Opinião

A União, o direito financeiro e a reconstrução do Rio Grande do Sul

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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24 de maio de 2024, 7h01

Muitas vezes passado desapercebido, o direito financeiro dá sustentação à execução das competências administrativas outorgadas para os entes federados pelo regime de repartição de responsabilidades prescrito pelo direito constitucional.

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Além disso, é o direito financeiro quem lastreia as ações concretas da administração pública balizadas pelo direito administrativo, o que implica na verbalização da frase de que sem orçamento não há gestão pública.

Verticalizado pelas leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA), o seu horizonte normativo atravessa a política pública em todos os seus ciclos: planejamento, execução, controle e avaliação.

Além das leis de meios, outro horizonte normativo dá sustentação à intepretação do direito financeiro: a Lei dos Orçamentos (Lei 4.320/1964) e a Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF (Lei Complementar nº 101/2000).

Por determinação do artigo 16 desta última, toda criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental deve ter previsão estratégica nas leis orçamentárias, além do estudo a respeito do impacto orçamentário e financeiro no exercício em que entre em vigor e nos dois subsequentes.

Essa fase de planejamento possibilita o entendimento de que há uma indução normativa que determina sustentabilidade orçamentária à criação de uma despesa pública, o que representa um ônus administrativo que lastreia qualquer ação administrativa.

Por isso, é preciso cautela com o dimensionamento do gasto público, que, embora encontre na execução da despesa a sua foz, é na nascente, que representa a fase de planejamento, onde deve o gestor público ter mais ponderação porque uma despesa sem planejamento adequado significa responsabilização pautada em uma construção de nexo causal balizado por critérios formais, já que a despesa pública possui uma matriz prevista em lei em sentido amplo.

Atualmente, o País vivencia um colapso administrativo no Rio Grande do Sul, que, em decorrência do volume de chuvas acima do previsto, viu o seu território ser inundado. E algumas cidades, como é o caso de Eldorado do Sul, praticamente submergirem.

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A título de exemplificação, segundo o inciso IV da fundamentação do Decreto Municipal nº 10.0061/2024 [1], “100% da área urbana do município encontra-se submerso, atingindo aproximadamente 10 mil residências e 30 mil habitantes”.

Como se vê, o território do Rio Grande do Sul possui um desafio administrativo de se organizar como um todo. E nesse sentido, qual a colaboração do direito financeiro em um assunto onde prioritariamente atua o direito administrativo com as contratações públicas emergenciais, por exemplo?

Planejamento orçamentário

O primeiro passo é o planejamento orçamentário, que envolve a autorização do gasto e fixação da despesa por intermédio de lei nos termos prescritos pelo artigo 165, §8º da Constituição, para quem “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, na forma da lei”.

Ocorre que aquele regime é o ordinário, e a situação pela qual passa o território do Rio Grande do Sul se caracteriza por uma imprevisibilidade que denota o caos.

Cidades estão submersas e a infraestrutura da região está comprometida, exemplo do Aeroporto Internacional Salgado Filho, situado em Porto Alegre, o qual está interditado e cuja operação de voos comerciais foi direcionada para a Base Aérea de Canoas, localizada na região metropolitana de Porto Alegre [2].

Esse cenário atrai o acionamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, regido pela Lei nº 12.608/2012, cujo teor do seu artigo 10, parágrafo único indica a sua finalidade para: “contribuir no processo de planejamento, articulação, coordenação e execução dos programas, projetos e ações de proteção e defesa civil”.

Aquele normativo, em seu artigo 1º, inciso VI conceitua o estado de calamidade pública como “situação anormal provocada por desastre causadora de danos e prejuízos que implicam o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido, de tal forma que a situação somente pode ser superada com o auxílio dos demais entes da Federação”.

Depreende-se disso que a calamidade pública diz respeito à situação em que a administração pública não apresenta poder de resposta ao ônus de administrar o interesse coletivo em decorrência de força maior e que demanda a atuação de outros entes federados para ajudá-la.

No âmbito local, o Decreto Estadual nº 57.614/2024 [3], de 13 de maio de 2024, declarou estado de calamidade pública em 46 municípios e situação de emergência em 320 municípios. E esses 366 municípios correspondem a 72,43% do território gaúcho.

Esse regime de exceção atrai a incidência da possibilidade de abertura de créditos extraordinários, que é uma permissibilidade de autorização de gasto excepcional via decreto, que, nos termos do artigo 167, §3º, somente é “admitida para despesas imprevisíveis e urgentes”, caso da demanda administrativa daquele estado.

Mas se o volume de chuvas causou danos impossíveis de serem previstos no processo de planejamento orçamentário e financeiro do Estado do Rio Grande do Sul, qual a fonte de recursos que se apresenta para reconstruir aquele ente?

A resposta está no federalismo, forma de Estado pela qual se ergue a República brasileira e que permite a descentralização de recursos financeiros por intermédio de transferências financeiras.

Federalismo de cooperação

Essa forma de Estado, aliada à situação específica que vivencia o Rio Grande do Sul, remete também ao conceito de federalismo de cooperação, o qual envolve duas ideias: a cooperação vertical e a cooperação horizontal e ao escrever sobre o tema José Maurício Conti esclarece que “com relação às unidades envolvidas nas transferências, podemos constatar a existência de transferências entre unidades de grau diverso (cooperação vertical) e entre unidades de mesmo grau (cooperação horizontal). Esta cooperação financeira entre as unidades da federação constitui uma das pedras angulares do moderno federalismo [4]“.

O autor acrescenta ainda que a maior parte dos estados adota sistemas de cooperação vertical, com transferências de recursos oriundos do poder central para as unidades subnacionais e no âmbito do direito financeiro o artigo 25 da LRF, ao conceituar transferências voluntárias como “a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”, encampa aquela magistério.

No que diz respeito à organização do gasto para a reconstrução do Rio Grande do Sul, por determinação constitucional, o protagonismo legislativo e administrativo da União é essencial.

Isso porque nos termos do artigo 21, inciso XVIII da Constituição, é competência da União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas.

É tanto que o poder central já liberou R$ 12,2 bilhões para que diversos órgãos da União possam executar ações necessárias ao atendimento dos municípios afetados pelas enchentes [5].

A criação do gasto público emergencial decorrente de calamidade pública requer o reconhecimento formal daquele estado administrativo, o que significa que o direito financeiro possui forte vinculação com o processo legislativo como um todo.

Ciente disso o Senado editou o Decreto Legislativo nº 36/2024, o qual reconhece estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul até 31 de dezembro de 2024 [6].

Ocorre, porém, que aquele dispositivo possui pertinência temática tão somente com o artigo 65 da LRF, o que significa a suspensão temporária do regime sólido de planejamento fiscal, permitindo a atuação do direito financeiro de maneira imediata à reconstrução do estado.

Vale o registro de que o regime de planejamento administrativo (regras operacionais que dizem respeito ao direito administrativo), embora complementar, deve ser distinto do planejamento fiscal (regras de finanças públicas correlatas do direito financeiro) e a suspensão temporária da aplicabilidade do artigo 65 da LRF não é um salvo conduto ao ordenador de despesas no campo das contratações públicas, que possuem rito próprio previsto na Lei 14.133/2020 [7].

Não à toa que a União, enquanto responsável por legislar normas gerais sobre licitação e contratação pública (artigo 22, inciso XXVII da Constituição), recentemente editou a Medida Provisória nº 1.221/2024 [8], a qual flexibiliza regras para contratações públicas, inclusive de engenharia, destinadas ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública.

Aquele normativo apresenta como condição de aplicabilidade, nos termos do seu artigo 1º, §1º, inciso I, a “declaração ou reconhecimento do estado de calamidade pública pelo chefe do Poder Executivo do estado ou do Distrito Federal ou pelo Poder Executivo federal, nos termos disposto na Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012”, o que já aconteceu com o Estado do Rio Grande do Sul, como reconhece a portaria nº 1.377/2024 do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional.

Como se vê, a gestão das contas públicas em regime excepcional possui como primeiro passo o processo legislativo que reconheça o estado de calamidade pública.

A um segundo momento a expertise do direito financeiro deve ser pauta do ordenador de despesas, que só depois disso deve efetivamente planejar a concretização de um gasto público, sob pena de ser eventualmente responsabilizado.

Visão panorâmica do gestor

É preciso, portanto, uma visão panorâmica sobre o assunto, tendo em vista a transversalidade que há entre o direito constitucional, o direito administrativo e o direito financeiro.

Para o gestor público, é preciso prudência porque no calor da despesa um equívoco que evidencie erro grosseiro em seu processo de planejamento pode ensejar a atuação do direito administrativo sancionador.

Porém, o artigo 22 da lei de introdução às normas do direito brasileiro (LINDB) impõe um campo de visão específico aos órgãos de controle que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Quando da atuação na análise das contas públicas, devem os órgãos de controle observarem a especificidade do contexto da gestão. Até porque, conforme alerta Eros Roberto Grau, não existe texto sem contexto:

O intérprete procede à interpretação dos textos normativos e, concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimentos que compõem o caso se apresentam vai pesar de maneira determinante na produção da (s) norma (s) aplicável (ais) ao caso [9].

Dessa maneira, é preciso fazer dois alertas.

O primeiro é que o cenário de destruição do território que administra não significa um salvo conduto para o gestor público no sentido de fazer o que precisa.

É preciso uma legitimidade formal em seu processo decisório.

O segundo é que os órgãos de controle devem analisar especificamente o gasto, o que diz respeito a um estudo meticuloso da fundamentação do ato administrativo que impulsiona a despesa.

Além disso é preciso lembrar que “A LINDB esclarece que a sanção não é um fim em si mesmo e que a teoria do direito administrativo sancionador deve levar em consideração a funcionalidade e o caráter operacional da gestão pública [10]“.

O recomeço do Rio Grande do Sul por um lado depende do protagonismo da União em termos de processo legislativo para que, por outro, por intermédio do federalismo de cooperação, possa destinar recursos às ações prioritárias para o atendimento daquele ente político.

Que a União possa alicerçar segurança jurídica na reconstrução do Rio Grande do Sul e que o direito financeiro colabore com a reordenação das margens do Guaíba.

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Referências bibliográficas

ARAÚJO, Mário Augusto Silva. Direitos sociais, prestação de contas e Direito Administrativo Sancionador. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/araujo-direitos-sociais-prestacao-contas-direito-sancionador/

BRASIL, Decreto Legislativo nº 326/2024. Disponível em https://legis.senado.leg.br/norma/38454538/publicacao/38456540

_______,Medida Provisória nº 1.221/2024. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/mpv/mpv1221.htm

CONTI, José Maurício. Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. Editora Juarez Oliveira. São Paulo/SP: 2001

ELDORADO DO SUL. Decreto Municipal nº 10.0061/2024. Disponível em https://www.eldorado.rs.gov.br/arquivos/decreto_-_calamidade_11105506.pdf

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a aplicação/interpretação do Direito. Malheiros Editores. 5ª edição. São Paulo/SP: 2009

RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 57.614/2024. Disponível em https://www.diariooficial.rs.gov.br/materia?id=999537


[1] Declara Situação de Anormalidade – ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA – nas áreas do Município afetadas pelo evento adverso Chuvas Intensas – COBRADE 1.3.2.1.4, conforme Portaria nº 260/2022 – MDR. Disponível em https://www.eldorado.rs.gov.br/arquivos/decreto_-_calamidade_11105506.pdf acesso em 21/05/2024

[2] Informação disponível em https://www.gov.br/anac/pt-br/noticias/2024/base-aerea-de-canoas-rs-comeca-a-receber-voos-comerciais acesso em 21/05/2024

[3] Disponível em https://www.diariooficial.rs.gov.br/materia?id=999537

[4] CONTI, José Maurício. Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. Editora Juarez Oliveira. São Paulo/SP: 2001, p. 40.

[5] Informação disponível em https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/noticias/2024/governo-federal-abre-credito-extraordinario-de-r-12-2-bilhoes-para-o-rio-grande-do-sul acesso em 21/05/2024

[6] Disponível em https://legis.senado.leg.br/norma/38454538/publicacao/38456540 acesso em 21/05/2024.

[7] Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

[8] Dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública. disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/mpv/mpv1221.htm

[9] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a aplicação/interpretação do Direito. Malheiros Editores. 5ª edição. São Paulo/SP: 2009

[10] ARAÚJO, Mário Augusto Silva. Direitos sociais, prestação de contas e Direito Administrativo Sancionador. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/araujo-direitos-sociais-prestacao-contas-direito-sancionador/ acesso em 21/05/2024.

Autores

  • é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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