Opinião

Créditos de ICMS sobre produtos intermediários: discussão chegou ao fim?

Autor

  • Manuella Mazzocco

    é advogada sócia do Rossetto Advogados mestre em Direito pela UFSC especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil e conselheira do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina.

14 de março de 2024, 19h34

Durante muitos anos, os tribunais superiores enfrentaram o tema da possibilidade da tomada dos créditos de ICMS em relação aos produtos intermediários, havendo divergência de entendimento entre a 1ª e a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, além de entendimento contrário aos contribuintes firmado pelo Supremo Tribunal Federal.

Para a 1ª Turma do STJ, após a edição da Lei Kandir, o creditamento do ICMS referente às aquisições de produtos intermediários poderia se dar independentemente da integração desses produtos ao produto final. Isso porque a Lei Kandir não repetiu o disposto no artigo 31, III, do Convênio ICM 66/1988, responsável por regulamentar temporariamente o ICMS após a promulgação da Constituição.

Ao contrário, só vedou a tomada de crédito de produtos “alheios à atividade do estabelecimento”, conforme previsão do artigo 20, §1º (AgInt no REsp nº 2.053.167/RS, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 16/8/2023; AgInt no REsp n. 2.046.988/SP, relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgado em 26/6/2023, DJe de 28/6/2023; AgInt no REsp nº 2.056.381/RS, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, julgado em 15/5/2023, DJe de 19/5/2023).

Já a 2ª Turma posicionou-se no sentido de permitir o direito ao crédito apenas quando o produto intermediário se integrasse ao produto final ou que fosse consumido no processo produtivo de forma imediata e integral (AgRg no REsp 738.905/RJ, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, DJ 20/2/2008; REsp 1.816.565/RS, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe de 19.9.2019; REsp 1.808.979/RS, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe de 1/7/2019).

Entendimento do STF e decisões recentes

O Supremo, inicialmente, enfrentou a matéria, contudo com fundamento diverso. Para a Suprema Corte,  a aquisição de produtos intermediários não daria direito a crédito de ICMS porque a empresa adquirente não promove a saída desses bens, figurando como consumidora final em relação a eles (RE 503.877 AgR, relator(a): Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, julgado em 1/6/2010; RE 540.588 AgR, relator(a): Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado em 5/2/2013).

Contudo, as decisões mais recentes do STF sobre o tema são no sentido de considerar a matéria infraconstitucional e dependente da análise de provas, não conhecendo os recursos.

Na última oportunidade em que a corte enfrentou a matéria, no julgamento do ARE 1.404.867, de relatoria da ministra Rosa Weber (j. 22/8/2023), o Tribunal Pleno, por unanimidade, reconheceu que

“A controvérsia, conforme já asseverado na decisão guerreada, não alcança estatura constitucional. Não há falar em afronta aos preceitos constitucionais indicados nas razões recursais. Compreensão diversa demandaria a análise da legislação infraconstitucional encampada na decisão da Corte de origem e a reelaboração da moldura fática delineada, a tornar oblíqua e reflexa eventual ofensa à Constituição, insuscetível, como tal, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário.”

Spacca

Esse entendimento foi repetido nos julgamentos dos recursos RE 1.325.829, relator Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julgado em 29/11/2021; ARE 1.279.402, relator Dias Toffoli (presidente), Tribunal Pleno, julgado em 8/9/2020; ARE 1.259.652, relator Dias Toffoli (presidente), Tribunal Pleno, julgado em 8/6/2020; ARE 1.140.831, relator: Edson Fachin, 2ª Turma, julgado em 6/9/2019.

Fim da divergência entre as Turmas no STJ

A análise da jurisprudência do STF é de suma relevância para a compreensão do alcance do resultado do julgamento dos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 1.775.781 pelo Superior Tribunal de Justiça, ocorrido em 11/10/2023, na 1ª Seção.

Os ministros, de forma unânime, colocaram um fim à divergência existente entre as duas Turmas, prevalecendo o entendimento de que

“À luz das normas plasmadas nos arts. 20, 21 e 33 da Lei Complementar n. 87/1996, revela-se cabível o creditamento referente à aquisição de materiais (produtos intermediários) empregados no processo produtivo, inclusive os consumidos ou desgastados gradativamente, desde que comprovada a necessidade de sua utilização para a realização do objeto social da empresa — essencialidade em relação à atividade-fim.”

Constou no corpo do acórdão, de relatoria da ministra Regina Helena Costa, importante registro acerca do caráter infraconstitucional da matéria:

“Principio remarcando que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar Recurso Extraordinário, submetido ao regime de repercussão geral – Tema n. 346: ‘Reserva de norma constitucional para dispor sobre direito à compensação de créditos do ICMS.’ –, a par de fixar as teses vinculantes, registrou, na ementa do acórdão, que: (i) ‘A Constituição Federal trouxe, no artigo 155, § 2º, I, a previsão do princípio da não cumulatividade relativamente ao ICMS e, em seu inciso XII, alínea c, determina que compete à lei complementar regulamentar o regime de compensação do tributo’; (ii) ‘Dessa forma, embora a Constituição Federal tenha sido expressa sobre o direito de os contribuintes compensarem créditos decorrentes de ICMS, também conferiu às leis complementares a disciplina da questão’; e (iii) ‘O contribuinte apenas poderá usufruir dos créditos de ICMS quando houver autorização da legislação complementar. Logo, o diferimento da compensação de créditos de ICMS de bens adquiridos para uso e consumo do próprio estabelecimento não viola o princípio da não cumulatividade’.”

A 1ª Seção do STJ, ao julgar referido recurso, não só colocou um fim à divergência existente entre a 1ª e a 2ª Turma, mas também teve o cuidado de deixar claro o caráter infraconstitucional da matéria, a fim de evitar que o Supremo, em uma guinada na sua própria jurisprudência, venha a admitir eventual recurso extraordinário interposto em face dos embargos.

Dentro desse cenário jurisprudencial, é possível afirmar que, embora não se trate de um julgamento vinculante, tomado em sede de um recurso repetitivo, o julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 1775781 possui um resultado muito além de um simples julgamento, pois reflete o pensamento da 1ª Seção do STJ, responsável por dar a palavra final em relação a matéria, o que nos permite concluir que a discussão sobre o tema, enfim, chegou ao fim.

O STF, por sua vez, se decidir analisar o tema, estará contrariando a sua própria jurisprudência, o que realmente não se espera de uma corte séria e preocupada com a segurança jurídica do país e de suas próprias decisões.

Autores

  • é advogada, sócia do Rossetto Advogados, mestre em Direito pela UFSC, especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil e conselheira do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina.

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