Opinião

Violência contra a mulher: julgamento da ADPF 1.107 vai entrar para história

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23 de maio de 2024, 16h21

O dia de hoje entrará para a história do sistema de justiça criminal brasileiro, diante do estabelecimento de um marco civilizatório no combate à violência contra a mulher, preservando-se a dignidade das vítimas de crimes sexuais ao estabelecer medidas concretas para impedir o processo de revitimização durante o processo e o julgamento do caso, mediante a vedação a questionamentos impertinentes sobre a vida sexual pregressa e o modo de viver da mulher.

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À unanimidade, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADPF 1.107, sob relatoria da eminente ministra Carmen Lúcia. A ação foi proposta pela Procuradoria Geral da República e buscava, em linha com o que já havia sido decidido pela Corte no ano passado a respeito da inconstitucionalidade da tese da “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio (ADPF 779), assegurar tratamento digno às vítimas de crimes sexuais e violência contra a mulher, reconhecendo-se o dever do poder público de coibir abusos manifestos no exercício do direito de defesa em prejuízo da dignidade da vítima.

Segundo a acertada tese apresentada pela PGR, era mesmo imperativo “que o Supremo Tribunal Federal reconheça a inconstitucionalidade da utilização (como argumento de defesa) e da consideração ou validação (como razão de decidir) de narrativa de desqualificação da vítima em crimes sexuais, bem como reforce o dever do poder público de coibir, na seara jurisdicional, comportamentos com esse propósito”.

Foram quatro os pontos que restaram definidos pelo STF

Em primeiro lugar, determinou-se interpretação conforme à Constituição ao artigo 400-A do Código de Processo Penal, de modo a excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento.

O aludido artigo 400-A do Código de Processo Penal foi incluído por reforma legislativa no ano de 2021, prevendo que na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, sendo vedadas I) a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; e II) a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Conforme decisão do Supremo, a vedação concernente a manifestações sobre circunstâncias ou “elementos alheios aos fatos objeto de apuração” deve ser interpretada conforme a Constituição Federal para que se considerem “alheios aos fatos objeto de apuração” todos os elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida, sendo vedadas manifestações das partes e seus procuradores sobre essas circunstâncias.

Em segundo lugar, decidiu-se pela impossibilidade de invocação da aludida nulidade (prevista no artigo 400-A do Código de Processo Penal) em benefício do réu, quando a própria defesa tiver se valido da tese a legítima defesa da honra com essa finalidade, considerando a impossibilidade do acusado se beneficiar da própria torpeza.

A matéria agora decidida está em consonância com o que já havia sido decidido pela Corte na ADPF 779, de relatoria do eminente ministro Dias Toffoli, na qual restou assentada a inconstitucionalidade da tese da “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio, o que a partir de agora se estende aos crimes sexuais contra a mulher.

Em terceiro lugar, decidiu-se por conferir interpretação conforme ao artigo 59 do Código Penal, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida.

Spacca

É bem verdade que o artigo 59 do Código Penal prevê que a fixação da pena deve levar em conta a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima. Todavia, é evidente que na apuração de crimes sexuais importa perquirir se houve ou não consentimento da mulher para o ato sexual, não sendo pertinentes aspectos da vida íntima da vítima que não estejam relacionados ao crime, o que revela o acerto da decisão em vedar a valoração da vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida como elemento para fixação da pena.

Por fim, em quarto lugar, decidiu-se por reconhecer o dever do julgador atuar no sentido de impedir questionamentos sobre a vida sexual pregressa e o modo de viver da vítima, sob pena de responsabilização administrativa e penal, o que se revela fundamental para impedir constrangimentos que transformem a vítima em ré.

Nesse sentido, a integridade física e psicológica da vítima deve ser assegurada pelo magistrado que preside a audiência, cabendo-lhe o dever legal de impedir questionamentos e insinuações que desqualifiquem a mulher vítima de crimes sexuais.

Em boa hora, o STF promove a adequação do processo penal brasileiro aos comandos da Constituição Federal e às disposições da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 e internalizada no direito brasileiro por intermédio do Decreto 4.377, de 13.9.2002 e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), internalizada por meio do Decreto 1.973, de 1º/8/1996.

A ordem jurídica nacional e internacional reclama uma postura ativa por parte do Estado, zelando pela efetividade da proteção da mulher vítima de crime sexual, seja para impedir que sofra novos atos de violência e exposição vexatória durante o processo criminal, seja para invalidar os efeitos dessa revitimização no resultado do julgamento do crime.

Diante desse cenário, ao julgar procedente a ADPF 1.107, o STF dá um passo fundamental no combate à violência contra a mulher, consolidando a tese de que o direito de defesa do réu não pode ser exercido com desprezo à dignidade da vítima. É um marco civilizatório exigir que o Estado atue efetivamente para impedir que a vítima seja transformada em ré nos processos apuratórios de crimes sexuais e de violência contra a mulher, coibindo-se abusos manifestos no exercício do direito de defesa que importem a revitimização de mulheres agredidas e reconhecendo-se o dever do poder público e de todos os atores processuais de zelar pelo respeito à dignidade das vítimas.

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