Opinião

Fake news sobre a reforma do Código Civil: a quem interessa a desinformação?

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16 de março de 2024, 6h08

Uma nova onda de fake news vem sendo disseminada em torno da reforma e atualização do Código Civil brasileiro. Os negacionistas de sempre voltam a multiplicar críticas sem sentido. Escatológicos, anunciam o fim do mundo, da família, da sociedade, dos valores de uma cultura que afirmam “ocidental”, da qual não fazem parte. É que a cultura ocidental tem como pano de fundo a racionalidade e o abandono dos mitos. É a grande lição que nos legou Max Weber.

Inegavelmente técnicos e árduos, os trabalhos da Comissão encarregada dos estudos e apresentação do texto do anteprojeto — composta por inúmeros e renomados civilistas, e outros tantos consultores jurídicos — estão sendo absurdamente categorizados como uma mera discussão “sorrateira”, com a finalidade de promover uma “revolução trágica” nas relações civis.

Denominada por “bomba ideológica” pelos propagadores de notícias falsas, a reforma abrangeria, na sua equivocada visão, a legalização do aborto, a possibilidade de uniões poligâmicas, dentre outros despautérios.

Porém, a realidade do debate no Congresso — conduzido por gente séria e comprometida, como o ilustre ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça; presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e renomados professores, como Flávio Tartuce, presidente do IBDFAM seção São Paulo, Giselda Hironaka, Gustavo Tepedino, Maria Berenice Dias, Pablo Stolze, dentre outros — está bem distante das teorias dos moralistas de plantão, que vivem uma realidade transcendente, que nem mesmo Platão saberia onde fixar na imaginária caverna. Chamemos de metaverso.

Uma rápida consulta ao Portal do Senado Federal, seguida de uma simples leitura do texto produzido a partir do trabalho de oito subcomissões — ainda sujeito a emendas, destaques, debates e votação — seria suficiente para a comprovação de que assuntos bombásticos, definitivamente, não estão em pauta.

Em discussão

O texto ainda em discussão, longe de pretender a legalização do aborto, alarga a proteção ao nascituro, prevendo, inclusive, a necessidade de intervenção do Ministério Público nos procedimentos extrajudiciais em que presentes seus interesses; sugere um melhor tratamento jurídico às famílias constituídas por meio da união estável, uma realidade incontestável, sem que com isso pretenda autorizar a poligamia.

123RF

São medidas que atendem a aspirações impostergáveis, bem conhecidas por aqueles que operam na realidade do foro. O texto que se discute é antídoto fortíssimo para humilhações recorrentes, e que desidratam a dignidade da pessoa humana.

Estão, ainda, dentre as principais alterações e novidades na legislação civil o direito digital e a personalidade internacional, visando garantias de direitos estabelecidos em tratados internacionais para os estrangeiros, apátridas, asilados e refugiados, tudo como forma de atribuir-se coerência e contemporaneidade entre fatos e norma.

O complexo problema migratório, que ameaça a estabilidade existencial de quem emigra, bem como a de quem recebe os fluxos migratórios, exige um enfrentamento. Pelo que se lê nos textos que ganham corpo, esse difícil problema, que é inclusive bíblico, parece ganhar contornos que elevam a condição humana. A matéria é veterotestamentária (não te esqueças que fostes estrangeiros no Egito, Êxodo 22:21). O problema persiste.

O Direito, bem se sabe, influencia a sociedade de diversas formas e é por ela influenciado para com isso atingir uma de suas principais finalidades, a paz social. A norma se amolda à realidade social e igualmente regula as relações sociais.

Cada tempo tem seu universo normativo. Não somos mais como éramos em 2002, do mesmo modo que em 2002 não éramos como um dia fomos em 1916.

Além disso, o texto de 2002, conduzido por Miguel Reale, não recortava uma época única, resultou de muitas alterações que se faziam desde 1916. A condição feminina, é seu exemplo mais emblemático. Segue-se o divórcio, que devemos à obra quase quixotesca de Nélson Carneiro, de quem hoje poucos se lembram.

Parece ofuscado o antigo postulado dos jusnaturalistas que pugnavam pela atemporalidade do direito, como indicativo do justo e crivo eletivo do ideal de justiça. Cada tempo tem seu direito, como cada tempo tem sua história, como cada tempo tem suas peculiaridades, como cada tempo tem seus valores, que decorrem dos fatos, e que fixam as normas, a apropriarmos do núcleo filosófico conceitual do responsável pelo Código de 2002.

Fica patente que a atualização da legislação civil, portanto, não ostenta qualquer bandeira ideológica e nada tem de silenciosa. A matéria é de fato barulhenta, mas sua reverberação se sustenta em uma pretensa neutralidade, que vem sendo (ou deveria ser) o referencial permanente da codificação do direito privado. Trochet, Du Pémameneu, Maville e Portalis (talvez principalmente) não se oporiam ao aggiornamento de seus projetos normativos. Há um historicismo patente que não repele a mudança e o ajuste.

Na verdade e nesse caso, a irresponsabilidade ideológica pode ser atribuída aos difusores de fake news, que manipulam a verdade, como se donos dela fossem. Comprometem o progresso social, a saúde institucional, o bem-estar coletivo, a fixação de arranjos institucionais necessários. E o que ganham com isso? Sabemos, certamente.

Em tempos de comunicação social quase instantânea, urge que os que possuem os filtros da razoabilidade mais calibrados estejam mais atentos e sejam mais cuidadosos, evitando os verdadeiros desastres sociais, que só espalham o caos e a desinformação, que a todos prejudica.

A luta dos poderes instituídos contra essa praga de nossos tempos (a desinformação e as fakes news travestidas do uso da liberdade de expressão) deve ser prestigiada por todos quantos não desistam de lutar por um mundo mais justo. A desinformação interessa àqueles que investem na subversão dos valores e que falam o tempo todo em liberdade; bem entendido, em liberdade para matar a liberdade.

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