Opinião

Metamorfose do Tema 677/STJ e gerenciamento de contingências judiciais

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26 de fevereiro de 2024, 9h24

Por uma votação apertada de 7 a 6, o Superior Tribunal de Justiça, em outubro de 2022, revisou a tese anteriormente fixada no Tema 677 [1], alterando completamente os efeitos práticos dos depósitos judiciais e da penhora de ativos financeiros em execuções e cumprimentos de sentença.

De acordo com a nova redação do Tema 677, “Na fase de execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente de penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários da sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial“.

A tese original, fixada em 2014, afirmava, em sentido completamente oposto, que “na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada“.

A premissa da tese fixada em 2014 era de que seria responsabilidade da instituição financeira corrigir o valor depositado ou penhorado até que ele fosse entregue ao credor, com fundamento na Súmula 179 do STJ [2], e nos artigos 629 do Código Civil, 666, I, e 1.219 do CPC/1973.

Contudo, poucos anos após a sua fixação, idealizada com o propósito de reduzir a insegurança jurídica e eliminar posições conflitantes entre tribunais de segunda instância e juízes de primeiro grau, o próprio STJ passou a proferir decisões conflitantes com a tese fixada, admitindo que o depósito judicial ou a penhora de ativos financeiros não teriam a capacidade de extinguir a mora.

A divergência foi escalando e gerando cada vez mais recursos [3], até que, em 2020, a própria Corte Especial do STJ deliberou pela instauração de procedimento de revisão do entendimento firmado no Tema 677. Em 19 de outubro de 2022, o STJ decidiu alterar completamente a sua redação, com expresso entendimento de desnecessidade de modulação de seus efeitos.

Na prática, o que muda?
Antes da revisão da tese do Tema 677, os valores que estivessem depositados nos autos da execução, por meio de depósito judicial voluntário do devedor ou penhora de ativos, e desde que em estrita observância aos termos e condições do título executivo, eram considerados suficientes para extinguir a mora, dentro dos limites da quantia mantida depositada. A partir daquele momento, caberia à instituição financeira a responsabilidade pela correção do referido valor.

Com a nova tese, a mora não será extinta se o depósito judicial for realizado a título de garantia ou se for decorrente de penhora de ativos financeiros, sem que tais valores sejam revertidos imediatamente ao credor. Nesses casos, os rendimentos dos valores depositados na conta judicial servirão apenas para fins de abatimento do total devido em momento futuro e nada mais.

Os únicos depósitos judiciais que seriam suficientes para interromper a mora seriam aqueles “efetuado[s] voluntariamente pelo devedor, com vistas à imediata satisfação do credor, sem qualquer sujeição do levantamento à discussão do débito, tem a aptidão de fazer cessar a mora do devedor e extinguir a obrigação, nos limites da quantia depositada[4].

O STJ baseou sua nova tese no fato de que as instituições financeiras geralmente corrigem os valores vinculados às contas judiciais pela Taxa Referencial (TR), mais juros de 0,5% ao mês, o que é inferior aos juros de 1% ao mês usualmente aplicados e aos índices de atualização monetária usados pelos tribunais e tidos como referência nas relações contratuais.

Portanto, de acordo com o racional do STJ, o credor não deve ser prejudicado pela correção inferior realizada pela instituição financeira do valor que lhe é devido, de modo que o devedor deve arcar com a diferença do valor obtido pela correção realizada pela instituição financeira que gerencia os depósitos judiciais, e o valor que é devido quando calculado nos termos do título executivo.

O impacto mais relevante e imediato da revisão do Tema 677 diz respeito à gestão de contingências dos casos que antes estavam totalmente garantidos por depósitos judiciais ou penhora de ativos financeiros, tanto na qualidade de credor como de devedor. Isso ocorre porque os valores penhorados ou depositados a título de garantia, e que eram suficientes para interromper a mora segundo o racional original da tese do Tema 677, agora não são mais suficientes, de modo que os juros de mora e a correção monetária continuam a incidir sobre o montante executado até o efetivo levantamento desses valores pelo credor.

Para ilustrar a problemática, suponha um caso hipotético com as seguintes características: (1) execução de R$ 10 milhões, com atualização monetária pelo índice do TJ-SP e juros de 1% ao mês a partir de 31/1/2014; (2) depósito judicial realizado no mesmo dia, em 31/1/2014 como garantia para discutir o valor executado; (3) rejeição da defesa da parte executada, com trânsito em julgado exatos 10 anos após a distribuição da execução, em 31/1/2024.

Sob a tese inicial do Tema 677, não haveria dívida pendente, já que o banco responsável pelo depósito se encarregaria da correção do referido valor. Entretanto, com a revisão do Tema 677, o valor remanescente devido seria de R$ 20,8 milhões, já com os abatimentos decorrentes da correção monetária da instituição financeira responsável pelo depósito [5].

Ou seja, aquele devedor que, em 2015, confiou no Tema 677 do STJ ao efetuar o depósito judicial para purgar a mora e suspender a execução que lhe foi proposta, hoje, neste cenário hipotético, seria surpreendido com a necessidade de complementar o depósito no importe de mais de 200% do valor original.

Na visão do credor, a mudança é extremamente benéfica, pois afasta uma metodologia de correção que não se presta à manutenção do poder de compra do dinheiro (já que a Taxa Referencial não acompanha a inflação), e traz a garantia de que o seu crédito será corrigido seguindo as referências contratuais ou legais, a depender da circunstância.

Além disso, o devedor não estará mais livre dos encargos legais ou contratuais após o depósito judicial a título de garantia ou penhora de ativos, tornando cada vez menos sedutoras as estratégias de protelar o pagamento da dívida.

Para o devedor, por outro lado, isso significa rever todas as contingências judiciais em ações executivas ou em fase de execução, bem como exige uma mudança de pensamento para avaliar a conveniência da manutenção da disputa judicial, especialmente considerando os exponenciais impactos da cumulação de correção monetária e juros de mora.

O ato de realizar o depósito judicial para garantir a execução, que outrora poderia ser uma boa estratégia, por exemplo, mostra-se pouco interessante, de modo que outras opções, como o seguro garantia, podem ser mais adequadas.

Como se vê, a nova redação do Tema 677 impacta diretamente na estratégia processual de credores e devedores, que devem prontamente se adequar a essa nova realidade e, ao mesmo tempo, rever estratégias que foram implementadas no passado à luz do entendimento original do tema, em 2014. Independentemente do acerto ou desacerto da nova redação do Tema 677, fato é que a revisão, por apertada margem e sem qualquer modulação dos seus efeitos, gera preocupação e insegurança jurídica aos jurisdicionados e operadores do direito.

Além disso, a nova revisão do Tema 677 deixa algumas pontas soltas, já que não abarca situações corriqueiras, como a demora na expedição de mandado de levantamento ou a mora do próprio credor em requerer o levantamento de valores a ele disponibilizado para continuar inflando seu crédito com juros de mora. O Tema 677 não faz essa análise e tampouco dá uma solução concreta.

Por mais nobres que fossem as intenções do STJ com a revisão do Tema 677, essa mudança de posicionamento afeta a segurança jurídica e impede a implementação de qualquer sistema de precedentes almejado pelo CPC/2015, especialmente quando o STJ optou por não modular os efeitos da revisão do Tema 677.

Esse tipo de mudança, abrupta, radical e por apertada margem, influencia negativamente a atratividade do Brasil para investimentos estrangeiros, dada a percebida falta de previsibilidade e estabilidade do Poder Judiciário, e também gera impactos fora do âmbito judicial, instigando o litígio, uma vez que o STJ, mais uma vez, demonstrou facilidade e flexibilidade em revisar, de forma contrastante, suas próprias premissas e posicionamentos.

 


[1] Definição do que seria o julgamento de uma matéria em sede de Tema perante o STJ: “É o recurso julgado pela sistemática descrita no Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015) [arts. 1.036 e sgs.], em que o STJ define uma tese que deve ser aplicada aos processos em que discutida idêntica questão de direito” (https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Precedentes/informacoes-gerais/recursos-repetitivos#:~:text=Tema%20ou%20Recurso%20Repetitivo%20(RR)&text=%E2%80%8B%C3%89%20o%20recurso%20julgado,discutida%20id%C3%AAntica%20quest%C3%A3o%20de%20direito. Acesso em: 21/01/2024).

[2]O estabelecimento de crédito que recebe dinheiro, em depósito judicial, responde pelo pagamento da correção monetária relativa aos valores recolhidos.

[3] (i) AgRg no AREsp 850.523/PR, 2ª Turma, DJe 27/05/2016; (ii) EDcl no AgRg no AREsp 750.635/PE, 4ª Turma, DJe 17/05/2016; (iii) AgRg no REsp 1.014.133/RN, 4ª Turma, DJe 17/05/2016; (iv) AgInt no REsp 1.369.644/MG, 4ª Turma, DJe 22/06/2016; (v) REsp 1.675.084/SE, 2ª Turma, DJe 13/09/2017; (vi) AgInt no AREsp 777.576/SC, 4ª Turma, DJe 20/03/2018; (vii) AgInt no REsp 1.676.099/RS, 4ª Turma, DJe 06/03/2019; (viii) AgInt no AREsp 1.185.939/MG, 4ª Turma, DJe 19/11/2019; e (ix) AgInt no AREsp 1.506.935/SP, 4ª Turma, DJe 04/05/2020.

[4] STJ. Tema 677, Resp 1820963/SP, § 14 do voto vencedor da min. Nancy Andrighi.

[5] O credor levantaria R$ 18.193.967,34 referente ao depósito judicial e seus respectivos rendimentos, e o devedor ainda teria que desembolsar a quantia de R$ 20.820.434,85 para quitar seu débito.

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