Opinião

Limitação do 'dolus bonus' em ofertas de valores mobiliários

Autor

  • William Koga

    é advogado no escritório Koga Advogados e mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná.

7 de março de 2024, 21h21

Em fase pré-contratual, durante negociações preliminares e avaliação de propostas, alguns elementos específicos podem contaminar a formação da vontade contratual das partes, criando uma divergência entre a vontade real e a conjectural ou hipotética de modo a contaminar a validade jurídica do negócio jurídico (a ser) posteriormente contratado.

O dolo, entendido como uma “conduta maliciosa praticada por um dos negociantes ou por terceiro com o objetivo de levar o outro negociante a erro sobre as circunstâncias reais do negócio” [1], tem o condão de anular negócios jurídicos, na forma prevista pelo artigo 145 do Código Civil.

Neste contexto, deve ser reconhecida a construção do dolus bonus, uma variante do conceito de dolo, cunhada pelo antigo Direito Romano, que “consistia na astúcia ou no artifício empregados para a realização de um negócio jurídico, mas tolerados socialmente, porque a opinião comum não os considerava capazes de influir, de modo decisivo, na vontade da pessoa” [2].

Em julgamento de apelação pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, esse conceito foi reconhecido no âmbito do Direito Contratual brasileiro:

o dolus bonus é aceito e admitido pelo direito contratual [o art. 253, 2, do Código de Portugal é expresso nesse sentido], sendo ilustrado pela conduta do vendedor em valorizar a qualidade do produto com advertências sobre a escassez dele no mercado e acredita-se que os vendedores agem, quando assim procedem, sem dolus malus, porque não estão obrigados, pela lei, a informar eventuais pendências que grama o bem a ser alienado e sobre dívidas deles, porque cabe ao interessado pesquisar e averiguar as condições essenciais do negócio. Todavia e para bem julgar a conduta do comprador diligente, cumpre dizer que a recusa em aceitar o negócio oferecido decorre de exercício de um direito de se prevenir contra os exageros da oferta” [3].

Visão da doutrina e anulabilidade

No âmbito das relações comerciais é válido, ainda, verificar o ensinamento de Sílvio Rodrigues “o exemplo corrente de dolus bonus é a gabança, por vezes exagerada, que o alienante faz daquilo que oferece à venda; é a propaganda, o reclamo levado a efeito com o intuito de seduzir o adquirente”.

O dolus bonus, portanto, é o tipo de dolo tolerável, que não tem por efeito a anulabilidade do negócio jurídico, frente a sua pequena contribuição na formação da vontade contratual da parte, ainda que seja utilizado como um dos instrumentos de convencimento da outra parte negociante.

Certamente existem restrições a sua tolerância, tal como prevê o Código de Defesa do Consumidor (CDC) que veda, expressamente, a propaganda abusiva e enganosa. Também como parece inconsistente a igual tolerância no âmbito de ofertas públicas de valores mobiliários (ações, debêntures, certificados de recebíveis, contratos de investimento coletivo etc.), isto porque a moderação na linguagem, transparência sobre riscos e a completude das informações são os pilares da comunicação que vise dar publicidade à oferta pública, conforme as regras editadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Spacca

Notadamente, a Resolução CVM nº 161, de 13 de julho de 2022, que dispõe sobre as regras, procedimentos e controles internos a serem observados na intermediação de ofertas públicas de valores mobiliários, estabelece como deveres do coordenador de ofertas públicas de valores mobiliários (artigo 13), entre outros, zelar para que todas as formas de comunicação, publicidade e linguagem utilizada na sua interlocução com os investidores sejam adequadas com a complexidade da oferta e com o nível de sofisticação dos investidores (inciso V) e tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões de diligência, respondendo pela falta de diligência ou omissão, para assegurar que as informações prestadas sejam verdadeiras, consistentes, corretas e suficientes, permitindo aos investidores uma tomada de decisão fundamentada a respeito da oferta (inciso I).

A Resolução CVM nº 160, de 13 de julho de 2022, regra básica de procedimentos e ritos a serem adotados em ofertas públicas de valores mobiliários, ao disciplinar a publicidade a ser dada à oferta (artigo 12) estabelece que os materiais e comunicações devem usar linguagem serena e moderada (§2º, inciso II) e abster-se de utilizar linguagem que omita ou que não reflita adequadamente a existência de riscos (§2º, inciso IV, alínea “a”).

Conclusão

Deste modo, ainda que sejam verificados outros elementos na formação da vontade do investidor em aderir a determinada oferta pública, parece não existir espaço para o dolus bonus, nos conceitos e definições indicados acima, quando verificada flagrante violação aos deveres de serenidade, transparência e completude estabelecidos nas resoluções infralegais editadas pela Comissão de Valores Mobiliários.

 


[1] BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. O dolo como defeito do negócio jurídico. In: Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil, Vol. 1. Escola Paulista da Magistratura, São Paulo: 2018., p. 167.

[2] ALVEZ, José Carlos Moreira, Direito Romano, Ed. Forense, Rio de Janeiro, P. 184.

[3] TJSP – Apelação n. 994.09.339794-0, julgada em 8 de abril de 2010, com relatoria do Desembargador Enio Zuliani.

Autores

  • é sócio do escritório Koga Advogados, formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Desenvolvimento Econômico pela mesma instituição.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!