Opinião

A inconstitucionalidade do artigo 1.021 § 4º do novo CPC

Autor

  • Renato Otávio da Gama Ferraz

    é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

4 de março de 2024, 20h57

Li com muita tristeza uma decisão bem recente, que me causou imensa perplexidade, no ARE-AgI 1.465.012. Vejamos:

“Diante do exposto, nego provimento ao agravo interno. Aplico à parte agravante multa de 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do art. 1.021, § 4°, do CPC/2015, em caso de unanimidade da decisão. Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, fica majorado em 10% o valor da verba honorária fixada anteriormente, observados os limites legais do art. 85, §§ 2º e 3º, do CPC/2015.”: Decisão: O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao agravo, com imposição de multa e majoração de honorários, nos termos do voto do Relator, Sessão Virtual de 8.12.2023 a 18.12.2023.”

Ocorre que, nos autos originais, à fl. 126, foi deferida a gratuidade de justiça, ao recorrente nos seguintes termos: “Defiro a gratuidade de justiça requerida pelo Autor”.

Pois então. Por unanimidade, nenhum julgador observou que foi deferida assistência judiciária gratuita. O assessor e o robô magistrado também não viram nada. Dormiram no ponto. Além do que, “acompanhando o relator” os outros julgadores majoraram em 10% o valor da verba honorífica, mesmo com a justiça gratuita deferida. Incrível, não é?

Como assim?

Sempre com todo o respeito, é equivocada a decisão quando diz que: “fica majorado em 10% o valor da verba honorária fixada anteriormente”.

Por quê? Porque não há verba honorária fixada anteriormente em face à gratuidade de justiça deferida na instância de origem. Simples assim.

Recorta e cola
Cá pra nós: ocorreu a síndrome do “acompanho o relator”. É o juiz mudo! Fala nada! Votar dá trabalho. Tem que analisar os autos. Tem que fundamentar, não é?

Spacca

Logo, vem, em regra, na votação, o “acompanho o relator”: “fica majorado em 10% o valor da verba honorifica fixada anteriormente”. Ora, ora não foi fixada nenhuma verba honorífica anteriormente…

A propósito, qualquer pessoa com um mínimo de experiência no dia a dia forense sabe que as decisões de agravo interno são, em grande maioria, um “recorta e cola”.

É assim porque o relator disse que é assim. Lembrei-me do primeiro dia da aula de Ssciologia, na UFRJ. O professor foi logo perguntando:

Por que é assim? A ideia do mestre era desconstruir o senso comum que diz: é assim porque o ministro, o desembargador e o juiz  disseram que era assim? É o argumento da autoridade.

Aliás, pergunto: quando a doutrina voltará a doutrinar? Quando deixará de ficar omissa? Quando deixará de ser escrava das idiossincrasias do poder?

Manifestamente inadmissível
Prossigo. Consoante artigo 1.021, § 4º do Novo Código de Processo Civil (NCPC):

“Quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa.”

Mas o que é “manifestamente inadmissível ou improcedente”? É um conceito jurídico indeterminado. A redação do texto normativo não é das melhores. É dúbia. Causa dúvidas. Os julgados não se entendem. Não há um critério objetivo. Dá superpoder aos tribunais.

Pior: fica a critério da discricionaridade judicial! Decido, porém, conforme a minha consciência.

Não se pode esquecer que a maioria dos julgados são por unanimidade. Além do que, o direito da lei não exige mais que haja abuso de direito de recorrer e nem que o recurso seja protelatório.

Pode ser considerado “manifestamente improcedente” o agravo interno que tem como objetivo esgotar as instâncias ordinárias e, assim, oportunizando a interposição de recurso?

Não é difícil verificar que a resposta a essa pergunta só pode ser: não, não e não!

Fazendo uma interpretação histórica da lei, nota-se que a ideia era tentar diminuir o número de recursos e o trabalho dos tribunais. Tudo em nome da “celeridade” e “eficiência”.

Não obstante, o inferno está cheio de boas intenções: jogou fora o bebê junto com a água do banho. Acabou com o sagrado direito constitucional à ampla defesa do recorrente.

Multa de 1%
Mas há mais. É necessário, agora, a análise da multa fixada. Que coisa feia: Se agravar, pode multar! Vejamos fragmentos do acórdão:

“Aplico à parte agravante multa de 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do art. 1.021, § 4°, do CPC/2015, em caso de unanimidade da decisão.”

É o tribunal punitivista. Pois então. É de uma obviedade óbvia: toda parte sucumbente, sim, tem o direito constitucional e processual de ingressar com agravo interno, pois é a única forma de reverter uma decisão monocrática do relator, vale dizer, assim, chamar o órgão colegiado para prolação de nova decisão.

Por outras palavras, é evidente de que não haverá outra saída à parte que não o ingresso do agravo interno de decisão monocrática do relator.

É o famoso direito constitucional à ampla defesa! É o devido processo legal!

Trata-se, também, de uma questão de boa-fé hermenêutica, pois contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado (artigo 1.021 do NCPC).

Ou seja, a parte agravante pode e deve usar mecanismos processuais previstos no NCPC para defesa de seu direito. A presunção de boa-fé é princípio geral de Direito: a boa-fé se presume; a má-fé se prova. Deve-se respeitar a boa-fé daquele que observou o NCPC.

Aplicação automática do artigo 1.021 § 4º, do NCPC
Além do que, não se pode esquecer que o direito da lei fala: “o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor da causa atualizada”.

É importante observar, nesse ponto, que em nenhum momento o órgão colegiado disse que houve abuso no ingresso do agravo interno, isto é, que teve abuso do direito de recorrer ou que era protelatória.      

Não, mesmo!

O que houve foi uma aplicação automática do artigo 1.021 § 4º, do NCPC, em decorrência do não provimento do agravo interno em votação unânime.

O que diz a doutrina?
Contudo, não houve a devida fundamentação. Daí a observação de Renato Ferraz [1] cuja precisa lição:

“Como qualquer outra ciência o Direito Processual tem princípios. Um deles é o princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais. Fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê.”

Fredie Didier Jr e Leonardo Carneiro da Cunha entendem que:

“A multa não é automática; é preciso examinar cada caso, sendo necessário haver, uma decisão fundamentada, por votação unânime, reconhecimento do caráter inadmissível ou manifestamente improcedente” [2]. 

O Superior Tribunal de Justiça, atento ao absurdo jurídico que seria produzido pela interpretação literal da norma, já teve oportunidade de decidir que a aplicação da multa prevista no § 4º do artigo 1.021do NCPC não é automática, não se tratando de mera decorrência lógica do não provimento do agravo interno em votação unânime [2]:

A meu sentir, porém, vale registrar, que a norma do artigo 1021§ 4º, é, sim, um absurdo jurídico! O novo CPC, trouxe avanços. Não é o ideal.  Todavia, nesse ponto, é um imenso retrocesso! O curioso é que: como passou na Comissão de Juristas?

Há uma escancarada inconstitucionalidade material!

No mesmo sentido, é preciso ressaltar, na linha de autorizado magistério doutrinário do professor Daniel Amorim Assumpção Neves [4]:

“Sancionar um legítimo exercício de direito processual apenas porque a pretensão foi unanimemente rejeitada é uma inconstitucionalidade evidente.”

É um cenário dramático! As partes e advogados sofrem! Afinal, qual o critério normativo que permite fazer uma escolha punitivista e teratológica dessa?

Já não basta a jurisprudência superdefensiva dos tribunais para fazer “subir” um recurso especial ou extraordinário.  Que coisa feia: agora, se agravar, pode multar!

Pois bem. Levar multa por interpor agravo interno, exercendo o direito constitucional à ampla defesa, sem o tribunal enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador?

Pode isso?

E o tribunal alegar a ladainha de sempre:

“configura apenas ofensa indireta ou reflexa à Constituição e que seria necessário analisar a causa à luz da interpretação dada à legislação infraconstitucional pertinente e reexaminar os fatos e as provas dos autos, o que não é cabível em sede de recurso extraordinário, nos termos da Súmula 279 /STF”.

Por fim, repita-se, então: quando a doutrina voltará a doutrinar e o sol a brilhar?! É imprescindível dar efetividade as garantias processuais. É muita humilhação para os causídicos! Temos sangrado demais!

Mas é preciso coragem para remar contra a maré. É preciso muita indignação!

Com a palavra, também, a OAB…!

 


Referências:

[1] FERRAZ, Renato, https://www.conjur.com.br/2023-ago- 21/renato-ferraz-embargar-ou-nao-embargar-eis-questao/

[2] STJ, 2ª Seção, Agint nos EREsp.1.120.356-RS, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j.24.8.2016, Dje 29.8.2016

[3] DIDIER JR, Fredie e DA CUNHA, Leonardo Carneiro, Curso de Direito Processual Civil, p.382, 2023)

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Novo Código de Processo Civil Comentado, p.1780, 2018, 3 ª ed.)

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana) e de outras obras.

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