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Maioria do STF valida exigência de chamamento público para cursos de Medicina

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27 de maio de 2024, 8h43

É inviável a abertura de cursos de Medicina sem o prévio chamamento público e a observância dos critérios previstos na Lei do Mais Médicos, enquanto viger a política pública. O entendimento é da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

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Vence o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso

A corte analisa no Plenário Virtual, até 4 de junho, o artigo 3 da Lei 12.871/2013. O caso foi paralisado no começo do ano por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, e retomado na sexta-feira (24/5).  

Segundo a norma, a autorização para funcionamento de cursos de Medicina em instituições privadas deve ser precedida de chamamento público. Com isso, as faculdades interessadas em abrir novos cursos de Medicina se inscrevem em uma espécie de concurso e são validadas pelo governo federal segundo uma série de critérios. 

Estão em julgamento duas ações envolvendo a lei. Sancionada em 2013, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), a norma estabelece como política pública a priorização de aberturas de vagas de cursos de Medicina em regiões com menor concentração de médicos por habitante. 

Vence o voto do ministro Gilmar Mendes, que foi acompanhado por Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. 

Mais Médicos

O programa Mais Médicos foi criado com o objetivo de formar médicos para o SUS e suprir a carência de tais profissionais em algumas regiões, diante da concentração em áreas economicamente privilegiadas. A norma prioriza a abertura de cursos de Medicina em regiões socialmente vulneráveis.

Os municípios são selecionados com base na necessidade social e na existência de equipamentos públicos adequados e suficientes para a oferta dos cursos. Em contrapartida pela instalação de um novo curso, a instituição privada deve bancar melhorias na estrutura local do SUS.

A Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) ajuizou ADC em favor do artigo 3º da lei de 2013. A entidade ressaltou que os chamamentos públicos são abertos para viabilizar a oferta de novas vagas após um exame cauteloso das características regionais e do investimento necessário.

A autora apontou a existência de diversas decisões judiciais liminares que afastaram a exigência do chamamento público para instituições de ensino e determinaram ao MEC a análise de pedidos de abertura de cursos de Medicina com base na Lei do Sinaes — voltada ao incremento geral de todos os cursos de graduação do Brasil, independentemente das peculiaridades de cada área do conhecimento.

Grande parte das decisões que autorizaram a oferta de novas vagas foi proferida durante a vigência de uma portaria do MEC de 2018 que suspendeu por cinco anos a publicação de editais de chamamento público para novos cursos de Medicina.

Em seguida, também foi distribuída a Gilmar uma ADI ajuizada pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), que contestou a regra do chamamento público. Segundo a entidade, a exigência restringe a concorrência, pois diminui o número de instituições aptas a obter autorização para novos cursos.

Em 2022, o STF promoveu uma audiência pública sobre o tema com autoridades, especialistas e membros da sociedade em geral. Os críticos da regra do chamamento público alegaram violação à livre iniciativa.

Já em agosto de 2023, Gilmar proferiu a decisão liminar e validou a política do chamamento público. Mesmo assim, ele determinou a manutenção dos novos cursos de Medicina já instalados com base em ordens judiciais que dispensaram o procedimento.

O ministro ainda autorizou o prosseguimento dos processos administrativos pendentes, também instaurados por decisão judicial, que ultrapassaram a fase inicial de análise documental.

Nesses casos, ele decidiu que as instâncias técnicas convocadas a se pronunciar nas etapas seguintes deveriam observar se o município e o novo curso atendem aos critérios previstos pela lei de 2013.

Por outro lado, o magistrado estipulou a suspensão dos processos administrativos que ainda não tinham ultrapassado a etapa documental.

Voto relator

Em seu voto, Gilmar afirmou que o Mais Médicos buscou evitar a criação de cursos de Medicina sem a avaliação da necessidade de médicos em todas as regiões do país ou sem a infraestrutura apropriada para formação completa dos profissionais.

Para ele, a sistemática do chamamento público é adequada para atingir os objetivos do poder público: “Há peculiaridades fáticas e normas jurídicas que justificam a sujeição dos cursos de Medicina à dinâmica de autorização diferenciada”.

Além disso, há um “impacto imediato na descentralização dos serviços de saúde”, pois a própria instalação da faculdade resulta em uma injeção de recursos financeiros e humanos na infraestrutura de saúde local. “A faculdade de Medicina bem estruturada envolve o estabelecimento na cidade de professores, alunos de graduação e residentes”, assinalou Gilmar.

Assim, o ministro considerou irrelevante avaliar se os médicos permanecem no local após a graduação ou a residência, pois a própria existência do curso na região já garante novos serviços e equipamentos públicos.

O magistrado também não constatou evidências da existência de eventuais “alternativas menos gravosas para o enfrentamento do problema”.

Segundo Gilmar, “não há como concluir que o mercado seja capaz de autorregular-se no sentido de alcançar a concretização dos comandos constitucionais sobre o tema”. Ele lembrou que o inciso III do artigo 200 da Constituição estabelece a competência do SUS para “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”.

Alternativas inválidas

Na visão do ministro, a abertura de cursos de Medicina com base na Lei do Sinaes, sem chamamento público, é inviável enquanto o Mais Médicos estiver vigente.

Para ele, “a admissão da dupla via implicaria a falência da política pública”, que perderia toda a capacidade de direcionar os esforços privados para as necessidades do SUS. Ou seja, “qualquer capacidade de indução do comportamento de agentes privados” seria esvaziada.

Quanto à abertura de novas vagas em cursos já existentes, o ministro considerou que o Mais Médicos “não pode conviver com o aumento de vagas fora da sistemática” trazida na lei de 2013. “É imperioso que toda e qualquer criação de novas vagas de cursos de Medicina, ainda que em localidades com cursos instalados, observem a sistemática do chamamento público.”

Segundo ele, se há uma limitação legítima à entrada de novos competidores no mercado de cursos de Medicina, a autorização para que as faculdades já inseridas no programa aumentem suas vagas cria um “sistema distorcido e injusto”.

Decisões judiciais

Embora tenha invalidado a abertura de cursos ou novas vagas sem o chamamento público, Gilmar ressaltou que as faculdades beneficiadas pelas decisões judiciais apontadas pela Anup cumpriram os requisitos do decreto que regulamenta a Lei do Sinaes: foram validadas por uma comissão de especialistas, pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) do MEC.

Dessa forma, “ainda que não seja o trâmite da política pública considerada constitucional nestes autos”, o magistrado reconheceu que tais cursos não oferecem riscos à população e ao seu mercado consumidor. “Pelo contrário, é do interesse da sociedade que esse longo processo de instalação das faculdades, com admissão de alunos e corpo docente, não seja revertido.”

O ministro aplicou raciocínio semelhante aos cursos que ainda estão em fase de análise no MEC, por ordem judicial. Ele lembrou que parte dos pedidos de credenciamento já superou a fase inicial de análise documental, e, portanto, já conseguiu decisão favorável do poder público, no sentido de que “constituem projetos minimamente viáveis”.

Processos administrativos

Fachin e Rosa concordaram com boa parte da fundamentação de Gilmar, mas votaram a favor de suspender ou extinguir todos os processos administrativos pendentes — e não só aqueles que ainda não ultrapassaram a etapa documental.

Ou seja, a suspensão também valeria para os processos administrativos instaurados por ordem judicial e que já ultrapassaram a fase de análise documental, e para aqueles de instituições de ensino superior já credenciadas que pedem autorização para abrir cursos de Medicina.

“Nesses casos, não houve ainda real, concreta e efetiva mobilização de corpo docente e discente e eventuais investimentos que tenham sido realizados têm seu fundamento em decisões judiciais de caráter precário”, disse Fachin em seu voto. “Ou seja, em tais casos, essas instituições assumiram o risco de ter a autorização para tramitação de seus processos ulteriormente revertida.”

Na visão de Fachin, a possibilidade de tramitação dos processos administrativos já instaurados “esvazia o escopo que se pretende alcançar com a política de chamamentos públicos”.

Ele destacou que existem 391 cursos de Medicina no país. Por outro lado, há 223 pedidos de autorização de novos cursos. Ou seja, caso mantidos os processos administrativos, “há potencial abertura de cerca de 50% mais cursos de Medicina além daqueles já em funcionamento no país”.

Como esses processos administrativos foram instaurados com base em decisões que afastaram a necessidade de prévio chamamento público, sua manutenção poderia retirar o interesse das instituições em se submeter aos chamamentos, que têm “condições muito mais rigorosas, ainda que benéficas e necessárias”.

Grupo de trabalho

André Mendonça concordou que a sistemática do chamamento público, por si só, não viola a livre iniciativa, a isonomia, a autonomia universitária ou qualquer outra regra constitucional.

Ele, no entanto, disse ver vícios no processo de elaboração da política pública em questão. Segundo o magistrado, não houve avaliação dos impactos que a regulação poderia causar, nem participação popular adequada. O resultado foi um sistema que “peca em não solucionar adequada e eficazmente os problemas que busca equacionar”.

Para resolver a questão, o ministro considerou ser necessário garantir “o espaço de deliberação constitucionalmente confiado aos poderes eleitos e aos órgãos administrativos”. Na sua visão, eles têm “maior legitimidade e expertise institucional para definir sobre as políticas públicas de educação e saúde”.

Assim, Mendonça votou por determinar que o MEC crie um grupo de trabalho, com participação dos setores da sociedade civil interessados, para analisar o impacto da política pública e reavaliar o programa.

“Essa medida permitirá que o órgão da administração pública responsável por regular a matéria tenha um ‘segundo olhar’ sobre as deliberações e atos normativo-administrativos atualmente vigentes, com vistas a embasar nova decisão acerca de sua continuidade ou da necessidade de promoção de ajustes.”

O magistrado também votou por suspender os pedidos e procedimentos administrativos e judiciais voltados à abertura de novos cursos ou à ampliação de vagas nos cursos já existentes até que o grupo de trabalho conclua a reanálise da política pública.

Ele ainda concordou em manter o funcionamento dos novos cursos de Medicina já instalados com base em ordens judiciais que dispensaram o chamamento público.

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ADC 81
ADI 7.187

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