Opinião

Ações para reverter a sub-representação feminina no Judiciário

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3 de abril de 2024, 10h20

Ao final de 2023, tivemos muitas discussões a respeito da Resolução 525 do Conselho Nacional de Justiça, que trouxe ações afirmativas de gênero para acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau.

A referida resolução dispõe, em seu artigo 1º, que os tribunais que não alcançarem a proporção de 40% a 60% por gênero, para magistradas (os) de carreira para promoção por merecimento, devem fazer editais exclusivos para mulheres e outros mistos (para homens e mulheres) de forma alternada [1], até que se atinja a paridade de gênero.

Essa resolução foi um grande avanço para reverter a sub-representação feminina e tem fundamento em disposições constitucionais e convenções internacionais de direitos humanos.

As mulheres são 51,1% da população no Brasil. A participação feminina no Poder Judiciário é reduzida conforme a progressão da carreira: temos 40% de juízas em primeiro grau, 21,2% de desembargadoras nos tribunais e 19,5% de ministras em tribunais superiores [2].

Sub-representação histórica

No prefácio dos Anais do evento Mulheres na Justiça: os Novos Rumos da Resolução CNJ 255 [3], a ministra Rosa Weber, com o brilhantismo que lhe é peculiar, afirmou:

“Sem dúvida, a inexpressiva presença de mulheres, que constituem a maioria da população, em tais espaços simboliza desnível democrático ainda sob forte opressão de uma cultura que faz invisível, subjuga e hierarquiza os seres humanos pelo gênero, sem prejuízo de outras análises interseccionadas quanto ao contexto raça, etnia, religião, origem migratória, entre outras ordens classificatórias que estruturam barreiras às análises das contribuições almejadas. Como digo sempre, o déficit de representatividade feminina nos espaços de Poder representa um déficit para a própria democracia.”

Sem representatividade, não há democracia. Em recente entrevista, a ministra Cármen Lucia apontou que a desvalorização profissional das mulheres é contrária ao artigo 5º, I da Constituição Federal:

“Continuamos em desvalor profissional, social, econômicoe exatamente sob a égide de uma Constituição que, 35 anos depois de seu primeiro momento de vigência, estampou expressamente que ‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações’ (…). Dizem que nós fomos silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas” [4].

A história dos 150 anos de existência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) comprova a sub-representação feminina. O tribunal foi instalado em 1874, mas apenas em 1980 tivemos as primeiras mulheres aprovadas no concurso da magistratura de São Paulo: Iracema Mendes Garcia, Zelia Maria Antunes Alves, e Berenice Marcondes Cesar. As duas últimas também foram as primeiras magistradas de carreira promovidas aos Tribunais de Alçada e depois ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [5].

A primeira desembargadora do TJ-SP, Luzia Galvão da Silva, foi nomeada em 1997 pelo quinto constitucional. A segunda, Isabela de Magalhães Gomes, foi nomeada  em 2003.

Reportagem da Folha de S.Paulo de 2005 afirma que: “De acordo com o presidente do TJ, desembargador Luiz Elias Tâmbara, antes de 1980, as mulheres não passavam em concursos por causa de “um conservadorismo que existia no Estado de São Paulo, não porque fosse proibido. Os candidatos eram identificados nas provas escritas, e as mulheres eram reprovadas[6].

Resolução 525/2023 do CNJ

Hoje, o TJ-SP tem 354 desembargadores, sendo 314 homens e 40 mulheres [7].

Nesse cenário, torna-se absolutamente necessária a Resolução 525/2023 do CNJ, que tem como  fundamento jurídico disposições constitucionais e de tratados internacionais, quais sejam:

(1) a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres (art. 5º, I da Constituição Federal);

(2) promover o bem sem discriminação (art. 3º, IV da Constituição Federal),

(3) a dignidade humana (art. 1º, III da Constituição Federal);

(4) a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II da Constituição Federal);

(5) a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (Cedaw), promulgada pelo Decreto 4.377/2002 e;

(6) a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção Belém do Pará), promulgada pelo Decreto 1.973/96.

Tamanha é a relevância dos tratados e convenções internacionais que tratam sobre direitos humanos, que estes são equivalentes às emendas constitucionais, nos termos do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal.

Ana Araujo/CNJ

A Convenção de Belém do Pará, em seu artigo 6º, prevê: “O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação; e b)  o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação”.

A Convenção Cedaw, em seu artigo 3º, determina que: “Os Estados Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.

E seu artigo 4º, a CEDAW prevê a adoção de medidas especiais temporárias para acelerar a igualdade entre homens e mulheres.

Reação ao Edital 2/24 do TJ-SP

E, recentemente, para implementar a Resolução 525/2023, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo publicou o Edital 2/24, para concurso de promoção exclusivo às juízas.

Não obstante os dados que demonstram a sub-representatividade feminina, as disposições constitucionais e os tratados internacionais, como foi noticiado pela mídia [8], 20 juízes paulistas se sentiram preteridos e impetraram mandado de segurança para questionar o Edital 2/24 e a Resolução 525/2023 e, pasmem, incluíram no polo passivo 54 juízas que se candidataram à promoção (processo 2079924-89.2024.8.26.0000).

Causa espanto que em 2024, logo após o Dia Internacional da Mulher, qualquer homem esclarecido, conhecedor dos preceitos constitucionais e dos direitos humanos, não se envergonhe de impetrar um mandado de segurança que tem como finalidade apenas manter seus próprios privilégios.

Os 20 impetrantes são representados pelo advogado Marçal Alves de Melo, que fundamentou o “direito líquido e certo” em parecer lavrado por Ives Gandra da Silva Martins, que concluiu, em resumo: (1) que a Resolução 525/2023 extrapolaria os limites de competência do CNJ e (2) que o critério de gênero não seria um conceito objetivo, para aferição do merecimento.

As alegações dos impetrantes não têm o menor fundamento jurídico, por três razões.

Primeiro, porque o Conselho Nacional de Justiça é órgão do Poder Judiciário, que tem competência para controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (artigo 103-B, §4º da Constituição Federal). Em sua função deve zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo Estatuto da Magistratura, expedindo atos regulamentares e recomendando providências. 

O Regimento Interno do CNJ confirma que o Plenário pode editar atos normativos, Resoluções e outros (artigo 102) e as Resoluções têm força vinculante após sua publicação (artigo 102, §5).

Segundo, porque ao tratar das promoções de juízes aos tribunais, o artigo 93, III e II, ‘c’ da Constituição Federal prevê o acesso por antiguidade e merecimento, alternadamente. E delega à lei complementar indicar os critérios.

A Lei Complementar 35/79, lei orgânica da magistratura (Loman), em seu artigo 87 não foi além das disposições constitucionais acima. Não foram estabelecidos na Loman os critérios objetivos para aferir o merecimento, com exceção da permissão de que os tribunais estabeleçam como critério de promoção a aprovação em curso ministrado por escola oficial de aperfeiçoamento (artigo 87, §1º). Coube, assim, ao CNJ determiná-los.

Por isso, no exercício de sua competência normativa, o CNJ editou a Resolução 106/2010 trouxe sobre critérios objetivos para aferição do merecimento, para promoção de juízes aos Tribunais. Os editais para viabilizar a paridade de gênero na promoção pelo critério de merecimento foram incluídos no art. 1º-A da Resolução 106/2010, pela precitada Resolução 525/2023.

Terceiro, porque a competência do CNJ já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3367, que reconheceu-o como órgão do Poder Judiciário nacional, legitimado a exercer o controle de legalidade, eficiência, publicidade, impessoalidade e moralidade dos atos administrativos dos tribunais. E concluiu que zelar pela observância dos critérios objetivos na prática das promoções por merecimento é, portanto, tarefa imposta constitucionalmente ao Conselho Nacional de Justiça (art.igo 103-B, § 4º, II).

Vale transcrever trecho do voto do I. ministro relator Cezar Peluso:

“A esse paradigma pode também reconduzir-se a instituição do Conselho que sob a rubrica das atribuições inerentes ao poder de controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário (art. 103-B, §4), assume o dever jurídico de diagnosticar problemas, planejar políticas e formular projetos, com vistas ao aprimoramento da organização judiciaria e da prestação jurisdicional, em todos os níveis, como exigência da própria feição difusa da estrutura do Poder nas teias do pacto federativo. Como já acentuamos, somente um órgão de dimensão nacional e de competências centralizadas pode, sob tais aspectos, responder aos desafios da modernidade e às deficiências oriundas de visões praticas fragmentárias na administração do Poder (STF, ADI 3.367, Tribunal Pleno, min. Cezar Peluso, j. 13/4/2005, DJ 22./9/2006).

Alcançar a paridade de gênero é um dos desafios da modernidade e para reparar uma deficiência herdada do passado. As ações afirmativas previstas no artigo 1º-A da Resolução 106/2010, com a redação da Resolução 525/2023, estão em conformidade com competência constitucional do CNJ para diagnosticar problemas, planejar políticas e formular projetos, com vistas ao aprimoramento da organização judiciaria e da prestação jurisdicional, como reconheceu o C. STF.

Preconceitos no parecer

Aliás, as deficiências herdadas do passado estão muito bem representadas no parecer do Ives Gandra Martins, para quem “a mulher seria subordinada, frágil e reconhecida por sua beleza” (vide p. 24). Essa visão preconceituosa e estereotipada das mulheres é justamente a que deve ser combatida, por força do artigo 5º, da CEDAW, a saber:

“Artigo 5º. Os Estados-Partes tornarão todas as medidas apropriadas para:

a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres.”

Adiante, o parecerista, um homem branco, nonagenário, católico e conservador se apropria da fala das juízas e afirma que a “lista exclusiva para mulheres”  acabaria criando um certo desconforto para as próprias mulheres, pois serão classificadas pelo simples fato de serem “mulheres” e, não em função de sua “competência” ou “antiguidade”, critérios objetivos para a promoção junto ao Tribunal que representa.”

A afirmação não poderia ser mais fora de contexto, seja pela origem (um homem branco, nonagenário, católico,  conservador); seja pela ignorância da  história e dos números da sub-representatividade feminina; seja pela obvia tentativa de usurpar e dominar das juízas destinatárias da norma; seja pelo violação ao artigo 4º da Cedaw e à própria Constituição Federal.

Enfim, a impetração do mandado de segurança (processo 2079924-89.2024.8.26.0000) e o lamentável parecer mostram o quanto são necessárias leis de proteção às mulheres, as ações afirmativas que garantem a representatividade feminina e as políticas públicas antidiscriminatórias para que as mulheres extrapolem os padrões estereotipados.

 

 


[1] Art. 1º. O art. 1º da Resolução CNJ n. 106/2010 passa a vigorar acrescido do art. 1º-A: “Art. 1º-A No acesso aos tribunais de 2º grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal.

[2] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/12/guia-pratico-para-aplicacao-das-regras-da-resolucao-cnj-23-12-12.pdf

[3] Política de Participação Feminina – Portal CNJ

[4] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2024/03/07/carmen-lucia-fala-em-pacificacao-e-exalta-mulheres-fomos-silenciadas.htm

[5] https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=97532#:~:text=Entre%20os%20magistrados%2C%20a%20participa%C3%A7%C3%A3o,Maria%20Antunes%20Alves%2C%20em%201981.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1303200521.htm

[7] Respeitem a aflição de José, um quase-desembargador paulista – 20/09/2023 – Conrado Hübner Mendes – Folha (uol.com.br)

[8] TJ-SP nega liminar em ação de juízes para anular edital exclusivo para mulheres (conjur.com.br).

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