu. Malatesta expõe um antigo raciocínio segundo o qual milita contra a palavra do réu uma "suspeita de mentira, que o desacredita" [7]. Para ele, embora esta presunção de mentira não seja destituída de fundamento, não se pode extrair daí a negação de todo o valor probatório de sua palavra em seu próprio favor. Malatesta demonstra muito bem que se essa suspeita de mentira em desfavor do réu tivesse de prevalecer  suspeita esta que foi suscitada pelo só fato de ter sido acusado pela vítima, vale enfatizar , toda a situação em que a vítima afirma e o acusado nega teria de ser resolvida sempre em favor da palavra daquela, o que é um atentado contra a lógica, a justiça e a humanidade. Vale reproduzir novamente as palavras do tratadista italiano:

"A acusação torna suspeita a tua palavra, logo a acusação é verdadeira; ou este outro: o testemunho contra ti, conquanto único, torna suspeita a tua palavra, logo o testemunho é verdadeiro. Isto não é senão provar a verdade da acusação ou do testemunho com o fato da própria acusação ou do próprio testemunho: o mesmo pelo mesmo. Precavei-vos, senhores, contra o sofisma!" [8].

Dizer que o réu tem o interesse em mentir, como bem observado por Carmignani, é uma petição de princípio das mais perigosas, "petizione di principio perchè se è innocente ha interesse a dire la verità" [9]. Se a ordem natural das coisas nos ensina que o inocente tem o interesse em dizer a verdade, a máxima "o réu tem interesse em mentir" aplicada sic et simpliciter na realidade do processo implica necessariamente em admitir desde logo o réu  qualquer réu — como culpado, e aí a justiça, por meio dessa insídia, se insere num círculo vicioso de nunca ver na palavra do réu a verdade, por tê-lo já como culpado, e, portanto, mentiroso, pois, somente se fosse inocente teria o interesse em dizer a verdade… A rigor, a petição de princípio, nesse caso, é o reflexo de uma primeira petição de princípio muito mais traiçoeira: tratar a vítima como vítima, pelo só fato de ela, acusando alguém, se apresentar como tal. Vale destacar que a pessoa que se apresenta formalmente como vítima perante as autoridades, ao registrar uma ocorrência, p.ex., já tem a favor de si uma presunção mais favorável pelo só fato de ser rotulada como vítima, presunção criada, vale dar ênfase, pela própria iniciativa da pessoa de se apresentar como vítima. A prevalecer esse perigoso raciocínio, a acusação da vítima seria em si mesma a própria condenação. Ouçamos novamente Malatesta:

"Quando o testemunho é o único a designar a criminalidade, é ele próprio que determina sobre o réu a acusação, de que se quer extrair a suspeita de mentira contra ele. Um único testemunho indicativo do delinquente, e da acusação, são uma e a mesma coisa, e por isso, para provar a superioridade, e conseguintemente a verdade da acusação, ou do testemunho único, se assim se quer dizer, não se pode alegar o fato da própria imputação, ou do próprio testemunho único, sem uma vergonhosa petição de princípio" [10].

Tem-se, então, de um lado, o réu, com a desconfiança que se lhe dispensa pelo só fato de ser réu, e, do outro, a vítima, que tem a tendência de ser tratada mais favoravelmente pela só circunstância de ter se rotulada como vítima. A própria palavra vítima já suscita uma solidariedade em favor da pessoa assim tratada. A tarefa do juiz, cumpre reiterar, não é se ater a esse pobre e enganoso aspecto formal, sob pena de recair nesse perigoso maniqueísmo "réu x vítima", que conduz àquele tenebroso raciocínio de desacreditar o primeiro e valorizar a palavra da segunda.

Se pensarmos cuidadosamente, a petição de princípio mais perigosa, deve-se dar ênfase, é justamente a de tratar qualquer pessoa que se afirma vítima de um crime como uma efetiva vítima, que é o que se faz quando se dá à sua palavra uma validade a priori. Se essa dita vítima já entra no processo penal considerada como tal, isso significa dar como certo que um crime ocorreu, afinal, "há uma vítima". Mas geralmente costumamos esquecer que, se o processo penal existe para apurar se o réu é de fato culpado, isso significa dizer que, ipso facto, já que a presunção de inocência o socorre, o que está em apuração é se a acusação da vítima é verdadeira. Por outras palavras, o que está em apuração é precisamente se a vítima é realmente uma vítima. Sucede então que, se o réu for inocente, não será ele o interessado em mentir, mas a vítima, ou melhor, a pseudovítima.

Devemos então nos acautelar do fato de que, quando o réu é inocente, a vítima, para ser crida como tal, mais do que interesse em mentir, ela precisa mentir, para continuar sustentando a sua mentira inicial: a de que é vítima, e é por isso que, antes da palavra do réu, é a palavra da vítima que deve ser posta sob suspeita, sob pena de inverter a presunção no processo penal, que evidentemente só pode ser uma: a da inocência do acusado. Não estamos aqui, embora uma primeira impressão possa levar a crer que sim, ressuscitando o antigo sistema de prova legal tarifada, dizendo que a palavra da vítima, em si mesma, não pode condenar. Longe disso. Estamos apenas pondo em destaque esse sutil aspecto que o fenômeno da palavra da vítima pode engendrar no processo penal, de modo que se deve ter essa palavra como algo a ser investigado em todos os seus pormenores, para que ela possa ser confrontada com elementos objetivos de confirmação ou negação.

Mais grave ainda é o discurso empolgado que procura proteger a vítima da "revitimização". Ora, mais uma perigosa petição de princípio! Se a preocupação da justiça no processo penal agora deve ser, não mais saber se o acusado é culpado ou inocente, mas de não "REvitimizar" (ênfase no "re"), já se está novamente dando como fato inconteste que "há uma vítima", e, portanto, um crime já dado como ocorrido, pois o objetivo é não vitimizar a vítima…mais uma vez. A primeira vitimização já é então tida desde logo como provada: o crime de que ela diz ter sido vítima. O acusado entra já condenado no processo, afinal, se "há uma vítima" que não pode ser "revitimizada", há um culpado do crime de que ela foi vítima. Semelhante raciocínio é fatal: é a pura e simples aniquilação da presunção de inocência e da própria razão de ser do processo penal.

A "Lei Mariana Ferrer" é um exemplo dessa sacralização da vítima no processo penal: o réu ser absolvido passa a ser visto como uma afronta, um desrespeito aos direitos da "vítima". O efeito dessa atmosfera é retirar do réu o protagonismo do processo penal para colocá-lo na vítima, o que é um forte fator de erros judiciários. Infelizmente, esse é e sempre será o drama do processo penal: aquele que acusa falsamente pouco ou nada sofre com o seu ato, mas, como ponderou Francesco Carfora, um homem que sentou nos bancos dos réus, ainda que absolvido, nunca é visto como um inocente, mas como um malandro hábil que conseguiu escapar da justiça, sob o qual irá pairar sempre uma suspeita tanto mais cruel quanto mais vaga e indeterminada [11].


[1] LUCCHINI, Luigi. Elementi di procedura penale, Firenze, Barbèra Editore, 1895, p. 15.

[2] MALATESTA. A lógica das provas em matéria criminal, Trad. J. Alves de Sá, 2ª Ed., São Paulo: Livraria Teixeira, s.d., p. 535-542.

[3] Op. cit., p. 538.

[4] MALATESTA. A lógica das provas em matéria criminal…, p. 540. (itálico no original)

[5] Op. cit., p. 537.

[6] Op. cit., p. 541.

[7] Op. cit., p. 470.

[8] Op. cit., p. 540. (itálico no original)

[9] Teoria delle leggi della sicurezza sociale, Vol. 4, Pisa: Fratelli Nistri e Co., 1832, p. 155.

[10] Op. cit., p. 471. (itálico no original)

[11] "Chi una volta è stato sul banco del reo, ancorchè assolto, resta sempre sotto il sospetto tanto più crudele quanto più vago ed indeterminato, e spesso la società nell'imputato assolto, più che un innocente, vede un abile furfante che ha saputo trarre in inganno la giustizia sociale". (CARFORA, Francesco. L'atto di accusa nella vigente procedura penale italiana e le sue riforme: Conferenza tenuta nel Circolo Giuridico di Napoli il 12 marzo 1893, Tipografia Nazionale di G. Bertero, Roma, 1893, p. 3)

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