Opinião

Vulnerabilidade agravada do consumidor no desastre e dever de cooperar

Autor

  • Claudia Lima Marques

    é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS doutora pela Universidade de Heidelberg mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha) advogada relatora-geral da Comissão de Juristas e ex-presidente do Brasilcon.

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23 de maio de 2024, 11h20

Em virtudes das enchentes e inundações, verdadeiro desastre ambiental, que atingiram o Rio Grande do Sul, o governador decretou “estado de calamidade” em 1° de maio de 2024. Ao total foram 461 municípios afetados, incluindo a capital Porto Alegre, com 77.202 pessoas em abrigos, mais de 540 mil pessoas desalojadas, 155 mortes e 94 desaparecidos, contabilizando 2.304.422 pessoas afetadas [1] e todo um estado que parou para ajudar as vítimas e enfrentar as consequências deste desastre sem precedentes.

Escola de Administração da UFGRS foi atingida pela enchente

A Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que faz parte do Ceped, [2] instituiu um Observatório dos Desafios e Consequências Jurídicas da Enchente e do Estado de Calamidade no Rio Grande do Sul em 2024, o OCJE, que através de seus professores e grupos de pesquisa procura ajudar com estudos e assessoramento consultivo aos parceiros Procon-RS, Defensoria Pública do RS, TJ-RS e a Senacon-MJ. Neste sentido, gostaria de chamar a atenção do dever de cooperar ínsito no princípio de boa-fé, que regula todo o CDC (artigo 4°, IV do CDC).

Frente a tal desastre ambiental, o momento agora é de cooperação entre consumidor e fornecedor nas relações de consumo para manter os contratos de consumo, readaptados às novas expectativas dos consumidores (artigo 6°, V c/c artigo 54, §2° e artigo 51, §2° do CDC) e para evitar a sua exclusão social (novo princípio da defesa do consumidor incluído pela Lei 14.181/2021 no inciso X do artigo 4° do CDC).  É o momento de usar em diálogo as exceções do Código Civil e as regras especiais do CDC para a consolidar mecanismos de proteção do consumidor pessoa natural, como impõe o Art. 5, VII in fine do CDC.

Frente à calamidade pública, mister reconhecer aos consumidores gaúchos não só a vulnerabilidade comum dos consumidores (artigo 4°, I do CDC), [3] mas um estado de vulnerabilidade agravada. [4] Vulnus é ferida ou aquele que pode ser ferido. [5] Vulnerabilidade é o estado resultante de fragilidade, em virtude de determinada posição, status ou situação em que se encontra a pessoa, que pode ser ou foi ferida. [6]

Segundo o Código de Defesa do Consumidor todo o consumidor é reconhecido como vulnerável nas relações de consumo, mas defendemos que há uma nova vulnerabilidade dos consumidores face aos desastres ambientais, cada vez mais frequentes. Vejamos, pois, o que deve ser feito segundo os princípios e regras de ordem pública (artigo 1° do CDC) nas relações de consumo para a manutenção dos contratos (parte 1) e para o combate da exclusão social dos consumidores (parte 2), com exemplos práticos.

1 – Princípio da manutenção do contrato e o direito à modificação dos contratos para evitar a onerosidade excessiva frente a consumidores

O desastre, nas relações privadas, é causa da excludente de força maior (como “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”, segundo o artigo 393, parágrafo único do Código Civil). Assim, se não for cumprida a obrigação, o devedor não responde por perdas e danos (artigo 389 do Código Civil) nem pelos prejuízos resultantes da força maior (artigo 393 do Código Civil), a exceção que ocorram durante a mora (artigo 399 do Código Civil).

Essa excludente de força maior também é utilizada em relações de consumo, mas aqui o diálogo das fontes exige um cuidado maior com os princípios do CDC, em especial o princípio da manutenção dos contratos e da boa-fé.

O princípio da boa-fé exige cooperação entre consumidor e fornecedor para a realização das expectativas legítimas dos consumidores, que são a continuação do vínculo e o bom fim das relações de consumo. Logo, aqui cooperar é manter os contratos de consumo, mesmo frente aos desastres e as dificuldades consequências, com as adaptações necessárias.

Por exemplo, certo é que os serviços essenciais (água, luz, internet, telecomunicações) podem ser interrompidos em caso de inundações, mas devem continuar tão logo seja possível e, em caso de necessidade, sejam readaptados às novas expectativas dos consumidores. O sistema de transporte, de ônibus, de táxis, de aplicativo deve ser adaptado, mas continuar também, assim como o sistema bancário, educacional e outros.

É o princípio da manutenção do contrato, que está insculpido em dois artigos do CDC, no §2° do Art. 54 fica claro que a decisão de manter o contrato ou o rescindir é uma ‘escolha’ do consumidor, mesmo que seja previsto uma cláusula resolutória e no §2° do artigo 51, afirmando que mesmo que sejam retiradas abusividades os contratos de consumo deve continuar, exigindo esforços de integração desta lacuna e sendo apenas a excessiva onerosidade para qualquer das duas partes que leva ao fim do contrato. Repita-se que nos contratos cativos de longa duração, o tempo é o tempo do consumidor, [7] não cabendo ao fornecedor dar fim ao contrato, nem mesmo em caso de desastres, se não lhe sobrevir excessiva onerosidade. Aqui uma adaptação, com cooperação de ambos os parceiros, é necessária para assegurar a continuidade do vínculo, que é o princípio imposto pelo CDC. Deve-se evitar a frustração do fim do contrato de consumo. [8] Como ensina a jurisprudência do STJ:

“Recurso especial. Civil. Indenização. Aplicação do princípio da boa-fé contratual. Deveres anexos ao contrato. – O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. – O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. – A violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa…” (STJ, REsp n. 595.631/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 8/6/2004, DJ de 2/8/2004, p. 391.)

O CDC também impõe que uma série de práticas (artigo 39) e cláusulas (artigo 51) são abusivas e vedadas, pois estabelecem “obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” (artigo 51, IV, do CDC).

As cláusulas abusivas são nulas de forma absoluta (artigo 51 caput do CDC) e não devem ter nenhuma eficácia, nem em épocas de desastres. Dentre as mencionadas expressamente pelo CDC, são abusivas as cláusulas que permitem ao fornecedor “modificar unilateralmente o preço ou valor pago em contraprestação de serviços ou produtos (artigo 51, X, do CDC) e as que permitam ao fornecedor “modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, das prestações, da qualidade” (artigo 51, XIII, do CDC)

Por isso mesmo, em virtude da abusividade da cláusula, estas práticas comerciais só podem ser oriundas dos deveres de cooperação, para evitar a ruína de qualquer dos contratantes, e adaptar o contrato às novas circunstâncias posteriores ao desastre.

Spacca

O próprio CDC, quanto às práticas abusivas da lista exemplificativa do artigo 39, restringe a apenas duas práticas comerciais a chamada ‘justa causa’ que as autoriza de forma excepcional, a saber, o condicionamento da venda a limites quantitativos (artigo 39, I in fine do CDC), que o Procon-RS tem autorizado, em especial em relação à água mineral, visando justamente combater o desabastecimento e a elevação do preço (artigo 39, X, regra incluída pela Lei 8.884/1994), que aqui também tem que combater o oportunismo de alguns fornecedores e assegurar o acesso aos produtos necessários para os consumidores em tempos de crise. [9]

A Senacon emitiu uma Nota Técnica nº 5/2024/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, que estabelece “estratégias destinadas à fiscalização de preços, quantidade e segurança de produtos e serviços, durante estado de calamidade pública ou situação de emergência e dá outras providências. A referida Nota Técnica é clara ao reconhecer a calamidade, e afirmar: “17. Entretanto, durante estado de calamidade pública ou situação de emergência, os fornecedores não poderão afastar a proibição disposta no inciso X, do art. 39, do Código de Defesa do Consumidor”.

Se quanto à elevação do preço, a Nota Técnica nº 5/2024 é firme e pede aos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor:

“I – Promover ações de fiscalização e autuar, na forma da legislação, os responsáveis por práticas abusivas de elevação sem justa causa do preço de produtos ou serviços; II – Desenvolver canal de denúncia e forma de divulgação eficaz; III – Informar, conscientizar e motivar os consumidores através dos diferentes meios de comunicação; e IV – Prestar aos consumidores orientação sobre seus direitos e garantias em casos de elevação sem justa causa do preço de produtos ou serviços e em casos de necessidade de limitação da quantidade de produtos e serviços.” [10]

Quanto à limitação quantitativa, considera que a calamidade é sim base para alguns limites, desde que previamente informados aos consumidores: “19. No entanto, no presente caso se faz necessário que se estabeleçam, neste período de calamidade pública, limites quantitativos para a oferta e disponibilidade de produtos com a intenção de atender ao maior número de consumidores possíveis. 20. Além disso, existindo justa causa, o fornecedor, obedecendo ao princípio da informação, deverá, na publicidade e ou na oferta, deixar claro que há limitação da quantidade de produtos e serviços, além dos respectivos motivos”.

A referida Nota Técnica nº 5/2024 da Senacon-MJ também destaca que desastres são momentos de vulnerabilidade agravada dos consumidores e palco para muitos abusos, daí a necessidade de prevenir danos:

“Nesse sentido, vale relembrar que o art. 1º, IV, e o art. 170, caput, da Constituição Federal elevam à condição de princípio fundamental a livre iniciava, ao lado da defesa do consumidor no inciso V. 13. Em relação aos princípios da defesa do consumidor e da livre iniciava, é necessário sempre ter o cuidado de um não se sobrepor o outro. Há que se equilibrar a busca pela livre iniciava sem que seja esquecida a defesa do consumidor. 14. Sendo assim, frente às normas legais e constitucionais vigentes, faz-se necessário ter em mente que uma análise da abusividade dos preços ou aumento arbitrário de lucros, segundo o CDC e a legislação de defesa da concorrência, deve ocorrer caso a caso, mercado a mercado, sem que seja possível determinar aprioristicamente quais são os limites de elevação estabelecidos em Lei.”

O preço é elemento essencial destes contratos que os consumidores querem celebrar e continuar os contratos. Por exemplo, o sistema de saúde, por exemplo, pode colapsar e é necessário transferir os tratamentos eletivos, mas manter os urgentes, na medida do possível. As escolas devem reabrir e a cooperação por parte dos consumidores também exige não exigir as mesmas matérias, os mesmos serviços, e eventualmente até uma adaptação do preço, mas em moldes razoáveis e não onerosos.

Quanto ao preço, a cooperação pode levar também a sua redução ou adaptação possível, assim nunca é demais relembrar que o Código de Defesa do consumidor assegura como direito básico do consumidor a “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (artigo 6°, V do CDC). Consideramos que aqui o CDC recebeu a teoria da quebra da base do negócio, que visa restabelecer seu sentido econômico de boa-fé (artigo 4, III do CDC c/c artigo 422 do CC).

Repita-se que o consumidor tem direito a manter o contrato, caso necessite, só podendo o fornecedor usar a cláusula resolutiva, como impõe o artigo 54, §2° do CDC, a opção deve ser do consumidor. O contrário também é verdadeiro, o consumidor também pode rescindir unilateralmente os contratos, em virtude do desastre. Em muitos contratos, a utilidade do próprio contrato é considerável, mesmo em contratos não considerados de consumo, como a locação, se o imóvel inundado não tem mais utilidade para a pessoa, não é necessário renovar este contrato. [11]

Outra possibilidade é reduzir os valores pagos, cooperando para adaptar os contratos, mas é necessário evitar a ruína dos consumidores flagelados pelos desastres. O princípio do combate à exclusão social, a exceção da ruína no superendividamento e na força maior são os nossos próximos temas, na parte 2 desta reflexão.

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[1] Veja Defesa Civil atualiza balanço das enchentes no RS – 18/5, 9h – Portal do Estado do Rio Grande do Sul (Acesso em 18.05.2024)

[2] Centro Universitário de Pesquisa e Estudo sobre Desastres – UFRGS, criado em 2011 pela Resolução CONSUN 461/2011 (Dec416-11-CriacaoeRegimentoCEPED.pdf (ufrgs.br) e liderado pelo IPH-Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, veja também do IPH Previsões atualizadas de níveis d´água no Guaíba – Sábado 04/05/24 11:00 – IPH (ufrgs.br) e da UFSC, .

[3] Veja os tipos de vulnerabilidades do consumidor, técnica, jurídica, fática e a vulnerabilidade informacional, in MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9 ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 312 e seg.

[4] Expressão de 2014 de MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 68, hoje aceita pelo Art. 54-C, inciso IV do CDC.

[5] Veja detalhes in MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis, cit., p. 120 e seg.

[6] MAZIÈRE, Pierre. Le principe d’égalité en droit privé. Marseille: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2003,p. 229 e seg.

[7] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9 ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 755.

[8] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9 ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 1317.

[9] Veja detalhes in MIRAGEM, Bruno. O ilícito e o abusivo, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 104 (2016), p. 99-127, mar.-abr/2016, p. 9.

[10] Veja notícia e texto in Senacon emite nota técnica para coibir prática de preços abusivos no Rio Grande do Sul — Ministério da Justiça e Segurança Pública (www.gov.br) (19.05.2024).

[11] Assim o Código Civil:  “Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.”

Autores

  • é diretora da Faculdade de Direito e professora titular do da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). Presidente da IACL (International Association of Consumer Law e do ILA (Committee on International Protection of Consumers), Londres. Professora permanente do PPGD UFRGS e da Uninove. Pesquisadora 1 A do CNPq e membro do CA Direito. Advogada.

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