Licitações e Contratos

MP nº 1.221/2024: dispensar licitação é suficiente?

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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24 de maio de 2024, 10h21

A calamidade que vem ocorrendo no Rio Grande do Sul descortina um tanto além de um colapso climático. A desestrutura da Administração Pública para resolver os problemas que decorrem do desastre natural escancara a sua própria insuficiência em solucionar as mais variadas ocorrências, tendo por seguimento uma curiosa inação.

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Apenas para alertar algum dos mais perturbantes pontos sobre os quais se inquietam as autoridades políticas, o presumido pacto federativo pouco ou nada acolhe. Na prática, tudo vem sendo decidido aleatoriamente, acidentalidade que conta com o pragmatismo e instintivo voluntário dos privados, assim entendido como todos aqueles que não pertencem ao Poder Público.

Adotando a burocracia da contratação pública no Brasil, impossível licitar — e contratar — a tempo de socorrer. Logo, constatando a emergência, o desenlace até tem caminho e lugar certos, proposto no próprio corpo normativo da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, designadamente artigo 72 e seguintes.

Porém, a emergência e a calamidade pública a que faz referência o inciso VIII do artigo 75 não são, por si sós, elementos autorizadores para possibilitar a contratação direta — nada mais tautológico. Isso porque o medo do gestor público quanto às sanções nas mais variadas searas, designadamente na esfera criminal (tipo penal substancialmente rigoroso — artigo 337-E do Código Penal Brasileiro), impede uma conduta prospectiva, devendo se lhe conceder algo para além de uma mera tipologia aberta, simples epítetos, sem qualquer elemento decodificado, que se encontram quase que perdidos no vácuo da extensa Lei nº 14.133/2021.

Daí que, com o pretenso propósito de galvanizar uma maior amplitude quanto à possibilidade de solver o que carece da mais imediata resolução, a Presidência da República editou, no último dia 17 de maio de 2024, a Medida Provisória nº 1.221, que “dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública”.

Dita norma (provisória, por desígnio e formatação constitucionais) alinha-se não apenas à catástrofe alocada no Estado do Rio Grande do Sul, mas a enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública. Parece que tudo se insere ao que a Lei nº 14.133/2021 já cuidou de estabelecer.

Tal porque, em se tratando de calamidade, presume-se uma situação emergencial, apta a atrair a incidência do inciso VIII do artigo 75 da referida Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Por consequência, havendo emergência ou calamidade pública, segue-se o rito do artigo 72: contratação direta por dispensa de licitação.

Pelo que se percebe, a MP nº 1.221/2024 é mais um reforço semântico do que propriamente uma inovação normativa. De fato, não se trata de qualquer revolução, tampouco de originalidade até então completamente desconhecida, argumento facilmente comprovável pelo texto da Lei nº 13.979/2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

Mesmo assim — e para o quanto interessa ao presente escrito —, a MP nº 1.221/2024 será, no máximo, um apanágio do que é intentado na mesma Lei nº 14.133/2021, nomeadamente na parte que disciplina a contratação direta, cujo rito procedimental, ainda que mais enxuto e, teoricamente, mais célere, é grotescamente inservível a situações de completa destruição. Abreviadamente, o artigo 72 da Lei nº 14.133/2021 continua sendo extremamente oficioso.

Emergência diferenciada

É fácil desmistificar o amplo conceito que circunda as palavras emergência e calamidade pública (ou qualquer outra terminologia em igual conteúdo), bem assim as suas mais variadas degradações. Certamente — e de forma desfortunada —, o que ocorre no Rio Grande do Sul é uma emergência diferenciada, não facilmente resolvível, inclusive pela conjectural normativa da aludida medida provisória. Isso pelo motivo de a mencionada MP nº 1.221/2024 não concretar o arsenal necessário e suficiente para combater os destroços que foram causados, cujos reflexos ainda não foram totalmente revelados.

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Como simples exemplificação, saltam aos olhos dispositivos legais como o inciso IV do artigo 2º, que franqueia contratos verbais cujo limite não seja superior a R$ 100 mil. Em certa medida, tal previsão normativa é até mesmo pilhérica, porque o valor autorizado não é suficiente para quase nenhuma contratação pública, sobretudo se se levar em consideração que a respectiva medida provisória é igualmente utilizada para a contratação de obras e serviços de engenharia.

Por outro lado, ao admitir que contratos verbais podem ser realizados — o que não inibe a existência de um vínculo contratual entre a Administração Pública e o particular —, à míngua de um instrumento materializado em um contrato formal, o legislador provisório (MP é um apaga incêndio) reconhece que, em não raras situações, somente o contrato verbal notabiliza-se como mecanismo satisfatório, o que propõe um acerto na metódica, porém, com pontual imperícia na quantia financeira permitida.

Além do mais — e distante de uma terminante crítica —, a MP nº 1.221/2024 é, minimamente, ingênua, ao supor que o locus (local público) onde se processam as contratações públicas já foram “enxugados” e que todo o aparato de pessoas, materiais e demais recursos imprescindíveis à ocorrência de um trâmite licitatório encontram-se em perfeito estado para que haja um normal processo de contratação pública. Trágica suspeita!

Reflexionando sobre o tema, o que pode ser pensado sobre o curso de uma contratação pública em um Município quase todo comprometido — destruído mesmo — pelas enchentes? Onde (local com endereço preciso) serão confeccionados editais, contratos acima do específico montante de R$ 100 mil, dentre outros aspectos? Como encontrar servidores (dissipados de seus próprios lares) aptos a solucionarem tais obstâncias?

São indagações um tanto óbvias, as quais desenganam qualquer assopro no sentido de que um simplório normativo que libera a contratação direta por dispensa de licitação é o bastante para solver o colapso. O completo arruinamento encontrado no solo farrapo vai muito além — ao menos para fins de contratação pública — do que qualquer mal presságio já encontrado no país.

Inquestionavelmente, nem mesmo a dispensa de licitação prevista na Lei nº 14.133/2021 — e ratificada pela Medida Provisória nº 1.221/2024 — é decisiva para aplacar, com máxima brevidade que se espera de um Poder Público efetivo, os graves efeitos da maior catástrofe climática do país, tampouco para qualquer outra calamidade que, infelizmente, possa vir a ocorrer.

Definitivamente, é preciso ir ao encontro de uma maior liberdade de formas na sistemática das licitações e contratos públicos no Brasil, sobre os quais deve haver uma serena conformação e deferência do controle externo. Parece-nos que é essa a solução ótima — não a melhor, todavia, a plausível de ser levada a efeito.

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  • é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração e sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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