Opinião

Implicações da extrafiscalidade do futuro Imposto Seletivo sobre o direito ambiental

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2 de março de 2024, 13h19

O ordenamento jurídico é a biosfera, sobre o qual há inúmeros ecossistemas, como o direito civil, o direito trabalhista e, não menos importante, o direito tributário.

Cada ecossistema pode ser entendido como um meio e fim em si mesmo, com legislações internas prevendo seu alcance e conteúdo, como também com a atuação de atores específicos restritos a estes meios.

Por outro lado, estes possuem intersecções entre si e, mais importante, influenciam uns aos outros, seja de forma direta ou indireta.

É em razão dessa característica que se mostra necessário, com a Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023, refletir sobre eventuais implicações da extrafiscalidade do futuro Imposto Seletivo (IS) sobre o direito ambiental.

O passado talvez traga essas respostas, no sentido do que consiste a chamada “seletividade”, bem como seu comportamento com outro tributo já existente, com efeitos visualizáveis.

Antes, um passo atrás. Para entender a seletividade, vamos abordar a “extrafiscalidade”.

A extrafiscalidade, em linhas gerais, consiste na utilização de um determinado tributo com fim de coibir e/ou incentivar determinada conduta por parte do contribuinte, servindo de ferramenta do Estado para perseguir certos fins sociais ou econômicos [1].

São exemplos de tributos com caráter predominantemente extrafiscal o Imposto de Importação (II), o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e, mais importante para este artigo, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

O IPI, conforme determina a Constituição (CF), em seu artigo 153, parágrafo 3, será seletivo, em função da essencialidade do produto (leia-se como um princípio e um poder-dever) [2]. Em seguida, há um decreto regulamentador do mesmo, qual seja, o Decreto nº 7.212/2010.

Este decreto, por sua vez, em seu artigo 69, dispõe que o Estado, justamente para atingir certos fins, em observância de tal princípio, poderá reduzir alíquotas do imposto até zero ou majorá-las até 30%.

Encontro do ambiental com o tributário
Em vistas dessa característica, no caso do IPI, há uma Tabela de Incidência (Tipi), a qual indica-se a alíquota incidente sobre determinados produtos. Certos produtos, como o cigarro e bebidas alcoolicas, respectivamente, possuem uma alíquota de 300% e 19,5%.

É aqui que os dois ecossistemas (direito tributário e direito ambiental) se encontram e dão pistas para o futuro IS (atualmente, não há na legislação do IPI determinação expressa do princípio da seletividade andar em conjunto com a saúde ou meio ambiente).

O cigarro, para além de não ser entendido como essencial, também é considerado um produto que agride o meio ambiente [3].

Em sendo o caso, aqueles que o produzem são classificados como poluidores, conforme definição do artigo 3, inciso IV de nossa Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), Lei n° 6.938/1981. Consequentemente, a legislação impõe uma série de restrições a persecução de tal atividade econômica, servindo de exemplo:

  • O estabelecimento de normas e critérios técnicos para licenciamento da atividade, cumulado com a determinação de prévio licenciamento ambiental para exercício da atividade (artigo 8, inciso I c/c artigo 10 da PNMA);
  • Cadastro Técnico Federal de atividades potencialmente poluidoras (artigo 9, inciso XII da PNMA);
  • Sujeição dos poluidores a indenização ou reparação por danos causados ao meio ambiente e a terceiros, independente da existência de culpa, sem prejuízo de eventuais sanções criminais (artigo 14, parágrafo 1 da PNMA); e
  • Sujeição dos poluidores a responsabilidade criminal, caso exponha em perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave situação de perigo existente (artigo 15 da PNMA).

Percebe-se então que a lente da extrafiscalidade do direito tributário pode ser emprestada ao direito ambiental, inclusive para compreensão de certos efeitos na economia e na conduta humana, tendo em vista que em última ratio, a PNMA e o princípio da extrafiscalidade se alinham em coibir a persecução de atividades não entendidas como essenciais a economia e produtoras de malefícios a sociedade.

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Especialistas, nesse sentido, se debruçam, através da análise de dados, se foi possível reduzir o consumo de cigarro no Brasil [4], bem como se produziu efeitos adversos e danosos, como o aumento de contrabando de cigarros para o país, aumentando a evasão fiscal e contribuindo para a existência de produtos que não seguem padrões de qualidade da Anvisa [5] e novo grau de poluição ao meio ambiente, com prejuízo a saúde de consumidores a novos patamares. [6]

Com a EC nº 132/2023, direito tributário e direito ambiental não precisam mais seguir o caminho lógico e interpretativo acima. Agora, o princípio da seletividade passa a acompanhar a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar.

Assim, colocando de lado a necessidade de edição de lei complementar para regulação do IS e eventual relação mais explícita com o direito ambiental, há uma boa margem de hermenêutica para que ambos os sistemas se entrelacem e o Estado, visando a persecução de certos fins econômicos ou sociais, passe a ampliar sua intervenção sobre o domínio econômico e ambiental.

O futuro, como diz o ditado popular, a Deus pertence, porém, o passado do IPI, caso estudado e refletido, pode trazer respostas sobre possíveis implicações. Resta aguardar os próximos capítulos.

 


[1] PONTÍFICA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. Enciclopédia Jurídica – Tributação extrafiscal. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/305/edicao-1/tributacao-extrafiscal. Acesso em: 13 de Fev. 2024.

[2] ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS. Interpretação Constitucional do Princípio da Seletividade Tributária no IPI e no ICMS. Disponível em: https://apet.org.br/artigos/interpretacao-constitucional-do-principio-da-seletividade-tributaria-no-ipi-e-no-icms/. Acesso em: 13 de Fev. 2024.

[3] ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. OMS alerta sobre impacto ambiental da indústria do tabaco. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/31-5-2022-oms-alerta-sobre-impacto-ambiental-da-industria-do-tabaco. Acesso em: 13 de Fev. 2024.

[4] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notas Técnicas para o Controle do Tabagismo – Medidas relacionadas a preços e impostos para reduzir a demanda de tabaco. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/nota-tecnica-controle-tabagismo-medidas-relacionadas-precos-impostos-para-reduzir-demanda.pdf. Aceso em: 13 de Fev. 2024.

[5] UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE. Análise crítica da tributação extrafiscal sobre o cigarro sob a ótica do crescimento do contrabando. Disponível em: https://dspace.mackenzie.br/items/cd39999a-a2a6-4a42-acfc-41c22bfdd261. Acesso em: 13 de Fev. 2024.

[6] UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. Cigarros contrabandeados tornam o tabagismo ainda mais perigoso; entenda por quê. Disponível em: https://www2.uepg.br/qaas/cigarros-contrabandeados-tornam-o-tabagismo-ainda-mais-perigoso-entenda-por-que/. Acesso em: 13 de Fev. 2024.

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