Opinião

Como a discussão sobre taxa de juros e correção monetária em condenações pode afetar a vida dos brasileiros

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6 de março de 2024, 7h02

Em julgamento cuja definição já se estende desde 2020, referente ao Recurso Especial nº 1.795.982, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pretende decidir em 2024, mais uma vez, a taxa de juros incidente sobre as dívidas civis, disposta no artigo 406 do Código Civil.

O entendimento dos tribunais estaduais e das turmas do próprio STJ vêm se contrapondo desde a promulgação do Código em 2002, e tanto a classe jurídica quanto a sociedade em geral estão na expectativa por uma decisão.

A votação, atualmente, está empatada em dois votos a favor e dois votos contra, mas os ministros ainda podem alterar seu posicionamento.

O empate mostra a relevância dessa decisão e o risco que é destruir o sistema jurídico que está vigente há cem anos, desde o Código de 1916, e substituir por um outro sistema que é muito pior e não tem nenhuma segurança jurídica, beneficiando o calote e o não pagamento das dívidas.

Em resumo, os posicionamentos jurisprudenciais se resumem a duas correntes: pela aplicação da Taxa Selic, que historicamente serve como principal mecanismo do Banco Central para o controle da inflação e varia em razão desta; ou pela escolha de um índice estável, a exemplo dos juros de mora de 1% ao mês previstos pelo Código Tributário Nacional (artigo 161, § 1º) e usualmente utilizados nos diversos tribunais estaduais como aqueles a que se refere o Código Civil.

A matéria não é de se desconsiderar, sendo certo que o entendimento a ser consagrado pelo STJ tem o poder de afetar milhões de pessoas e milhares de empresas.

Isso porque se definirá a taxa aplicável aos juros decorrentes tanto de relações contratuais como extracontratuais, sejam de natureza consumerista ou cível, como contratos em espécie e condenações de pagamento de reparação por danos causados.

Gesrey/Freepik

Apenas quanto às ações de reparação de danos, a plataforma de jurimetria Data Lawyer estima o impacto do julgamento em pelo menos 6 milhões de lesados que litigam por seu direito a uma justa indenização.

Assim, desde ações coletivas com pedido indenizatório contra grandes companhias por contratos de adesão abusivos até singelas cobranças de condomínio em face de particulares podem ter suas condenações pecuniárias corrigidas de uma forma ou de outra.

STF na causa

Na última sessão, a questão do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.047, do Supremo Tribunal Federal (STF), entrou no debate. No entanto, o que foi reforçado é o consolidado para dívidas públicas. No entanto, precisa-se enfatizar que dívida pública e dívida civil são coisas diferentes.

Não por outro motivo, já é a segunda vez que o colegiado da 4ª Turma decide submeter o imbróglio à Corte Especial do STJ, que reúne os 15 ministros mais antigos do tribunal e é competente para dirimir divergências de entendimento entres seus órgãos fracionários — tais quais suas 3ª e 4ª Turmas, que tratam sobre direito privado.

Outra prova da relevância do julgamento é a participação de uma série de entidades especializadas no tema, como o próprio Banco Central, o Ministério da Economia, o Conselho Federal da OAB e diversas associações, federações e institutos interessados na resolução da controvérsia.

Chamados ao processo pelo ministro Luis Felipe Salomão, a grande maioria dos chamados amici curiae (os “amigos da corte”, que se prestam a auxiliar o Judiciário em algum litígio) ratifica que a taxa Selic, em razão de sua função originária de instrumento de combate à inflação, se mostra altamente volátil, estando sempre à mercê da conjuntura macroeconômica nacional.

Por esse motivo, os consecutivos e necessários ajustes da taxa básica de juros pelo Comitê de Política Monetária do Bacen impedem que a Selic funcione como índice justo para a atualização de dívidas civis, gerando grave cenário de imprevisibilidade e insegurança jurídica.

Em contrapartida, a taxa legal de 1% ao mês (que corresponde a 12% ao ano), prevista há décadas no ordenamento e de larga utilização pelos variados tribunais da federação, sugere justamente o oposto: estabilidade e previsibilidade do índice, capaz de proporcionar isonomia e segurança jurídica às milhões de pessoas que são parte em ações civis em andamento no País.

Funcionamento da taxa de juros

Disso decorre outra questão interessante na discussão. Como se viu, a fixação da Selic pelo Copom se baseia no cenário econômico do país, de modo que, em sendo a hipótese de alta inflacionária, o órgão eleva a posteriori a taxa básica de juros.

Spacca

O objetivo desse ajuste consiste em reduzir o poder de consumo de modo a conter a alta descontrolada de preços, por força do princípio básico da economia conhecido como “lei da oferta e demanda”.

Assim, vê-se que o índice remunera menos que a própria inflação, visto que está sempre a reboque desta, fato que gera o absurdo quadro de encolhimento do valor da dívida diante do transcurso do tempo, fenômeno denominado “juros negativos”.

Diante disso, em vez de cumprir sua função história e estimular o adimplemento, os juros de mora atualizados pela Selic acabaram por desincentivar o pagamento das dívidas, se opondo à lógica e se demonstrando como imprestável a seu encargo.

Nada obstante, outro argumento utilizado em defesa da Selic consiste no fato de a taxa reunir em si tanto juros de mora quanto correção monetária, ao passo que o índice de 12% ao ano carece de posterior cálculo da correção, eis que engloba apenas os juros. Contudo, tal conciliação entre juros e correção numa única taxa nem sempre é pertinente.

Exemplo disso é a hipótese de condenação ao pagamento de indenização por danos morais, haja visto que, segundo duas súmulas editadas pelo próprio STJ, os juros moratórios fluem a partir da data do dano, ao passo que a correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento. Vê-se, portanto, a incompatibilidade de aplicação da Selic em casos de reparação por danos extrapatrimoniais, classe de ação largamente ajuizada no cotidiano forense.

Perpassados alguns pontos de destaque do julgamento do Recurso Especial nº 1.795.982, não restam dúvidas que os maiores interessados na definição da taxa de juros aplicável às dívidas da espécie são os credores dos débitos. O receio se justifica pela possibilidade de terem que suportar o atraso do adimplemento estimulado pela volatilidade da Selic e o encolhimento dos valores a serem pagos por conta da demora, situação muito prejudicial ao credor, e injustamente favorável ao devedor.

Assim, caberá aos ministros da Corte Especial do STJ decidir sobre a taxa aplicável, devendo ser contrapostas a funcionalidade de uma taxa constante e a mutabilidade de um índice que acompanha a inflação vacilante que se testemunha no Brasil.

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