Opinião

A lacuna existente acerca do termo inicial do prazo da prescrição

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1 de março de 2024, 18h26

Sabe-se que a pretensão para postular em juízo nasce com a violação do direito e se extingue pela prescrição, cujos prazos se encontram taxativamente discriminados na Parte Geral do Código Civil. A prescrição possui três requisitos, sendo eles a violação do direito, a inércia do titular e o decurso do tempo fixado em lei.

Uma das modalidades de prescrição é chamada de “intercorrente”, que ocorre durante o curso do processo e, em linhas gerais, se configura quando o autor permanece inerte de forma contínua e ininterrupta durante lapso temporal suficiente para a perda da pretensão, o que se dá em atenção ao princípio constitucional da razoável duração do processo judicial previsto no artigo 5º da Constituição Federal.

No entanto, uma premissa básica para a contagem do prazo prescricional é a certificação da ausência de qualquer fato ou ato a que a lei atribua eficácia impeditiva, suspensiva ou interruptiva do curso prescricional.

Em um primeiro momento, o Código de Processo Civil de 2015 havia estabelecido, em seu artigo 921, uma das hipóteses de suspensão do prazo prescricional, que deveria acontecer quando o devedor não possuísse bens penhoráveis (artigo 921, III), momento em que o juiz suspenderia a execução e, consequentemente, o prazo prescricional (artigo 921, § 1°). Decorrido o prazo de um ano da suspensão, começaria a correr o prazo de prescrição intercorrente (artigo 921, § 4°).

O § 4° da Lei 14.195/21
Porém, com a alteração trazida pela nova redação do parágrafo 4°, a qual foi incluída pela Lei 14.195/21, com vigência a partir de 21 de agosto de 2021, restou estabelecido que o novo termo inicial para a contagem da prescrição seria a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. Na redação anterior estava:

§ 4º Decorrido o prazo de que trata o § 1º sem manifestação do exequente, começa a correr o prazo de prescrição intercorrente.  A redação atual, porém,  diz: § 4º O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no § 1º deste artigo.

Com o advento dessa alteração legislativa, surge uma primeira dúvida: essa nova regra acerca do termo inicial do prazo da prescrição intercorrente já poderia ser aplicada aos processos iniciados antes da sua vigência?

A esse respeito, o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, garante que a lei “não prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito”, e o artigo 14 do Código de Processo Civil é muito claro ao estipular que “A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

Decisões do TJ-SP e TJ-DF
No entanto, não foram poucas as sentenças proferidas em execuções e cumprimentos de sentença iniciados antes da Lei 14.195/21 que extinguiram as demandas justamente com base na mudança nela trazida, sendo possível utilizar como amostra as sentenças proferidas no cumprimento de sentença n° 0003319-33.2011.8.26.0602 e na execução de título extrajudicial n° 0707840-55.2017.8.07.0001.

Em ambos os casos, no entanto, os Tribunais de Justiça de São Paulo e do Distrito Federal, respectivamente, reformaram as sentenças em razão da irretroatividade da norma processual. No primeiro julgado, a única providência tomada pelo TJ-SP foi a determinação do prosseguimento da execução, enquanto que, no segundo, o TJ-DF estabeleceu uma regra de transição para aquele caso em concreto, estipulando que “a apelante-exequente seja intimada a indicar bens penhoráveis da devedora, cuja tentativa, se infrutífera, consistirá no termo inicial da prescrição intercorrente de seis meses.”

Lacuna sobre a transição
Embora respondido o primeiro questionamento levantado anteriormente, no sentido de que a aplicação da alteração promovida pela Lei 14.195/21 não poderia retroagir aos atos praticados antes da sua vigência, uma e mais desafiante questão hermenêutica surge partindo dessa premissa anterior: existe uma regra de transição a ser adotada para os processos executivos iniciados antes da lei em questão? Infelizmente, o legislador não tratou de trazer essa resposta.

Sobre isso, o desembargador Penna Machado, em seu voto condutor no agravo de instrumento n° 2292686-61.2021.8.26.0000, interposto contra decisão que determinou a suspensão da execução pelo prazo de um ano, reconheceu essa lacuna na Lei 14.195/21 e concluiu que, diante disso, deveria ser aplicada uma regra a cada caso em concreto

É justamente isso o que tem sido feito pelos tribunais, que, ao se depararem com essa ausência de regra transitória sobre uma alteração tão impactante nos processos executivos como a promovida pela Lei 14.195/21, tem adotado soluções diversas para situações semelhantes, o que, naturalmente, gera uma grave insegurança jurídica.

Veja-se que, em um julgamento, o TJ-SP adotou como regra de modulação e transição que o termo inicial do prazo prescricional seria a data de vigência da lei multicitada, e não a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis.

Já o TJ-DF, ao julgar a apelação considerando que, após a vigência da Lei 14.195/21, não houve tentativa de penhora de bens, determinou a intimação do exequente para indicar bens penhoráveis e, caso infrutífera, terá início a contagem do prazo prescricional. Essa interpretação, por evidente, seria mais benéfica ao credor quando comparada à solução adotada pelo TJ-SP no julgado anterior.

Situação dos credores
É gravíssima a insegurança jurídica causada aos credores, que, na difícil busca pela satisfação do seu crédito, tarefa reconhecidamente árdua na realidade do Brasil, se depararam com uma relevantíssima mudança na regra do jogo cuja interpretação e aplicação, a depender do tribunal, pode ser totalmente distinta em razão da ausência de uma regra de transição.

No mundo ideal, para evitar toda a insegurança causada e regular o tema, deveria o legislador promover uma complementação da Lei 14.195/21 a fim de estabelecer regras transitórias acerca da contagem do prazo da prescrição intercorrente para os processos iniciados antes da sua vigência, mas, como de praxe, essa lacuna certamente será preenchida pelo Superior Tribunal de Justiça ao ser provocado para uniformizar a jurisprudência acerca desse tema que tende a ser cada vez mais repetitivo.

Até lá, muitos credores poderão ser prejudicados em razão da insuficiente e lacônica redação da Lei 14.195/21, sendo certo que, além da desafiante incumbência de satisfazer o seu crédito através do processo judicial, eles também terão de enfrentar regras distintas que inevitavelmente vão variar de acordo com o entendimento de cada juiz ou tribunal.

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