Decisão do STF e impossibilidade de busca domiciliar após fuga do suspeito
16 de março de 2024, 9h23
Tomou conta das redes sociais nos últimos dias a notícia de que o plenário do STF, ao julgar o HC 169.788, concluiu que a fuga, após o avistamento de policiais, consiste em justa causa a justificar a entrada em domicílio sem mandado judicial ou autorização do morador. Isso não aconteceu.
Ainda que a maioria de votos tenha sido para se denegar a ordem de Habeas Corpus, não houve maioria para reconhecer a licitude da busca domiciliar. Ao longo do texto, essa situação será explicada.
Antes, contudo, necessário entender o caso concreto.
Um homem foi preso em flagrante e denunciado pelo crime de tráfico de entorpecentes. Todas as provas que instruíam a denúncia se originavam de uma busca domiciliar realizada pela policial sem autorização do morador, agora réu, e sem ordem judicial.
A busca, que resultou na apreensão de 247,9 gramas de maconha, foi justificada pelo fato de o agente, após avistar viatura policial, correr para o interior de sua casa.
Observada a fuga, os policiais entraram na residência, novamente, sem autorização ou ordem judicial, lá localizando a droga e efetuando, em seguida, a prisão.
Habeas Corpus
Contra a decisão que recebeu a denúncia, a defesa impetrou habeas corpus ao TJ-SP, pugnando, em medida liminar, a suspensão da ação penal e, no mérito, o reconhecimento da ilicitude da invasão de domicílio.
O pedido liminar foi indeferido no TJ-SP, tendo a defesa impetrado novo habeas corpus, dessa vez ao STJ. O HC no STJ foi indeferido liminarmente por decisão monocrática do ministro Felix Fischer, em razão do reconhecimento da supressão da instância, nos termos da Súmula 691 do STJ.
Contra a decisão monocrática do ministro Felix Fischer, a defesa impetrou novo habeas corpus (HC substitutivo de agravo regimental, haja vista que não houve tentativa de colegializar a decisão monocrática por meio de interposição de agravo regimental — artigo 258 RISTJ).
Como dito, o HC foi impetrado no STF (HC com dupla supressão de instância, já que o TJ-SP e o STJ não se manifestaram sobre o mérito dos respectivos writs).
Votação no STF
No STF, o HC foi distribuído ao ministro Edson Fachin, que concedeu a medida liminar para suspender a ação penal e afetou o julgamento do habeas corpus ao plenário.
Iniciado o julgamento virtual, o relator do HC, ministro Edson Fachin, votou pelo reconhecimento da ilegalidade da busca domiciliar sem justa causa.
No voto, houve o enfrentamento expresso da matéria de fundo da impetração:
“No caso presente, já pelo cotejo preliminar entre a legislação e o caso dos autos, não há como se extrair da circunstância justificadora anotada pela autoridade policial — ‘vistaram um indivíduo em frente a uma residência, (…) que assim que avistou a viatura correu para seu interior, agindo de maneira suspeita’ —, a existência de fundada razão de hipótese de flagrante delito”.
Seu voto foi acompanhado pelos ministros Barrroso, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Cinco votos, portanto. Para os ministros, a despeito de não ser possível o conhecimento do HC, a ilegalidade da abordagem dos policiais é constatável de plano, de modo que o voto foi pela concessão da ordem de ofício.
Cinco votos, então, pelo reconhecimento da ilegalidade da busca domiciliar. Guardem esse número.
A divergência, votando pela não concessão do habeas corpus, somou maioria (6 votos). Ocorre que foram três fundamentos diferentes utilizados para denegar a impetração.
A divergência foi suscitada pelo ministro Alexandre de Moraes, que consignou que o cenário fático (fuga para a residência após avistamento de policiais) justifica a busca domiciliar sem autorização judicial ou consentimento do morador.
Constou do voto que abriu a divergência: “No caso concreto, conforme narrado, o ingresso dos agentes de segurança pública no domicílio foi devidamente justificado, tendo em vista que o paciente, ao visualizar a viatura policial, saiu correndo em atitude suspeita para o interior de sua residência”.
Acompanharam a divergência os ministros Dias Toffoli, Cristiano Zanin e Luiz Fux. Quatro Ministros seguiram essa tese (da licitude da busca domiciliar).
O ponto que parece ter sido olvidado nas análises do julgamento (e que só é perceptível a partir da leitura dos votos-vogais) é que os ministros André Mendonça e Nunes Marques apresentaram razões outras para denegar a ordem. Ou seja, a despeito de também divergiram do relator, não acompanharam a divergência suscitada pelo por Alexandre de Moraes.
Divergências decisivas
Para André Mendonça, para que fosse possível a concessão da ordem de habeas corpus, seria necessário o revolvimento fático-probatório, o que não é possível na via do HC. O voto de André Mendonça foi pela extinção sem resolução do mérito do HC.
Constou do voto de André Mendonça: “Assentado pelas instâncias antecedentes que a entrada domiciliar se deu em vista de fundadas razões a partir de comportamento suspeito, para se alcançar entendimento diverso seria necessário o reexame do acervo fático-probatório, incabível na via estreita do habeas corpus”.
Nunes Marques também divergiu, mas não anuiu expressamente à tese de Alexandre. Para Nunes Marques, houve prova do consentimento de entrada do morador.
No voto-vogal apresentado por Nunes Marques, é possível perceber uma inclinação à tese suscitada por Alexandre de Moraes. Essa inclinação, todavia, não compõe a ratio decidendi do voto, não passando de mero obter dictum. Isso porque, para o ministro, há prova de que houve o consentimento do morador para o ingresso policial, ou seja, o contexto fático analisado é diverso:
“Ainda que se parta da premissa fixada pelo eminente relator no sentido de que a ação do acusado de correr dos policiais em via pública ‘(…) não se conforma aos parâmetros de visibilidade material do estado flagrancial”, a essa atitude suspeita somou-se a possível aquiescência, por parte do próprio denunciado, do ingresso dos policiais em sua residência.”
Ao fim e ao cabo, Nunes Marques analisou premissa fática diversa.
Resumindo tudo, pode-se chegar a dois entendimentos minimamente razoáveis (ambos diversos daquele que ecoou nas redes sociais nos últimos dias):
- São cinco votos pelo reconhecimento da ilicitude da busca domiciliar (Fachin, Gilmar, Rosa, Barroso e Cármen Lúcia); quatro votos pelo reconhecimento da licitude da busca domiciliar (Alexandre, Zanin, Fúx e Toffoli), um voto pelo não conhecimento do HC por entender que exige exame probatório (André Mendonça) e um voto reconhecendo a licitude com o consentimento dos policiais (Nunes Marques). Seria um 5x4x1x1.
- São cinco votos pelo reconhecimento da ilicitude da busca domiciliar (Fachin, Gilmar, Rosa, Barroso e Cármen Lúcia); cinco votos pelo reconhecimento da licitude da busca domiciliar (Alexandre, Zanin, Fúx, Toffoli e Nunes Marques), um voto pelo não conhecimento do HC por entender que exige exame probatório (André Mendonça). Seria um 5x5x1.
Logo, analisando sob a perspectiva da pior das hipóteses: é falsa a compreensão de que o STF autorizou a busca domiciliar em razão da fuga após o avistamento de policiais.
Em suma: A maioria foi formada para não conhecer o Habeas Corpus.
A tese da licitude da busca domiciliar não formou maioria no STF.
Dessa forma, a matéria continua pendente de apreciação pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal. Importante rememorar que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a 5ª e a 6ª Turma possuem decisões recentes no sentido de que a mera fuga após avisar a polícia não justifica a busca domiciliar (HC 811.052 é um exemplo).
A matéria foi afetada para julgamento no rito dos recursos repetitivos (Tema 1.163), oportunidade na qual a 3ª Seção (reunião da 5ª e 6ª Turmas) ilidirão a controvérsia.
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