Opinião

Tratamento tributário das perdas não técnicas na distribuição de energia

Autor

  • Priscila Anselmini

    é advogada do Contencioso Administrativo no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados doutora em Direito pela Unisinos mestre em Direito Público pela Unisinos professora universitária e especialista em Direito Público pela Esmafe-RS.

    View all posts

25 de maio de 2024, 9h23

O sistema tributário brasileiro é notoriamente complexo. O mesmo pode ser dito, especificamente, em relação à tributação do setor de energia elétrica. O tema da dedutibilidade das chamadas “perdas não técnicas” da base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) enseja controvérsias de longa data.

Reprodução

No Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o entendimento a respeito do tema oscilou ao longo dos anos: ora essas perdas foram consideradas dedutíveis da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, por serem consideradas custo de aquisição na distribuição da energia elétrica, ora não. Nos últimos anos, preponderava no Carf o entendimento defendido pela Receita Federal, isto é, de que as perdas “não técnicas” não constituiriam despesas dedutíveis.

Recentemente, contudo, o Carf seguiu inteligência diversa, autorizando a dedução dessas perdas do lucro tributável, base do IRPJ e da CSLL. Ainda, de forma inédita, estabeleceu que tal autorização independeria da formalização de inquérito.

A posição finalmente adotada parece ser adequada ante as peculiaridades do setor e as dificuldades de mensuração das perdas não técnicas, reconhecendo-as como despesas correntes, inerentes à distribuição de energia elétrica. A construção desse raciocínio, inaugurado pelo Carf, é o tema deste artigo.

Definição de perdas não técnicas

Inicialmente, para compreensão da presente discussão, é primordial identificar os conceitos centrais. É imprescindível distinguir “perdas técnicas” de “perdas não técnicas”.

A regulamentação do setor da energia elétrica no Brasil é realizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a qual diferencia, no Submódulo 2.6 [1], as perdas na distribuição de energia em duas espécies:

  • perdas técnicas: definidas como as perdas relacionadas aos fatores inerentes ao processo de transporte, transformação de tensão e de medição de energia na rede da concessionária; e
  • perdas não técnicas: as demais perdas associadas à distribuição de energia elétrica, tais como furtos de energia, erros de medição, erros no processo de faturamento etc.

As perdas não técnicas são consideradas “perdas comerciais” e, de modo geral, são calculadas pela diferença entre as perdas totais e as técnicas por meio da seguinte fórmula: “Perdas totais – perdas técnicas = perdas não técnicas”.

Entretanto, apesar de aparentemente simples, na prática não o é. A fórmula ajuda a entender o raciocínio, mas a prática descortina desafios próprios aos casos concretos.

Em razão dessa complexidade de identificação das espécies de perdas na distribuição de energia elétrica, a tarifa repassada ao consumidor engloba o valor da operação como um todo, incluindo as perdas totais (perdas técnicas e não técnicas). Desse modo, a tarifa que acaba sendo tributada pelas distribuidoras como receita oriunda de suas atividades inclui, portanto, o custo relativo às perdas técnicas e não técnicas (ou seja, as perdas totais). Inclusive, essa é a orientação da própria Aneel [2].

Spacca

Por essa razão, os furtos não ocasionam prejuízo direto à distribuidora, pois o seu patrimônio não sofre decréscimo, na medida em que esses custos são repassados aos consumidores no preço da tarifa. Todavia, ao não ser permitida a dedução da base do IRPJ e da CSLL, há tributação indevida, visto que à empresa não é autorizada a dedução dessas despesas operacionais, devendo, contudo, reconhecê-las como receita para fins de apuração do resultado do período sujeito à tributação.

Tendo em vista que as perdas não técnicas também são perdas normais e usuais ao desenvolvimento da atividade de distribuição de energia elétrica, a distribuidora de energia incorre em custo para adquirir o total da energia elétrica, a qual, em parte, é perdida antes de alcançar aos consumidores.

Nesse diapasão, as perdas não técnicas e sua dedutibilidade devem ser consideradas como despesas operacionais, conforme previsto no caput do artigo 47 [3] da Lei nº 4.506/64, afastando-se, contudo, a exigência contida em seu §3º, dada a complexidade que envolve a fiscalização e a formalização de inquérito no que se refere aos furtos. Em última hipótese, por comporem o custo da tarifa, enquadram-se no conceito de custo de aquisição, conforme artigo 46 [4] do mesmo diploma legal.

O enquadramento normativo dessa despesa foi analisado pelo recente julgado do Carf. Conforme detalhado a seguir, por qualquer ângulo que se analise, foi reconhecida a dedutibilidade dessa despesa[5]. Esse era, justamente, o entendimento do Carf e da Receita, até março de 2017.

Divisor de águas

A Receita Federal publicou, em 27 de marco de 2017, a Solução de Consulta Interna nº 3, a qual estabelece que as perdas não técnicas somente poderiam ser consideradas como despesa dedutível, para fins de apuração do lucro tributável, se decorrentes de desfalque, de apropriação indébita ou de furto, ocasionados por empregados ou terceiros, quando houvesse inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista, ou quando ajuizada queixa ou dirigida representação criminal à autoridade policial.

Assim, a partir de março de 2017, as perdas não técnicas dependiam de outros requisitos para poderem ser deduzidas do lucro tributável, tornando os processos administrativos complexos e morosos diante da necessidade de comprovar, por inquérito ou queixa, os furtos ou fraudes na distribuição de energia elétrica, nos termos do já citado artigo 47, § 3º, da Lei nº 4.506/64.

Todavia, ao seguir essa linha de raciocínio, o Fisco olvidou-se de que as perdas não técnicas derivam de outras causas além dos ilícitos. Elas incluem erros na medição ou no processo de faturamento, por exemplo.

Por definição, as perdas não técnicas são inerentes à atividade desenvolvida, compreendendo o conceito de despesa operacional. Porém, diante da exigência contida no §3º citado anteriormente, a dedutibilidade das perdas não técnicas, originadas em ilícitos, dependia de comunicação formal às autoridades policiais.

Apesar de incoerente, desde a edição dessa solução de consulta, as decisões administrativas e judiciais vinham adotando esse entendimento [6]. Todavia, recentemente, o Carf posicionou-se de forma contrária à RFB, retomando a linha de raciocínio antes adotada anteriormente a 2017.

Do posicionamento (adequado) do Carf

A decisão proferida pela 4ª Turma Extraordinária da 1ª Seção, do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, acolheu a argumentação da Light Serviços de Eletricidade S.A (distribuidora do Rio de Janeiro). O Conselho voltou a autorizar a dedução das perdas não técnicas do lucro tributável pelo IRPJ e pela CSLL.

A referida decisão reforça a necessidade de os julgadores analisarem as peculiaridades da tributação do setor de elétrico, especialmente porque as perdas não técnicas representam valores significativos para as distribuidoras de energia elétrica. Nos termos prolatados pela 4ª Turma Extraordinária, as perdas não técnicas são inerentes à atividade do setor, consideradas como custos intrínsecos à distribuição da energia elétrica, uma vez que elas compõem a tarifa, conforme regulamentação da própria Aneel, devendo ser autorizado e aplicado o tratamento regulatório da matéria como despesa operacional.

Inclusive, conforme divulgado pela Aneel, em 2022, foi contabilizado uma despesa de R$ 8,69 bilhões [7] referente a essas perdas. Portanto, não haveria como ignorar os reflexos desse potencial montante a ser deduzido na tributação do IRPJ e da CSLL.

Observa-se que as perdas não técnicas, além de corresponderem a um valor significativo às concessionárias de energia elétrica, elas também são parte do seu cotidiano, inerentes à consecução da atividade de distribuição de energia elétrica. Por isso, tais perdas precisam de um adequado tratamento tributário, podendo ser deduzidas do lucro tributável, para fins de apuração do IRPJ e da CSLL, justamente por integrar o conceito de despesa operacional.

O recente posicionamento do Carf parece, então, sinalizar uma importante e devida mudança de paradigma, voltando a análise da incidência normativa-tributária à realidade e às complexidades vivenciadas pelo setor. Enfim, seja perda técnica ou não técnica, ambas estão relacionadas à atividade de distribuição de energia elétrica, devendo ser deduzidas na apuração do lucro real.

 


[1] ANEEL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Procedimentos de Regulação Tarifária – Proret. Publicado em 10/03/2022. Atualizado em 11/03/2022. Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-de-conteudos/procedimentos-regulatorios/proret. Acesso em 03 maio 2024.

[2] ANEEL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Perdas técnicas. Publicado em 16/02/2022. Atualizado em 02/08/2023. Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/distribuicao/perdas-de-energia. Acesso em 03 maio 2024.

[3] Art. 47. São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da empresa e a manutenção da respectiva fonte produtora.

[…]

§ 3º Somente serão dedutíveis como despesas os prejuízos por desfalque, apropriação indébita, furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial.

[4] Art. 46. São custos as despesas e os encargos relativos à aquisição, produção e venda dos bens e serviços objeto das transações de conta própria, tais como: […]

V – As quebras e perdas razoáveis, de acordo com a natureza do bem e da atividade, ocorridas na fabricação no transporte e manuseio;

[5] GANIN. Antonio. Setor Elétrico Brasileiro: aspectos regulamentares, tributários e contábeis. 3ª Edição. Brasília: Canal energia: Synergia, 2009. P. 425.

[6] De forma exemplificativa, cita-se alguns os seguintes Acórdãos de nºs 1402-004.314, 1402-004.517 e 1402-002.147, proferidos pelo CARF.

[7] No relatório da ANEEL, estima-se que na região Norte, por exemplo, as perdas não técnicas representam 45,82% sobre o mercado. Nas demais regiões do país, os percentuais vão de 6,59% (região Sul) a 15,76% (região Sudeste). O Nordeste e o Centro-Oeste têm perdas na casa de 10,94% e 7,47%, respectivamente. Fonte: ANEEL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Relatório de Perdas de Energia. Publicado em 10/03/2022. Atualizado em 11/03/2022. Disponível em: https://portalrelatorios.aneel.gov.br/luznatarifa/perdasenergias. Acesso em 05 maio 2024.

Autores

  • é advogada do Contencioso Administrativo no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados, doutora em Direito pela Unisinos, mestre em Direito Público pela Unisinos, professora universitária e especialista em Direito Público pela Esmafe-RS.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!