Opinião

Dignidade sexual, colisão de interesses e a captação ambiental clandestina

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25 de fevereiro de 2024, 15h23

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento de Habeas Corpus (processo em segredo de justiça, com relatoria do ministro Ribeiro Dantas, julgado em 21/11/2023, DJe 28/11/2023), decidiu que “na colisão de interesses, é válida a captação ambiental clandestina sempre que o direito a ser protegido tiver valor superior à privacidade e à imagem do autor do crime, utilizando-se da legítima defesa probatória, a fim de se garantir a licitude da prova” (Edição Extraordinária nº 16, Direito Penal, 30 de janeiro de 2024).

Segundo consta, os membros da equipe de enfermagem de um hospital notaram o comportamento atípico do acusado durante uma cirurgia e gravaram em vídeo o incidente criminoso, levando em consideração a fragilidade da vítima, que estava sedada e incapaz de reagir ou testemunhar os eventos.

A defesa argumentou que as imagens que serviram de base para a acusação foram gravadas sem o consentimento prévio da vítima ou do agressor, e sem autorização prévia da polícia ou do Ministério Público, o que seria uma violação à Lei 9.296/1996.

Além disso, segundo a defesa, o local onde a gravação clandestina ocorreu não era público, e as imagens foram captadas por meio de um dispositivo privado.

O STJ rejeitou esse entendimento, decidindo que é válida como prova a captação ambiental clandestina quando o direito a ser protegido tiver valor superior à privacidade e à intimidade do autor do crime.

Segundo o colegiado, as gravações podem ser consideradas lícitas, especialmente quando se mostram como o único meio de comprovação do delito e envolvem direitos fundamentais mais relevantes do que a garantia de inviolabilidade da imagem do ofensor.

“Colisão de interesses” e os propósitos do ensaio
Apesar de o STJ ter decidido corretamente, isto é, considerando a gravação como lícita, ao basear parte da fundamentação da decisão na ideia de “colisão de interesses”, acreditamos que essa não foi a abordagem mais adequada.

Com base neste julgado, os objetivos delineados neste ensaio são os seguintes: (1) questionar a técnica adotada pelo STJ em relação à legitimidade da captação ambiental clandestina, especialmente ao utilizar a ideia de “colisão de interesses” como fundamento;

(2) argumentar que a aplicação da legislação existente, como o artigo 10, § 1º da Lei 9.296/1996, já resolveria a questão da licitude da prova, independentemente da aplicação da teoria da colisão de interesses, destacando que a legítima defesa de terceiro, mesmo que não estivesse expressamente prevista em determinada legislação, poderia ser aplicada com base nos princípios fundamentais do sistema jurídico, como o direito à vida;

(3) refutar a ideia de colisão de interesses, argumentando que o ordenamento jurídico e a tradição jurídica já estabeleceram quais interesses devem prevalecer, especialmente no contexto da legítima defesa;

e (4) alertar para o risco de interpretações equivocadas ao fundamentar decisões judiciais na ideia de colisão de interesses, enfatizando a importância da clareza e da consistência nos fundamentos jurídicos para a integridade do sistema jurídico na totalidade.

1. Avaliação da utilização da ideia de “colisão de interesses” como fundamento
Não é de hoje que parte da doutrina aponta as inconsistências na aplicação, por parte dos operadores do Direito, da teoria desenvolvida por Robert Alexy.

“Ponderação de princípios” e “colisão de interesses” se transformaram na “rainha” do jogo de xadrez, podendo se movimentar de inúmeras formas, adequando-se até mesmo em situações completamente antagônicas.

Sem adentrar nesse debate [1], no caso julgado pelo STJ, ainda que se adote a linha de Robert Alexy ou de outros autores que seguem a matriz epistemológica da teoria da argumentação, a aplicação da própria legislação já permitiria chegar à conclusão de que a prova é lícita, pois o artigo 10, § 1º da Lei 9.296/1996, preceitua que “não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”.

Em outros termos, a própria legalidade já resolvia o caso.

Em continuidade, o leitor poderia afirmar: “Não foi a vítima que realizou a captação, logo, não foi executada por um dos interlocutores; por consequência, a prova é ilícita”.

Este tema, embora tenha sido abordado durante o julgamento, consideramos essencial aprofundá-lo.

2. Discussão sobre a independência da aplicação da teoria da colisão de interesses nesse contexto
Em resposta à assertiva hipotética formulada, é importante destacar que, em primeiro lugar, a própria vítima estava sedada, ou seja, é impossível exigir que ela executasse a captação.

Conforme nossa compreensão, outros interlocutores poderiam realizar a captação, pois sistema jurídico (artigo 25 do Código Penal [2] e artigo 186 do Código Civil [3]) consagra a instituto da legítima defesa de terceiro.

Ora, se a vítima estava sedada, na eminência de sofrer uma injusta agressão, as enfermeiras, ao realizar a captação, agiram em legítima defesa de terceiro, ainda que para fins probatórios.

De igual forma, a justificativa da legítima defesa é atemporal, sendo parte integrante da trajetória da humanidade ao longo da história.

Referências à sua prática estão registradas em diversos registros e leis de civilizações antigas. Desde tempos remotos, a legítima defesa tem sua origem no instinto básico e na imperativa necessidade de sobrevivência.

O próprio ordenamento jurídico, e toda a história institucional/tradição (no sentido desenvolvido por Hans-Georg Gadamer) que percorre o instituto da legítima defesa (Ordenações Filipinas, Código Criminal de 1830, Código Penal de 1890 e o Código Penal de 1940), já propuseram qual “interesse” deve prevalecer.

Observa-se, portanto, que não há uma “colisão de interesses”. Recorrer a essa perspectiva para algo já previsto na legislação pode causar confusão.

O ministro Ribeiro Dantas também mencionou em seu voto o Tema 237 do Supremo Tribunal Federal [4], reforçando ainda mais a desnecessidade de se recorrer à ideia de “colisão de interesses”, contudo, a questão não recebeu novamente a atenção devida.

Em verdade, o desenvolvimento da “legítima defesa probatória” foi apresentado, ao menos no âmbito do STF, pelo ministro Moreira Alves, no julgamento do Habeas Corpus nº 74.678 de 1997.

De acordo com Moreira Alves, apoiado na doutrina de Peter Preisendanz e Heleno Cláudio Fragoso, não há que se falar em violação da intimidade se a gravação é para salvaguardar a produção de prova de um fato criminoso, ou seja, em defesa da vítima.

Por consequência, o raciocínio jurídico torna-se relativamente simples, já que está afastada a ilicitude. Ora, se a legítima defesa não configura crime (artigo 23, inciso II do Código Penal) ou ato ilícito (artigo 188, inciso II do Código Civil), não há justificativa para a prova ser ilícita, pois se trata de uma conduta autorizada pelo ordenamento jurídico.

Em outros termos, o próprio sistema normativo já “selecionou” o “interesse” a prevalecer.

3. Argumentação sobre a legítima defesa de terceiro, mesmo na ausência de previsão expressa na legislação específica.
Avançando ainda no assunto, imaginemos a situação em que não houvesse, de forma expressa no Código Penal, a legítima defesa de terceiro.

Como a questão se resolveria? Ainda assim, seria necessário (para aqueles que adotam esta perspectiva teórica) recorrer a “colisão de interesses”?

As enfermeiras poderiam realizar a captação?

Apresentemos nosso raciocínio para tentar trazer inteligibilidade à indagação, demonstrando que não há necessidade de se recorrer a “colisão de interesses”.

Mesmo que não houvesse a previsão da legítima defesa de terceiro, o sistema jurídico, em inúmeras ocasiões (direito administrativo, constitucional, civil e tributário), utiliza-se do instituto da delegação, permitindo que alguém pratique determinado ato em nome de outrem.

Não existe razão válida para que a aplicação desse mecanismo (delegação) se diferencie quando se trata de legítima defesa.

A conduta de deixar de prestar assistência à pessoa inválida, ferida, em desamparo ou em grave e iminente perigo, bem como se omitir em solicitar socorro das autoridades competentes, é criminalizada no artigo 135 do Código Penal.

Isso evidencia que a solidariedade não é apenas uma obrigação moral ou ética, mas um dever jurídico. A responsabilidade de prestar assistência àqueles que precisam, como era o caso da vítima, não se restringe apenas a um aspecto ético-profissional, mas constitui em um dever legal.

Em continuidade, o direito à vida é um dos pilares fundamentais de qualquer ordem jurídica democrática. Ele não apenas garante a existência física do indivíduo, mas também abrange aspectos relacionados à integridade e dignidade humanas.

Dentro desse contexto, a dignidade sexual do indivíduo emerge como uma dimensão crucial, protegida não apenas pelo direito à vida, mas também pelo direito à liberdade e à integridade pessoal.

Portanto, a aplicação da legítima defesa de terceiro, ainda que não explicitamente prevista no código, reflete os princípios fundamentais de proteção à vida e à integridade.

Assim, qualquer interpretação que afastasse a legítima defesa de terceiros, mesmo que não expressamente prevista no Código Penal, poderia ser considerada inconstitucional à luz do artigo 5º, caput, da Constituição Federal, que estabelece a inviolabilidade do direito à vida.

Portanto, é crucial que a interpretação das leis e a aplicação da legítima defesa levem em consideração não apenas as disposições legais específicas, mas também os princípios constitucionais que garantem a proteção dos direitos fundamentais, incluindo o direito à vida e à dignidade sexual do indivíduo.

De certo modo, o exercício hermenêutico que estamos realizando, faz rememorar o clássico exemplo de Luis Recasens Siches [5]. Em seu livro Tratado General de Filosofia del Derecho (1970, p. 317), Recasens Siches descreve a situação em que numa estação ferroviária na Polônia, uma placa exibia uma regra do regulamento ferroviário que proibia explicitamente a entrada de cães na plataforma. Num determinado momento, um indivíduo tentou entrar acompanhado de um urso, mas foi barrado pelo funcionário responsável pela entrada.

O argumento apresentado foi que o regulamento mencionava apenas a proibição de cães e não fazia menção a outros animais. Isso desencadeou um conflito jurídico, focado na interpretação precisa da regra em questão.

Se aplicarmos uma abordagem estritamente lógica, é evidente que a pessoa acompanhada pelo urso teria o direito de entrar na plataforma. Afinal, os ursos não podem ser categorizados como cães, portanto, não se enquadram na definição restrita da proibição mencionada na regra.

Isso vale para o artigo 10, § 1º da Lei 9.296/1996, já que numa análise lógica, somente um dos interlocutores poderia realizar a captação.

Porém, a interpretação correta não advém da mera subsunção.

A subsunção pode chegar atrasada.

A resposta passa por reintroduzir “no mundo jurídico o mundo prático sequestrado pela regra” (STRECK, L. L. Verdade e consenso. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012).

Por este motivo, a operação não é puramente de adequar o fato à norma, mas de avaliar o problema hermeneuticamente, pois na situação pragmática, o significado é dado pela compreensão.

O caso analisado propõe um resgate da razoabilidade, não como um álibi para a prática de voluntarismo, e sim no sentido da razão prática (comensurabilidade das ações, aliado à justiça e equidade a que fala José Reinaldo de Lima Lopes).

Por conseguinte, indaga-se: a “razão” (São Tomás de Aquino) da Lei 9.296/1996, em sua dimensão ética e política, seria punir, levando em conta o contexto apresentado, as enfermeiras que realizaram a captação?

Há um dever jurídico de sigilo no caso julgado?

As respostas não são negativas.

Desta forma, ainda que não houvesse previsão expressa na legislação, não é razoável concluir que o acusado, na situação descrita nos autos, pudesse se resguardar do “direito fundamental à intimidade”.

Como já ressaltou o ministro Nelson Jobim, em julgado que criou o precedente do Tema 237: “é inconsistente e fere o bom senso comum falar em violação do direito à privacidade quando o interlocutor grava diálogo com sequestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista” (HC n. 75.338).

Em resumo, tanto a hipótese em que há previsão normativa quanto aquela em que não há previsão expressa, não nos levariam à conclusão de que no caso em questão haveria “valores” a serem ponderados ou interesses conflitantes.

4. Alerta sobre interpretações equivocadas e importância da clareza nos fundamentos jurídicos
Por fim, ao evocar, de forma ampla, o standard jurídico da “colisão de interesses”, o STJ pode-se suscitar circunstâncias nas quais tal construção seja empregada como fundamento para casos não contemplados expressamente pela legislação ou pela facticidade, possibilitando a realização de interceptações ou captações ambientais ilícitas em nome da ponderação, ou conflito de interesses.

Foi justamente isso que ocorreu no julgamento do Habeas Corpus nº 203.405 – MS, ocasião em que o STJ definiu ser possível a interceptação telefônica no âmbito do processo civil, em nome da proporcionalidade e da colisão de interesses que havia na demanda.

Na ocasião, o relator ministro Sidnei Beneti entendeu que a “há que se proceder à ponderação dos interesses constitucionais em conflito, sem que se possa estabelecer, a priori, que a garantia do sigilo deva ter preponderância” (Habeas Corpus nº 203.405 – MS).

O resultado de uma decisão judicial é crucial, mas não deve ser considerado isoladamente. O processo que leva a esse resultado também é de extrema importância. A clareza e a consistência nos fundamentos são essenciais para garantir a integridade do sistema jurídico e para evitar interpretações equivocadas.

Uma decisão correta, com fundamentos inadequados, pode resultar em inúmeras incompreensões, ou como diz o ditado, “o tiro pode sair pela culatra”.

 

 


[1] Conferir: MORAIS, F. S.  Ponderação e arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo STF. 2 ed. Salvador: Juspodvim. 2018.

[2] Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Vide ADPF 779). Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vide ADPF 779)

[3] Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

[4] É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.

[5] Outros casos poderiam ser utilizados para problematizar a questão, como, por exemplo, a proibição de veículos no parque (Herbert Hart) e a proibição de filhotes de pequinês (Lenio Streck).

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