Opinião

Transitividade das políticas de ações afirmativas

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26 de maio de 2024, 13h19

A diferenciação negativa de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades a que as minorias estão submetidas no Brasil, em particular a população negra, é um fato socialmente insofismável. Vozes eloqüentes1, estudos acadêmicos qualitativos e quantitativos recentes, realizados por instituições de pesquisa respeitadíssimas como o IBGE e o Ipea, não deixam dúvidas sobre a gravidade gritante da exclusão do negro, isto é, dos pretos e mestiços na sociedade brasileira (Munanga, p..32 – 33, 2001).

Jornal da USP

Com propósito de exemplificar o abismo da desigualdade racial entre pretos e brancos no interior das instituições públicas brasileiras, evocamos dados do levantamento do perfil étnico-racial2 do Ministério Público brasileiro divulgado em julho de 2023, os quais evidenciam que embora a população brasileira seja composta por 56,1% de pessoas pretas e pardas, apenas 6,5% e 13,2% do total de membros que ingressaram nos últimos cinco anos no Ministério Público brasileiro são mulheres negras e homens negros, respectivamente.

A pesquisa realizada em 2023, pelo Movimento Pessoas à Frente (entidade dedicada à formação de pessoas que atuam no setor público), aponta que dos 27 entes subnacionais apenas sete estados e o Distrito Federal asseguram reserva de vagas para pessoas negras nas seleções de pessoal. Matematicamente, isso quer dizer que menos de 1/3 dos estados da federação asseguram cotas raciais para população negra em concursos públicos.

A fotografia social do Brasil revela que a desigualdade racial em decorrência do racismo está presente nas cinco grandes regiões do Brasil, bem assim em todos os estados da federação. Em razão desse “estado de coisa inconstitucional”, os movimentos sociais, há mais de duas décadas, têm pressionado os Poderes da União para que sejam adotadas providências e ações voltadas para proteção da população negra. Em recepção a essas demandas, a União aprovou três legislações com vista de assegurar à promoção da igualdade de oportunidades dessa coletividade, dentre essas o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010) e as leis de cotas raciais nas universidades federais (Lei 14.723/2023) e no serviço público federal (Lei nº 12.990/2014).

Na consecução dos objetivos que ensejaram a aprovação das legislações acima mencionadas, o Estado brasileiro, em janeiro de 2022, promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância e o Tratado de Direitos Humanos internalizado no Brasil com status constitucional de emenda constitucional, tornando-se hierarquicamente igual à Constituição.

Essa Convenção Internacional de Direitos Humanos, além de parâmetro para edição de leis e de formulação de novos programas a serem adotados pelo Estado, constitui-se em suporte axiológico-normativo das políticas de ações afirmativas já aprovadas pela União antes da aprovação deste tratado.

Nesse ambiente, defendemos (com base nas teorias dos direitos fundamentais e da norma jurídica) que as leis de cotas raciais-sociais, espécies de ações afirmativas voltadas para inclusão de pessoas negras na universidade públicas e no serviço público, têm natureza jurídica de legislações nacionais, porque reasseguram direitos e garantias fundamentais lesados ou ameaçados de lesão em decorrência do racismo ou de discriminação racial indireta na sociedade brasileira.

Spacca

No entendimento de Sérgio Resende Barros3 (1994, p. 76), “(…) ao lado dessas leis interna corporis da União, há leis federais de outra espécie: as leis transitivas3, as quais comportam duas subespécies, as leis federativas e as leis nacionais. Com leis transitivas, a União não dispõe interna e estritamente sobre seu governo e administração, mas legisla ampla e abrangentemente sobre relações jurídicas pertinentes à Federação (leis federativas) ou à Nação (leis nacionais).”

Leis da União para a nação

Ainda na direção do silogismo acima exposto, Barros leciona que as leis federais nacionais transitam da União para a nação. São editadas pela União em nome do Estado. Têm por fim imediato, alcançando relações sociais entre indivíduos, nacionais ou paranacionais, disciplinar a convivência deles no seio da nação. Dentre as espécies de leis federais nacional, Barros cita como exemplo a Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses, dita Estatuto da Igualdade.

Não podemos olvidar que a República, formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, deve proteger e assegurar aos indivíduos ou grupos sociais o exercício dos direitos fundamentais expressos na Constituição e outros previstos em tratados internacionais em que o Brasil seja parte.

A autonomia das unidades federativas, realizada por meio da repartição constitucional de competências legislativas e de governo, destina-se exclusivamente à organização político-administrativa desses entes. No que tange aos objetivos fundamentais e princípios expressos na Constituição, todos os entes subnacionais devem cooperar para que o acesso de fruição de bens, serviços e oportunidades disponibilizado, assegurado a todos os brasileiros. Conforme o artigo 25 da Lei Maior, “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”.

Isto posto, a execução e efetividade das medidas e programas direcionados para reafirmar a dignidade da pessoa humana, a promoção da igualdade de indivíduos ou grupos sociais vítimas de discriminação racial indireta ou outras formas correlatas de intolerância não podem estar sujeitas ao arbítrio da casas legislativas dos entes subnacionais.

No plano da fundamentação que antecede os dispositivos da Convenção Interamericana contra o Racismo (…) os Estados-parte reconhecem: “o dever de se adotarem medidas nacionais e regionais para promover e incentivar o respeito e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos os indivíduos e grupos sujeitos a sua jurisdição, sem distinção de raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica (…).”

A garantia de igualdade de oportunidade no interior da sociedade brasileira é um dever (lato sensu), distribuído entre Estado e sociedade. Nos termos exatos do artigo 2º do Estatuto da Igualdade Racial, “é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais”.

É tempestivo memorar que dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades.

Ora, se o racismo e a discriminação racial indireta estão entranhados em todo tecido social brasileiro; se estudos e pesquisas científicas revelam diferenciação negativa da população negra no acesso a bens, serviços e oportunidades nas quatro regiões do país; se o Estado brasileiro comprometeu-se internacionalmente em erradicar o racismo e adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial, dessa forma, é ilógico concluir que as políticas de ações afirmativas aprovadas pela União não possuem efetividade em âmbito nacional.

As medidas de ações afirmativas visam a reassegurar direitos e garantias fundamentais constitucionalmente protegidos. Nesse itinerário, parcela da população negra residente em estados da Federação onde inexiste lei estabelecendo reserva de cotas raciais tem, com base no princípio da inafastabilidade da jurisdição, nas legislações integradas ao Sistema Nacional de Igualdade Racial, na Convenção Interamericana contra o Racismo, direito de requer ao estado-juiz que lhe seja assegurada benefícios regulamentados em lei federal em favor da população negra, a exemplo, da reserva de cotas raciais no serviço público, porque se trata de ações afirmativas que o Brasil comprometeu em adotar nacionalmente.

Condições desiguais para vítimas de desigualdade

Conforme o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

As ações favoráveis voltadas para criar condições desiguais para as vítimas da desigualdades são juridicamente compreensíveis. Nesse contexto, aduzimos fração do voto do ministro Cezar Peluso lavrado no teor do acórdão4 da ADPF 186 (que visava à declaração de inconstitucionalidade de atos da UnB (Universidade de Brasília) que instituíram o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial):

Ora, basta uma visão sistemática da Constituição Federal para perceber, logo, que, em nome da igualdade, ela tutela classes ou grupos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Não preciso nem citar os casos das mulheres, dos menores, dos hipossuficientes. Há, portanto, na Constituição mesma, tratamentos excepcionais, concordes com o princípio da igualdade em relação a tais pessoas, e há-os, por conseguinte, também na legislação infraconstitucional, da qual poderia citar como exemplo a Lei Maria da Penha, só para mostrar como é legitimado, do ponto de vista constitucional, esse olhar de proteção de pessoas ou conjunto de pessoas em situação de vulnerabilidade (p. 2-3).

Conforme Dworkin, não há nada de paradoxal na ideia de que o direito de um indivíduo à igual proteção pode às vezes entrar em conflito com uma política social desejável sob outros aspectos, inclusive aquela que tem por objetivo tornar a sociedade mais igual em termos gerais (p. 349, 2002).

O Estado brasileiro tem dever de erradicar o racismo, a discriminação indireta, bem assim promover a igualdade de oportunidade para população vulnerável nas esferas públicas e privadas. Nessa conjuntura, reportamo-nos aos dispositivos 5, 6 e 7 da Convenção Interamericana contra o Racismo, respectivamente:

(…) comprometem-se a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos. Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos e não se estenderão além de um período razoável ou após terem alcançado seu objetivo.

Os Estados Partes comprometem-se a formular e implementar políticas cujo propósito seja proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o alcance desta Convenção; entre elas políticas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais, ou qualquer outro tipo de política promocional, e a divulgação da legislação sobre o assunto por todos os meios possíveis, inclusive pelos meios de comunicação de massa e pela internet. (grifo nosso)

Os Estados Partes comprometem-se a adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado, especialmente nas áreas de emprego, participação em organizações profissionais, educação, capacitação, moradia, saúde, proteção social, exercício de atividade econômica e acesso a serviços públicos, entre outras, bem como revogar ou reformar toda legislação que constitua ou produza racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância.

Nesse passo, as legislações integradas ao Sistema Nacional de Igualdade Racial devem produzir efeitos em todo território nacional, isto é, nos estados, nos municípios e Distrito Federal, pois dizem respeito à direitos e garantia constitucionalmente protegidos pela Constituição, que transpassam o interesse apenas do ente federal.

O direito, na lição de Reale, é a concretização da ideia de justiça na pluridiversidade7 de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores. Nesse sentido, a Lei de cotas raciais deve ser compreendida como ordenação bilateral-atributiva de fatos segundo valores.

Ante o exposto, inferimos que as políticas de ações afirmativas, a exemplo das cotas raciais e sociais, são normas editadas pela União em nome do Estado Nacional, tendo em vista a dignidade da pessoa humana de indivíduos ou grupos vítimas do racismo e discriminação indireta, a promoção da igualdade de oportunidades e correção da dissemelhança do perfil étnico-racial dentro das instituições públicas e privadas.

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Referências

[1] MUNANGA, Kabengele. O anti-racismo no Brasil. In: MUNANGA, Kabengele (org.) Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. SP: Edusp, 1996, p. 79-94

[2] Website. https://cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/16604-divulgado-o-resultado-da-pesquisa-do-cnmp-que-trata-do-perfil-etnico-racial-do-ministerio-publico-brasileiro#:~:text=Entre%20os%20membros%20negros%20e,em%2014%20unidades%20e%20ramos.

[3] BARROS, Sérgio Resende Barros. Lei nº 8.666: Lei Federativa. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 197: 74-80, 1994.

[4] Website. https://www.conjur.com.br/dl/ac/acordao-adpf-186-cotas-raciais.pdf

[5] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[6] REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 25 ed – São Paulo: Saraiva, 2004.

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