Opinião

Regras da ABNT não podem desligar a iluminação pública

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  • é especialista em Processo Civil e em Direito Tributário mestrando em Direito do Estado pela USP e advogado de entidades sindicais de transporte rodoviário que visam a garantir o cumprimento das normas atualmente vigentes no setor.

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17 de maio de 2024, 11h24

Vivemos em uma “sociedade de risco”. Evoluções tecnológicas nos trazem diversos benefícios, mas também geram uma série de inseguranças sobre eventuais externalidades negativas que decorrem de seu uso.

Governo Federal
iluminação pública, energia elétrica

Novas tecnologias devem ser testadas e retestadas (quando aprovadas para circulação), pela comunidade cientifica, a fim de confirmar se são ou continuam confiáveis para serem utilizadas pelos cidadãos (consumidores, usuários do serviço público etc.).

Do ponto de vista jurídico, o ordenamento normativo brasileiro prevê uma estrutura de entidades e processos para garantia de que a evolução tecnológica seja apropriada no País de forma segura [1].

No campo da iluminação pública viária, o estabelecimento das regras e a fiscalização da produção e comercialização de luminárias é de competência do Inmetro (artigos 1º e 5º da Lei 9.933/1999). Trata-se da autarquia reguladora responsável por verificar novos produtos e, diuturnamente, regular o que é seguro e pode ser utilizado para iluminação das cidades — serviço público a ser garantido pelos municípios.

Uma das fontes consideradas pelo Inmetro, para regulação do setor (atualmente regida pelas regras aprovadas pela Portaria nº 62 de 17/02/2022), são as normas técnicas (5101) privadas editadas em 2012 e 2018 pela Associação Brasileira de Norma Técnica.

A ABNT é um ente associativo privado, sem fins lucrativos, fundada em 1940. Sua atuação não tem força normativa e vinculante sobre sujeitos que não sejam seus associados ou resolvam aderir a seus atos de forma espontânea.

A atividade da ABNT pode ser enquadrada como atividade de autonormatização privada, cujas normas são produzidas pelos seus integrantes em interação com o Estado, mas que dependem de um ato oficial emitido por um ente competente para ser aplicado de forma cogente a todos os cidadãos [2].

Cor da iluminação pública

Recentemente, por meio da revisão da NBR 5101:2024, a ABNT alterou seu posicionamento, vigente desde 2012 (12 anos, portanto) sobre o padrão de segurança da cor (TCC — temperatura de cor correlata) da iluminação pública viária no Brasil.

O LED, que varia entre 3000K (cor amarela), passando pelo tom esbranquiçado/neutro (em torno de 5000K), e, finalmente, a cor azul, por volta de 6500K, usado há algum tempo no Brasil como principal responsável pela exitosa modernização dos parques de iluminação, deixou de ser recomendado pela associação.

Agora, a ABNT indica que a iluminação viária se valha de cores ainda mais quentes (tons de alaranjados e até avermelhados), com temperatura menor de 2700K.

Por ora, a recomendação da ABNT não tem força normativa cogente. A própria ABNT, em seu normativo (NBR 5101:2024), reconhece a necessidade de “chancela” e regra de transição a ser implementada pelo Inmetro:

Considerando que existem ainda processos e procedimentos que fazem referência a ABNT NBR 5101:2018, será necessário um tempo de transição a ser fixado pelo órgão regulamentador entre o documento anterior e esta versão de 2024, para especificamente adequar e atender aos requisitos relativos às novas certificações da Tcp desta versão atual  pelas partes interessadas.

Referida passagem estabelece uma condição suspensiva de eficácia (artigo 121 do Código Civil) para utilização dos novos padrões de temperatura.

O fato futuro e incerto é a atuação do Inmetro para alteração de normas técnicas. Qualquer alteração das regras vigentes do Inmetro deve ser precedida de um processo da análise de impacto regulatório (artigo 5º da Lei 13.874/201912 e o artigo 24 do Decreto 10.411/202013).

Por meio do referido processo administrativo, garantindo-se a participação de todos os interessados, busca-se gerar decisões técnicas seguras, cujos efeitos impactem da maneira mais eficiente possível as pessoas e as relações construídas com base nas tecnologias superadas. A decisão também deve garantir, na medida do possível, a estabilidade das relações já existentes que dela dependem.

Seguindo a análise de impacto regulatória, o Inmetro terá de proferir uma decisão devidamente motivada, que considera aspectos científicos, sociais e econômicos, a fim de evitar que novas normas gerem externalidades negativas (inclusive, novos riscos inerentes às novas tecnologias aprovadas, pois o “risco” nunca é zero).

Para os gestores responsáveis pela iluminação, ciente da relevância das regras da ABNT, surge a dúvida a respeito das compras de luminárias que estão em curso, e dos contratos de modernização que estão sendo executados, com base em projetos aprovados validamente de acordo com a NBR anterior (5101:2018).

Regramento do Inmetro define

Uma primeira premissa: a definição da temperatura da cor das luminárias depende necessariamente de regramento do Inmetro ou de definição em lei. Conforme exposto acima, a recomendação da ABNT de alteração do padrão de cor ainda não é cogente e, até mesmo, eficaz.

Sendo assim, não há motivação, do ponto de vista dos artigo 49 da Lei 8.666/1993, artigo 71 da Lei 14.133/2021, artigo 62 da Lei 13.303/2016, para revogação das compras que estão sendo feitas para garantia da modernização dos parques de iluminação pública já projetados com base nas NBR anteriores. Falta fato superveniente, justamente pela ausência de eficácia da NBR.

Mas, se o Inmetro validar a regra da ABNT, ou considerá-la com alterações, o ordenamento estabelece as seguintes soluções para adequação das contratações em curso:

  1. Contratos já firmados e projetados de acordo com as normas antigas, podem, com base na ponderação de custo-benefício, ser adequados por meio do processo de adaptação contratual e reequilíbrio econômico-financeiro para absorção das alterações determinadas pelo Inmetro. Trata-se da aplicação, por exemplo, das regras do artigo 65, II, ‘d’, da Lei 8.666/1993; artigo 124, II, ‘d’, da Lei 14.133/2021; e artigo 81, VI, da Lei 13.303/2016; e
  2. Licitações em curso, que sejam impactadas pela futura regra do Inmetro, poderão ser revogadas para que os novos padrões sejam incorporadas, considerando os projetos para os quais as luminárias serão utilizadas. Até lá, provavelmente, o mercado também estará adaptado para certificar e fornecer luminárias com o novo padrão — o que é uma questão fundamental a ser considerada pelo próprio Inmetro.

Acima de tudo, tem-se que a ABNT, ao se posicionar sobre o novo padrão de cor da iluminação viária, não pretendeu apagar a luz das cidades. A ABNT oferta ao Inmetro uma nova orientação sobre a temperatura de cor da iluminação viária que, se devidamente aceita e incorporada, com segurança científica e jurídica, poderá gerar uma série de benefícios para a população brasileira.

 


[1] “O Direito, a mais importante ciência social, vem tentando acompanhar essa “corrida maluca”, sempre alguns passos atrás, para continuar a missão que lhe foi confiada pela sociedade, ou seja, organizá-la de forma segura e justa.” (LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 7).

[2] Sobre a autorregulação, ver: SILVA, Bruno Boquimpani. A autorregulação: delineamento de um modelo policêntrico de regulação jurídica. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado, Processo e Sociedade) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010 .

Autores

  • é sócio da Corrêa, Agostini & Borda Advogados, mestre em Direito do Estado pela USP e autor do Livro "O Regime de Licitação das Empresas Estatais para Aquisição de Bens, Serviços e Obras".

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