Opinião

Vagas por cotas raciais: por que a USP não errou

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2 de abril de 2024, 21h30

O indeferimento do ingresso de dois estudantes no processo de seleção da USP (Universidade de São Paulo), por não preenchimento dos critérios de cota racial, tem sido objeto de posturas pouco racionais contra o sistema.

Muito da crítica recupera antiga posição contrária às cotas, as quais incorreriam no erro de adotar um critério racial numa sociedade miscigenada como a brasileira. O mecanismo teria “racializado” o Brasil, numa cópia malfeita das ações afirmativas dos Estados Unidos. Melhor seria, na opinião dos críticos, restringir-se ao critério da escola pública, considerando a simplicidade das cotas sociais.

Mas há um equívoco nessa visão; satisfazer-se com as cotas sociais seria seguir negando a discriminação racial presente em todas as dimensões da vida brasileira. Sermos um país de pardos não faz desaparecer o preconceito de cor, evidência que só foi bloqueada porque vigorou entre nós, por décadas, o mito da democracia racial.

A Lei de Cotas não adotou o critério do genótipo. Ela nunca pretendeu eleger beneficiários com base em características genéticas que garantiriam objetivamente tratar-se de indivíduos da “raça” negra, até porque inexiste raça no sentido de subgrupo da humanidade.

Fenótipo

Seu critério é outro, é o fenótipo, isto é, o aspecto exterior, o conjunto de traços que faz com que os indivíduos sejam reconhecidos por outros como integrantes de grupos étnicos distintos.

É com base no fenótipo que se dão as lamentáveis práticas racistas em estádios de futebol. Sendo assim, a quebra da discriminação deve percorrer o mesmo caminho, também a partir do fenótipo, mas agora no sentido contrário.

Jornal da USP

Quando o Brasil adotou a Lei de Cotas e o Supremo Tribunal Federal reconheceu a sua constitucionalidade, a dificuldade de focar o benefício com precisão não era desconhecida.

O principal propósito da lei era reverter o embranquecimento incentivado em séculos de políticas oficiais. Esse objetivo vem sendo alcançado. Revolver a consciência amortecida da sociedade sobre essa questão é um dos méritos e não defeito da lei.

Na USP, as comissões de heteroidentificação foram criadas em 2022, por demanda do movimento negro, para impedir que a concessão indevida de um benefício gerasse revolta nas salas de aula, conturbando o ambiente de estudo, como ocorria até então.

Excesso de zelo

Eventual excesso de zelo na atribuição do benefício — pouco usual em nosso país tão acostumado a favores seletivos — não é prova da “falência do tribunal racial”, mas, ao contrário, de que a regra deu certo.

Segundo informam as Pró-Reitorias de Inclusão e Pertencimento e de Graduação da USP, a foto apresentada na inscrição é avaliada por duas bancas independentes e, quando necessário, realiza-se a oitiva presencial ou virtual do candidato.

Dessa decisão cabe recurso a uma comissão. Só depois disso o Conselho de Inclusão e Pertencimento emite a decisão final. Caso o recurso seja indeferido, o próximo da fila, um negro, é quem terá direito à vaga.

Em 2024, dos 1.606 casos analisados, 1.387 foram aprovados (86%); 187 foram considerados não aderentes à política afirmativa (12%) e 32 nem mesmo compareceram às oitivas (2%).

O processo, portanto, é bastante cuidadoso e deve ser tratado com seriedade e racionalidade indispensáveis ao avanço da agenda antirracista.

*artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

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