Opinião

Ensino jurídico brasileiro: o caso das três falácias prediletas

Autor

25 de maio de 2024, 6h31

1. Introdução

Freepik
Prova, concurso, aula, estudantes

Em recente entrevista à ConJur, o advogado André Lemos Jorge, presidente da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) referiu que muitas vezes a tarefa de controle de novos cursos de direito é difícil. Seria necessário mudar a postura, para avaliar novos cursos com muito rigor, mas sem deixar de opinar pela aprovação dos bons cursos. E arrematou: “A OAB precisa dizer “não” para a maioria, sim. Ela pode ser rigorosa. Mas dizer “não” para tudo não faz sentido.”

A manifestação é relevante. Todavia, reflete uma incompletude que há décadas assola o falido sistema regulatório dos cursos jurídicos. Um mercado que vende o sonho e entrega o pesadelo, como alertou o ministro Marco Aurélio, no RE 603.583/RS.

O erro crônico — melhor dizendo: um erro cômodo — reside no fato de o brasileiro ter um fetiche na ideia de impedir novas faculdades de direito. Mas, somos verdadeiramente omissos quando não fechamos os cursos notoriamente ineficientes. Ao impedirmos novas faculdades, mas mantendo as de má qualidade abertas, criamos uma proteção contra competitividade, sem agregarmos qualquer efeito sancionatório à falta de qualidade de formação jurídica. Em suma: crio um benefício para a ineficiência que parece estar estabelecida.

Não é necessário apenas proibir abertura de novos cursos. Isso não basta. Precisa-se urgente é de regra clara e objetiva para fechar cursos deficitários. Começando por impedir novos vestibulares quando a média dos egressos da Faculdade for abaixo de certo patamar de aprovação / reprovação no exame de ordem.

A situação é tão periclitante que se for adotada uma média mínima entre 25% a 50% de aprovação de egressos no exame de ordem, praticamente 80% das Instituições de Ensino Superior (IESs) teriam problemas nos seus cursos de direito. Ou seja: uma solução mais rápida e eficaz que proibir abertura de novos cursos. No mínimo deveriam ser pensadas em conjunto: impedir novos cursos sem qualidade e fechar cursos em funcionamento sem um resultado mínimo no único exame imune a boicotes de alunos.

Inclusive, saber que existe uma regra objetiva de fechamento de cursos deficitários impediria a tentativa de abertura de cursos de má qualidade. O investidor aventureiro iria pensar novamente em colocar seu investimento ali, sem cobrar qualidade na formação, se é que um dia qualidade do serviço educacional chegou a ser uma preocupação daquele investidor.

2. Inserir o Exame de Ordem na avaliação dos cursos de Direito

Nos Estados Unidos, país mais liberal do mundo capitalista, existe há décadas algo semelhante. A importância do percentual de aprovados x reprovados no Exame de Ordem é tamanha, que no Direito Americano o Bar Exam é usado no sistema de avaliação das faculdades de direito. O percentual de aprovação do exame de ordem (BAR passage rates) é um dos critérios de avaliação de faculdades. [1] A regra Standard 316, [2] preconiza uma média de aprovação de 75%, com alguns critérios, como requisito de boa qualidade do ensino:

“Standard 316. APROVAÇÃO NO EXAME DE ORDEM

(a) A taxa de aprovação de uma escola de direito deve ser suficiente, para fins da Norma 301 (a), se a escola demonstrar que se encontra em qualquer um dos seguintes testes: (1) Que para alunos que se formaram na faculdade de direito dentro do cinco anos civis completados mais recentemente: (i) 75 por cento ou mais desses graduados que participaram do Exame, devem obter aprovação; ou (ii) em pelo menos três desses anos-calendário, 75% dos alunos que se formaram naqueles anos e fizeram o Exame da Ordem dos Advogados devem obter aprovação. [tradução livre nossa]

Standard 316. BAR PASSAGE

(a) A law school’s bar passage rate shall be sufficient, for purposes of Standard 301(a), if the school demonstrates that it meets any one of the following tests: (1) That for students who graduated from the law school within the five most recently completed calendar years: (i) 75 percent or more of these graduates who sat for the bar passed a bar examination; or (ii) in at least three of these calendar years, 75 percent of the students graduating in those years and sitting for the bar have passed a bar examination. […]”

Portanto, a sugestão não é desconhecida em outros países, onde a regulação de cursos jurídicos é bem mais eficiente e objetiva.

2.1. Exame de Ordem: único que não se boicota

O Exame de Ordem tem uma qualidade que os demais testes de “avaliação” como o ENADE não têm. Os demais testes de avaliação dos cursos superiores fracassam pois deixam a desculpa de terem sido as Instituições de Ensino “boicotadas” pelos alunos. Em linhas gerais e simplificando: basta ao aluno egresso comparecer e assinar a prova, e nada o prejudicará. Mas prejudicaria a faculdade na aviação. Por isso as IESs usam essa desculpa do “boicote” quando a nota é ruim. E nunca recebem sanção.

Spacca

No exame de ordem isso não existe. O resultado do aluno egresso dita um resultado para a faculdade e para o aluno. Imune ao boicote, portanto. Se o aluno boicota, ele se prejudica. Por essa razão, o exame de Ordem é muito mais seguro e eficiente os demais métodos. Ainda que não seja usado com exclusividade, ao menos, nada impediria que fosse mais um instrumento de fiscalização da qualidade do ensino jurídico. E com duas vantagens adicionais: primeiro, por não gerar curso adicional aos cofres públicos; e segundo, por ser um elemento objetivo de fácil mensuração, o facilita o procedimento de sanção por formação média deficitária.

2.2 Média nacional

Em 1 de julho de 2022 a ConJur publicou algo estarrecedor. O 33º Exame da Ordem Unificado — segundo semestre de 2021 — teve o maior percentual de aprovação da história desde a unificação da prova ocorrida em 2010. Eis o maior percentual: 31,4% de aprovados. Nas duas edições anteriores da prova, os percentuais de aprovação foram muito piores: 21,3% (primeiro semestre de 2021) e 18,7% (2020).

A pergunta que não quer calar: como uma Instituição que não aprova sequer 50% de seus egressos consegue se manter aberta? Ou, sendo mais modestos, como uma faculdade que reprova 75% de seus egressos consegue continuar podendo fazer novos vestibulares ou processos seletivos? Ou uma faculdade cujos egressos têm mais de uma vez 100% de reprovação?

Deveriam ser proibidas de fazer seleção aquelas que não atinjam 25% de média de aprovação de egressos. Ou que num espaço de três exames não atinjam a média de 50%. Não estamos sequer falando dos 75% da American Bar nos Estados Unidos.

3. A primeira das falácias prediletas

Há uma falácia no tocante ao tema faculdades de direito: o famoso “todo mundo sai bacharel igual”, ou sua variação, “o que vale é o diploma (ou “o canudo”)”.

Vamos destruir essas loucuras. Primeiro, pegue o mesmo aluno. Coloque-o numa faculdade de boa qualidade. Sairia esse mesmo aluno, melhor ou pior formado, do que se egresso de uma faculdade deficitária? Não há dúvidas a partir desse singelo esclarecimento: o mesmo aluno, em diferentes ambientes acadêmicos, com disparidade qualitativa destes ambientes, certamente teria resultados díspares ao final.

Portanto, é fundamental cobrar responsabilidade das IESs, e não apenas dos ex-alunos. Por isso o resultado do exame de ordem não pode ser legitimado apenas para avaliar o egresso, mas a média de formação da IES que o formou.

4. A segunda falácia: ninguém faz faculdade de ‘advocacia’

Todas as vezes que se fala em maior rigor nos pareceres da Ordem dos Advogados, os interessados financeiros no atual estado de coisas que se tornou o Ensino Jurídico gostam de lançar mão da terceira falácia. Ei-la: a faculdade é de “direito” e não de “advocacia”. Nada mais sonoro. Todavia, falacioso.

O Direito é um curso com propensão a conduzir, como regra, pessoas às profissões jurídicas. E stricto sensu, estas gravitam em torno da Advocacia, a Magistratura e o Ministério Público. No mais o que temos — e isso não reduz a importância das outras profissões —profissões para as quais se exige algum conhecimento substancial de legislação. Mas, não necessariamente um bacharelado. Isso daria outro artigo, mas fico por aqui.

O que importa: de todas as profissões jurídicas a única que se exerce sem numerus clausus, sem disputar vaga com terceiros (concurso público), é a advocacia. Logo, o fato de uma formação jurídica em bacharelado conduzir a outras opções, não se retira essa primazia da advocacia: a de ser a profissão que se exercer sem um “concurso” (o exame de ordem não equivale a tanto, por não ser numerus clausus; o candidato não compete senão com ele mesmo).

O relevante é: ninguém faz uma faculdade de direito esperando uma formação que não o habilite sequer a ser aprovado no exame de proficiência profissional para o exercício da advocacia. Não seria crível isso.

Ainda que o exame da OAB seja um indicador — não necessariamente o único — não se pode dizer que a informação a respeito deste exame não seja de interesse para o conceito de uma informação correta, clara e precisa que reflita medianamente a qualidade do serviço educacional contratado. Logo, se é capaz de mensurar a formação, tanto pode quanto deveria ser usado no sistema de avaliação das próprias faculdades de direito.

5. A terceira falácia: usar o exame na avaliação, reduziria o último ano de faculdade a um curso preparatório

Essa falácia é de facílima destruição. Todas as faculdades que geralmente obtêm aprovação média elevada, hoje, não se preocupam em converter o último ano em curso preparatório. Pelo contrário. Fiam-se na qualidade média da formação que deram ao longo dos 5 anos de curso.

A realidade infirma a falácia:

a) Primeiro: no Brasil, as mesmas faculdades de Direito que desde o início do Exame de Ordem estão sempre no topo de ranking, não têm formação livresca. Pelo contrário: são Instituições de Ensino preocupadas em uma formação jurídica sólida, o que por si só, já acarreta, também, ótima preparação para o Exame.

b) Segundo: o mesmo fato se repete, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os dados confirmam que as boas instituições de ensino sempre lideram os rankings de “Bar Passage Rate”.

Logo, se alguma faculdade converter seu último ano em mero preparatório de exame de ordem — se é que já não o fazem — apenas reproduzirá a mediana formação deficitária que já dispõem. As deficitárias continuarão deficitárias. As de formação sólida continuarão sendo de ótima qualidade.

6. Conclusão

Postas as razões acima, concluo:

a) É tão fundamental falar em regras de encerramento de atividades de faculdades deficitárias, quanto pensar em impedir novas faculdades;

b) O uso do resultado do Exame de Ordem é apto a avaliar — isento do efeito “boicote” — a formação média de uma Instituição de Ensino Superior;

c) Uma instituição cuja média de egressos aprovados não atinja 25% deveria ter novos vestibulares interrompidos imediatamente. Impossível justificar uma omissão regulatória num estágio destes de média de reprovação de egressos.

d) Logicamente uma regra melhor moldada caberá e caso de execução desta sugestão. Porém, retomo, uma IES com menos de 25% de seus egressos aprovados num exame de Ordem, não tem a mínima razão de se manter em funcionamento.

e) O exame de ordem é imune a boicote, e os alunos não inscritos ou faltosos não prejudicam a avaliação da Faculdade. Logo, apenas aqueles inscritos e que se submetem ao exame terão a avaliação computada. Uma avaliação objetiva, e mais, sem qualquer adição de custo aos cofres públicos.

f) No Brasil, a adoção deste critério demandaria a construção de uma regra própria, objetiva, mas capaz de encerrar ao menos a realização de novos vestibulares em cursos deficitários.

 


[1]https://www.americanbar.org/content/dam/aba/publications/misc/legal_education/Standards/2018-2019ABAStandardsforApprovalofLawSchools/18-nov-notice-of-revisions-to-aba-standards-and-rules.pdf

[2]https://www.americanbar.org/content/dam/aba/publications/misc/legal_education/Standards/2017-2018ABAStandardsforApprovalofLawSchools/2017_2018_aba_standards_rules_approval_law_schools_final.authcheckdam.pdf

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!