Opinião

A liberdade de expressão no século 21 como aporia

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17 de março de 2024, 9h18

Este ensaio visa compreender alguns dos desafios que a realidade digital, a necessidade de intervenção estatal no exercício das liberdades individuais e a manifestação do pensamento impõem.

A realidade, desde o advento dos meios de comunicação de massa, passou por um encurtamento do espaço-tempo — ou seja, as informações, as transações, os atos políticos, os acontecimentos, passaram a circular no tempo e no espaço em questão de segundos, o que, comparado ao século 19, pode ser compreendido como um fenômeno de encolhimento extraordinário do mundo —, o que passou a demandar respostas mais rápidas e menos “democráticas” dos governos.

Neste intrincado horizonte, a manifestação do pensamento se coloca como um desafio: ao mesmo tempo em que é um direito humano que deve ser preservado, pode levar a situações de violência e de afronta a outros direitos humanos. Mais ainda, a simples constatação de que “não existem direitos absolutos” simplesmente não fornece respostas satisfatórias para os problemas agora colocados: pode um argumento contrário à democracia ser manifestado? Caso contrário, deve ele ser censurado?

A liberdade de expressão, por óbvio, está sujeita a influências que podem fragilizá-la. Por isso, este texto visa expor algumas reflexões e paradoxos com as quais o Estado Democrático de Direito se depara no século 12.

Uma aporia é um problema racional cuja solução parece impossível, ao menos dentro de um determinado conjunto de elementos ao alcance em uma época. Com isso, situar a liberdade de expressão como um direito humano e como uma aporia do Estado de Direito é uma questão redundantemente aporética e, ao mesmo tempo, paradoxal. É, até certo ponto, um truísmo dizer que a liberdade de expressão é um direito humano a ser preservado, mas que deve obedecer a limites.

Reprodução/Free Speech Fear Free

Todavia, um Estado de Direito pode cercear a manifestação de um pensamento que negue o princípio democrático que, por sua vez, é a condição de possibilidade da própria liberdade de pensamento? Embora esta questão, após o ano de 2022, possa parecer absurda, foi devido a ela que Sócrates acabou condenado pela polis.

Ou seja, já no “apogeu” da democracia antiga indivíduos apresentavam argumentos contundentes contra a ordem democrática da cidade. Evidente que o advento da comunicação de massa, em especial da televisão e das redes sociais, criou um ambiente em que a opinião nem sempre pode ser contestada de forma não violenta.

Diferentemente de Platão, o risco à democracia não decorre de argumentos racionais submetidos ao escrutínio público e à dialética, mas de afirmações unilaterais que conseguem adesão por reforçarem crenças sem racionalidade lógico-argumentativa.

Engajamento de revoltados e qualificação da liberdade de expressão

A lógica de funcionamento das redes sociais, que se tornaram o principal meio de comunicação, visa proporcionar aos usuários um conteúdo atrativo, sendo irrelevante seu teor (posições extremadas, discursos de ódio a minorias, xenofobia, medo do “outro” e imigração, até mesmo teorias conspiracionistas).

O objetivo é interceptar aspirações e medos. Com isso, pode-se cultivar o ódio para manter o indivíduo conectado e atento aos conteúdos que o prendem à tela, diluindo antigas divergências ideológicas (como liberalismo versus intervencionismo econômico; conservadorismo versus progressismo; esquerda versus direita) em um rearticulado conflito que opõe o povo às elites.

É o engajamento de revoltados que move a propaganda política, se alimentando de emoções negativas, pois são elas que garantem maior participação e preocupação por parte dos seus veiculadores-destinatários (que se confundem no processo de difusão de informações). Tais sentimentos negativos são fomentados por elementos de forte coesão — ligados à fake news — e de grande apelo emocional — como teorias conspiratórias e de cunho escatológico.

Spacca

Tudo isso faz com que o jogo “democrático” não mais una as pessoas em torno de plataformas dialeticamente forjadas. E, se consensos se tornam cada vez menos prováveis, dissensos “respeitáveis” saem quase totalmente de cena.

Ao contrário, o modus operandi da esfera pública é aquele que insufla as paixões e o ódio. O objetivo não é encontrar o ponto de convergente ao centro, mas unir-se a algum dos extremos.

O efeito de se poder falar o que bem entende, naturalizando a falsa identidade com um eleitorado suscetível a posições radicais que conseguem engajamento, cria um fantasma de que a liberdade de expressão serve para acobertar qualquer discurso.

Sob esta perspectiva, como pensar uma política pública de acesso e qualificação da liberdade de expressão sem permitir que a violência se naturalize, por um lado, mas sem fazer do Estado um censor? Esta reflexão se impõe porque, até o advento de redes sociais e dos seus algoritmos, era impossível pensar que um direito humano como a liberdade de expressão poderia se dar na ausência de debate — não só pelas “bolhas digitais”, mas pela forma como o “engajamento” inviabiliza respostas racionais a “bravatas” irracionais — e, até mesmo, colocar em um risco a própria democracia.

De um lado, tem-se o argumento da livre circulação de ideias e argumentos, devendo a própria razoabilidade e a realidade evidenciar a veridicidade ou falsidade das teses. De outro, há um consenso no mundo político e jurídico de que o direito à liberdade de expressão (assim como todo direito fundamental) não é absoluto.

O desafio que se impõe é lidar com a necessidade de preservação da institucionalidade sem que isso implique o fechamento para novas realidades e potencialidades. Isso porque a democracia deve se manter aberta, em construção constante, em uma eterna busca por uma potência que não pode se atualizar. A democracia deve ser uma verdade em constante escrutínio.

Será possível que a democracia se mantenha diante da ausência do debate?

Atenas, ao condenar Sócrates pelo uso transgressor da palavra, condenou-se enquanto democracia. Não obstante, o que Sócrates defendia era que as pessoas deveriam, racionalmente, passar em revista as suas convicções e abandoná-las caso não subsistissem. Grande parte do desafio da democracia moderna é manter-se em construção quando ela parece estar sendo destruída pelas suas bases.

Com a eclosão de movimentos de revolta contra os corpos intermediários do poder político, consequência quase direta das novas formas de comunicação (redes sociais, principalmente), a opinião pública e as formas de sua manifestação adquiriram aspectos pouco claros, principalmente quanto impossibilidade do estabelecimento de um debate racional.

Isso faz com que o jogo político não mais una as pessoas em torno de plataformas construídas dialeticamente. Ao contrário, insufla o ódio. O objetivo não é encontrar o ponto convergente, mas unir os extremos entre si.

O usuário de uma plataforma, ao manifestar a sua opinião sobre um determinado tema, não quer debatê-lo com os seus “amigos”, mas tão somente apresentar o seu ponto de vista. Mesmo que o seu argumento seja falso, a lógica algorítmica cria um espaço de eco no qual tudo o que o indivíduo encontrará serão reafirmações de sua opinião.

A lógica algorítmica não tem comprometimento com o conteúdo que é veiculado. Com isso, coloca-se uma questão que é fundamental em uma democracia: como saber distinguir uma opinião transgressora potencialmente aberta a novos horizontes de uma opinião transgressora simplesmente destrutiva? Eis a questão.

A ausência do debate político se aprofunda quando a dialética cede aos sentimentos negativos (raiva, ódio, medo, insegurança, indiferença) que “mascaram” as opiniões políticas manifestadas contra um destinatário sem “rosto”. Há, diante do “opinador”, apenas uma tela. Será possível que a democracia se mantenha diante da ausência do debate?

Reflexões em aberto

Caberia aqui uma questão incômoda e, seguramente, ainda sem resposta. A forma como os governos (aqui compreendidos os três Poderes) têm agido, flexibilizando procedimentos e garantias legais para manter alguma integridade, não teria o potencial de inviabilizar a liberdade através da exceção? Atualmente, muito se discute sobre a necessidade de colocar limites à liberdade de manifestação de pensamento.

O limite colocado por Mill — no século 19, ao dizer que a manifestação do pensamento não pode levar à violência ilegítima — é claro, sendo a realidade do século 21 que o deixou obscuro. Igualmente, a necessidade de se responsabilizar indivíduos que de algum modo tenham agido com o objetivo de incitar violência ilegítima é um consenso.

Entretanto, há indivíduos que, inseridos em uma dinâmica de engajamento e de fomentos de sentimentos negativos, incitam a violência ilegítima, mas não de forma deliberada. E a lógica do reforço das próprias posições impossibilita que argumentos falsos e posicionamentos equivocados sejam submetidos ao escrutínio público.

Quanto ao “estado de exceção”, algumas garantias processuais conquistadas após longos períodos de negociações institucionais parecem estar sendo flexibilizadas. Sedutor é o argumento segundo o qual “circunstâncias excepcionais requerem medidas excepcionais”. Entretanto, as “circunstâncias excepcionais” estão em uma zona cinzenta, obscura.

Mais ainda, os limites traçados por humanos são sempre convencionais, invisíveis, sociais, políticos. O limite aceitável a uma liberdade em um determinado momento é o catalizador de uma revolução após a mudança de poucos paradigmas.

Como pode a raiz de um modelo político (que é a liberdade de expressão) ser capaz de levar este modelo político à ruína caso não seja limitada? Estas reflexões seguirão em aberto. E, mesmo que não busque respostas definitivas neste texto, não parece aceitável que o Estado se sobreponha ao seu elemento democrático. Igualmente, não parece aceitável ou legítimo que a liberdade de expressão se sobreponha à sua base democrática.

Vale colocar mais uma pergunta insolúvel: a preservação da institucionalidade como justificativa da necessária limitação da liberdade de expressão teria o condão de, preservando o Estado, acabar com a democracia? Ou seria a liberdade de expressão ilimitada que, corroendo institucionalidade do Estado, inviabilizaria a democracia?

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