Opinião

Não existe imparcialidade no processo penal

Autor

  • Lucas Schirmer de Souza

    é advogado criminalista pós-graduando em Direito 4.0: Direito Digital Cibersegurança e Proteção de Dados na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) secretário-adjunto da Comissão sobre Políticas de Drogas da OAB/SC associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e cursista do CoPlanar: Capacitação de Gestores para a Elaboração de Planos Estaduais e Municipais sobre Drogas — idealizado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

6 de março de 2024, 14h20

A imparcialidade é frequentemente considerada um ideal em muitos aspectos da sociedade, desde a tomada de decisões judiciais até a reportagem jornalística e a análise política. No entanto, a questão da capacidade humana de alcançar total imparcialidade é complexa, envolvendo múltiplas facetas da psicologia, sociologia, neurociência, economia e filosofia. Este artigo visa explorar a profundidade e a amplitude dessa questão, demonstrando por que a imparcialidade total permanece um ideal inatingível.

Abordaremos os fundamentos psicológicos da imparcialidade, destacando como vieses cognitivos e a dissonância cognitiva afetam nossa capacidade de processar informações de maneira neutra. A seguir, discutiremos a influência dos fatores sociais e culturais que moldam nossas percepções e opiniões, limitando a capacidade de manter uma postura imparcial frente a diversas questões.

Na sequência, analisaremos a natureza da imparcialidade na tomada de decisões, especialmente no processo penal, em que a objetividade é crucial. A complexidade da neurociência da imparcialidade será examinada para entender como o funcionamento do cérebro influencia nossa capacidade de ser imparciais, revelando que nossas respostas a estímulos emocionais e sociais podem comprometer a objetividade, sobretudo quando dão lugar à subjetividade.

Vieses e atalhos

Inicialmente, vieses cognitivos são padrões de pensamento desviados da lógica racional ou da interpretação objetiva, que podem levar a percepções ou julgamentos distorcidos. Eles surgem de várias heurísticas (atalhos mentais) que o cérebro usa para processar informações mais rapidamente. Embora esses atalhos sejam úteis para lidar com a complexidade do mundo ao nosso redor, eles também podem levar a erros de julgamento e avaliação.

Existem diversos tipos de vieses cognitivos, como o viés de confirmação, o de ancoragem, o de disponibilidade, o de aversão à perda, o do status quo, etc. Esses vieses, junto às heurísticas, podem conduzir a uma tomada de decisão equivocada, em desacordo com a realidade do caso concreto e causa, ao final, uma quebra na imparcialidade.

O viés de confirmação é a tendência de procurar, interpretar, favorecer e recordar informações de maneira a confirmar as próprias crenças ou hipóteses prévias. Isso significa que as pessoas dão mais atenção e credibilidade às evidências que apoiam suas visões existentes, enquanto negligenciam ou desvalorizam informações que as contradizem.

Spacca

O viés de ancoragem ocorre quando os indivíduos dependem da primeira informação que recebem (a “âncora”) ao tomar decisões, mesmo se essa informação for irrelevante para a decisão em questão. A presença de uma âncora pode influenciar fortemente as estimativas ou julgamentos subsequentes.

Por exemplo, no caso de policiais que se valem de uma denúncia anônima de tráfico para invadir uma residência que possui um cultivo de maconha, tem-se um viés de justificação baseado na ancoragem.

Ao entrar na residência, qualquer evidência de cultivo de maconha é imediatamente interpretada à luz da âncora (a denúncia de tráfico), mesmo que existam explicações alternativas, como o cultivo para fins terapêuticos.

O viés de disponibilidade descreve a tendência das pessoas em basear seus julgamentos e decisões na informação mais imediatamente disponível para elas, especialmente informações recentes ou emocionalmente impactantes. Isso pode levar a uma percepção distorcida da realidade, pois as informações facilmente lembradas nem sempre são as mais representativas ou relevantes.

A aversão à perda é a tendência de preferir evitar perdas a obter ganhos equivalentes; a dor de perder é psicologicamente cerca de duas vezes mais poderosa do que o prazer de ganhar, conforme a Teoria da Perspectiva, publicada em 1979 pelos psicólogos Amos Tversky e Daniel Kahneman (prêmio Nobel da Economia em 2002).

Durante seus depoimentos, policiais podem ser relutantes em admitir erros em suas investigações ou no processo de prisão, temendo as repercussões negativas de tais admissões. A aversão à perda pode tornar a ideia de perder credibilidade, enfrentar penalidades disciplinares ou comprometer um caso judicial mais aversiva do que o benefício percebido de corrigir o erro. Isso pode levar a um viés de confirmação em que o policial se concentra em informações que justificam suas ações iniciais.

De igual forma, mesmo diante de novas evidências que desafiem a perspectiva original de um(a) promotor(a) de Justiça na denúncia, a aversão à perda pode tornar mais difícil a mudança de opinião, podendo ser visto como uma “perda” de julgamento anterior, e, psicologicamente, essa perda pode ser mais significativa do que o “ganho” de alinhar o entendimento com novas evidências.

Impacto dos vieses no processo penal e a dissonância cognitiva

No que se refere ao processo penal, a problemática reside no impacto que esses vieses cognitivos podem exercer na atividade jurisdicional, rompendo ou mitigando a imparcialidade do julgador ao examinar determinado caso, da testemunha que apresenta sua versão ou até mesmo do representante do Ministério Público que participa da instrução processual.

De fato, todos os processos, de qualquer natureza, podem ser afetados quando as partes processuais estão sob o efeito de algum viés cognitivo, o que afeta a imparcialidade e as garantias processuais.

Por sua vez, a dissonância cognitiva é um termo da psicologia que descreve o desconforto psicológico ou a tensão que uma pessoa sente quando mantém duas crenças, ideias ou valores contraditórios ao mesmo tempo, ou quando novas informações entram em conflito com crenças existentes.

A teoria foi proposta por Leon Festinger em 1957 e sugere que, para reduzir a dissonância, as pessoas mudam suas crenças, atitudes ou comportamentos.

Por exemplo, se alguém acredita que fumar é prejudicial à saúde, mas continua fumando, essa pessoa pode experimentar dissonância cognitiva devido à contradição entre suas ações (fumar) e suas crenças (fumar é ruim para a saúde).

Para resolver essa dissonância, a pessoa pode justificar seu comportamento (por exemplo, acreditando que “fumar me ajuda a relaxar e eu posso parar quando quiser”), alterar o comportamento (parar de fumar) ou mudar a crença (minimizar os efeitos nocivos do fumo).

No processo penal, nos casos em que policiais atuam como testemunhas, a dissonância cognitiva pode surgir de várias maneiras, influenciando potencialmente seu testemunho e a percepção da sua credibilidade.

Esses profissionais, devido à sua experiência e ao seu papel na aplicação da lei, podem ter crenças fortes sobre a culpabilidade ou inocência de indivíduos baseadas em suas intuições, experiências passadas ou na pressão para resolver casos.

Suponha que um policial esteja convencido da culpa de um suspeito com base em evidências circunstanciais e em sua intuição profissional. No entanto, durante o processo, surgem evidências significativas que contradizem essa convicção, sugerindo que o suspeito pode ser inocente ou que as evidências contra ele foram mal interpretadas ou obtidas de maneira inadequada.

Neste contexto, o policial pode experimentar dissonância cognitiva ao tentar conciliar sua crença anterior na culpabilidade do suspeito com as novas evidências que apontam para uma direção diferente.

Para resolver essa dissonância, a testemunha pode minimizar a importância ou a validade das novas evidências que contradizem sua crença inicial, mantendo a convicção de que o suspeito é culpado.

Dissonância e fome

Tanto os vieses cognitivos quanto a dissonância cognitiva são conceitos fundamentais para entender como as pessoas processam informações e tomam decisões, destacando a complexidade e, muitas vezes, a irracionalidade do pensamento humano.

Quando um policial enfrenta evidências ou testemunhos que contradizem suas crenças ou conclusões iniciais sobre um caso, pode surgir um impulso natural de defender suas posições originais. Esse impulso é uma tentativa de reduzir a dissonância cognitiva, o desconforto psicológico gerado pela presença de duas crenças contraditórias.

Segundo a teoria do professor Festinger, a dissonância cognitiva pode ser vista como uma condição antecedente que leva à atividade orientada para a redução de dissonância assim como a fome leva para a atividade orientada para a redução da fome.

De acordo esta teoria, “o ponto importante a recordar é que existe pressão para que se produzam relações consonantes entre cognições e para que se evite ou reduza a dissonância”. A dissonância, uma vez criada, tende a persistir e “não existe garantia alguma de que a pessoa esteja apta a reduzir ou remover a dissonância”: é o que ele denomina de “persistência da dissonância”.

O policial, o promotor ou o juiz podem tentar desacreditar a fonte das informações contraditórias, seja questionando a competência, a integridade ou a confiabilidade daqueles que trazem as novas evidências. Isso envolve apontar possíveis motivos que a defesa técnica do acusado possa ter para distorcer os fatos (interesse processual) ou sugerir que o mensageiro não possui conhecimento suficiente ou perspectiva adequada para entender corretamente a situação.

De outro viso, o policial teria que desafiar a credibilidade das próprias evidências colhidas por sua equipe, sugerindo que foram coletadas, analisadas ou apresentadas de forma inadequada. Isso pode incluir apontar falhas no processo de coleta de evidências, erros metodológicos na análise forense, ou até mesmo sugerir que as evidências foram manipuladas ou contaminadas de alguma forma.

Cultura de revisão

Essas estratégias de justificação são naturais e servem para proteger a autoimagem do indivíduo como competente e confiável, além de manter a integridade de sua interpretação inicial. No entanto, elas podem ter implicações significativas para a justiça do processo penal, potencialmente levando à desconsideração de evidências importantes ou ao enfraquecimento da busca pela verdade objetiva, recorrendo apenas à validação do viés policial através de seu testemunho, já que a grande maioria das condenações por tráfico de drogas contém esse limitado acervo probatório.

Nesse sentido, é vital que o sistema jurídico promova uma cultura de abertura à revisão e à crítica construtiva, incentivando profissionais da lei a acolher novas evidências de forma objetiva, mesmo que elas desafiem as crenças pré-estabelecidas.

A confiança de um policial em sua memória dos eventos pode ser influenciada pelo viés de confirmação, hipótese em que ele pode se lembrar seletivamente de detalhes que confirmam sua percepção dos fatos e ignorar ou esquecer detalhes que contradizem sua narrativa.

De igual forma, o primeiro relato ou interpretação dos eventos pode servir como uma “âncora” que influencia todas as lembranças subsequentes e relatos sobre o incidente, mesmo na ausência de evidências gravadas.

Sabendo a existência de crime após uma invasão domiciliar, por exemplo, o policial pode interpretar os eventos anteriores de maneira a fazer parecer que o resultado era inevitável ou óbvio desde o início, mesmo que houvesse ilegalidades na obtenção da prova.

Reconhecimento de pessoas e influência da raça e do gênero

O julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC (STJ, relator ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 27/10/2020) jogou os holofotes em um tema muito importante: o reconhecimento de pessoas no processo penal.

Essa decisão emblemática impulsionou uma mudança jurisprudencial no sentido de firmar a força cogente do procedimento disposto no artigo 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas, anteriormente considerado pela jurisprudência como mero aconselhamento do legislador. Da mesma forma que avançamos nesse ponto, também é necessário estabelecer outros limites epistêmicos da prova testemunhal.

No AREsp nº 2.403.188, a ministra Maria Thereza de Assis Moura trouxe a percepção de que, do mesmo modo que a raça de uma pessoa é fator que influencia no resultado de um julgamento, estudos apontam que o gênero também é dado relevante no Júri, demonstrando que homens jurados tendem a favorecer homens acusados e mulheres juradas tendem a favorecer mulheres acusadas em julgamentos simulados de homicídio.

Quando o caso envolve violência de gênero, a ministra aponta que o viés cognitivo é ainda mais pronunciado: mulheres tendem a condenar mais, a penas maiores e com maior certeza em casos de estupro do que homens.

Conhecimento dos autos

Nos anos 1980, o jurista alemão Bernd Schünemann, valendo-se da teoria festingeriana, formulou o que ele chama de hipótese do pré-julgamento, testando-a também empiricamente “por meio de uma série de experiências de ciências sociais, nas quais as circunstâncias do processo penal alemão deveriam ser reproduzidas tão fidedignamente quanto possível”.

Para Schünemann — a partir de dados e números experimentalmente comprovados — “se os juízes penais, antes da audiência, tiverem conhecimento dos autos, eles condenarão com maior frequência que juízes sem esse conhecimento; e, existindo conhecimentos dos autos, serão cometidos na audiência mais erros no armazenamento das informações que contradizem os autos do que no caso em que inexista esse conhecimento”.

Dada a sua posição de autoridade, os juízes devem estar particularmente cientes dos vieses cognitivos — tanto os próprios quanto os dos outros participantes do processo judicial (como advogados, testemunhas e jurados) — para minimizar seus impactos sobre as decisões judiciais. A autoavaliação contínua e o entendimento sobre vieses cognitivos são essenciais para ajudar os julgadores a reconhecer e evitar possíveis preconceitos inconscientes em seu raciocínio e tomada de decisão.

Conclusão

Por meio desta análise multidisciplinar, pretendeu-se ilustrar não apenas as barreiras intrínsecas à imparcialidade, mas também provocar uma reflexão sobre a importância de reconhecer e lidar com nossos vieses inatos. Este reconhecimento é essencial para avançar em direção a uma sociedade mais justa e coerente, onde a imparcialidade, embora não totalmente alcançável, é constantemente perseguida como um ideal.

Portanto, a influência dos vieses cognitivos no sistema de Justiça Criminal é ampla e abrangente, afetando todos os participantes do processo, incluindo advogados, promotores, juízes, testemunhas e jurados. Cada um desses atores traz suas próprias predisposições e preconceitos para o processo, o que interfere na objetividade e na imparcialidade das decisões judiciais quando não interpretadas com cautela.


REFERÊNCIAS:
FESTINGER, Leon. Teoria da Dissonância Cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

CONJUR, Redação. O juiz penal e a teoria da dissonância cognitiva. 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mai-09/romulo-moreira-juiz-penal-teoria-dissonancia-cognitiva/. Acesso em 26 fev. 2024.

Autores

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Digital, Cibersegurança e Proteção de Dados pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), pós-graduando em Psicologia Forense e Criminal pela Verbo Jurídico, pós-graduando em Perícias Forenses pelo Ipog, gestor para elaboração de Planos Estaduais e Municipais sobre Drogas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e secretário-adjunto da Comissão sobre Políticas de Drogas da OAB-SC.

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