Opinião

Possível afastamento da Súmula 111/STJ a partir do julgamento do Tema 1.105/STJ

Autor

  • Oswaldo de Bem Borba

    é advogado especialista em Direito Previdenciário pela ESMAFE sócio do escritório Bruno Mesko Dias Sociedade de Advogados e membro da Comissão de Seguridade Social da OAB/RS na subseção de Cachoeirinha.

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22 de maio de 2024, 19h21

Os honorários sucumbenciais nas ações previdenciárias foram regulamentados pelo artigo 20 do CPC/73, que dispunha que nas ações em que a Fazenda Pública for vencida, estes serão fixados consoante apreciação equitativa do juiz, entre o mínimo de 10% e o máximo de 20%, atendidos o grau de zelo profissional, o lugar da prestação do serviço, a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço.

Porém, não obstante a disciplina regulamentada pela lei adjetiva civil, a fixação de honorários de sucumbência nas demandas previdenciárias teve um tratamento particular.

Isso porque, em 6 de outubro de 1994, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou sua Súmula 111 que previa que “os honorários advocatícios, nas ações previdenciárias, não incidem sobre as prestações vincendas”. A referida súmula foi alterada em 27 de setembro de 2006 pela mesma 3ª Seção, que deliberou para que a mesma indicasse que “os honorários advocatícios, nas ações previdenciárias, não incidem sobre as prestações vencidas após a sentença” [1].

Embora houvesse divergência na ocasião do julgado, como referido pelo, ministro Félix Fischer, a tese então vencedora partiu do argumento de que, caso a base de cálculo dos honorários sucumbenciais fosse o trânsito em julgado, ou até mesmo a data de apresentação do cálculo de liquidação (correntes divergentes encontradas em precedentes do STJ), seria originado um conflito de interesses entre o patrono e o patrocinado, pois a protelação do fim da causa seria vantajosa ao advogado, enquanto o interesse do segurado seria pela rápida solução do litígio [2].

Assim, esta máxima de que os honorários sucumbenciais têm base de cálculo limitada à sentença restou enraizada nos processos que envolviam a concessão de benefícios previdenciários. A única flexibilização admitida foi o teor da Súmula 76 do TRF-4, que manteve a mesma ratio decidendi da 3ª Seção do STJ, mas indicou que, em casos que a concessão do benefício ocorra tão somente por reforma da sentença no tribunal, a base de cálculos dos honorários será limitada na data do acórdão, pois é a data em que foi concedido o benefício [3].

Atualmente, os honorários de sucumbência são disciplinados pelas regras insculpidas pelo artigo 85 do CPC/2015. O §2º do artigo 85 do CPC/2015 prevê que os honorários sucumbenciais serão calculados sobre o valor da condenação, do proveito econômico ou, na impossibilidade de cálculo destes, sobre o valor atualizado da causa. No §3º do referido dispositivo, foram parametrizados os percentuais a serem calculados: imediatamente, nos casos em que a sentença for líquida ou; em fase de liquidação, para os casos em que não for líquida a sentença.

O advento do Código de Processo Civil de 2015, trazendo novas disposições sobre a fixação dos honorários sucumbenciais, renovou a discussão acerca da validade da Súmula 111/STJ, bem como de overrulling ocorrido a partir da publicação da nova lei adjetiva civil.

Spacca

Apesar das críticas à posição do STJ [4], este entendimento prevaleceu, sendo limitada a base de cálculo dos honorários sucumbenciais até a sentença, pois em 27 de março de 2023 o Superior Tribunal de Justiça julgou os REsp 1.883.715/SP, REsp 1.883.722/SP e REsp 1.880.529/SP, os quais serviram de leading case para o Tema 1.105/STJ, que teve como objetivo firmar posicionamento sobre a incidência, ou não, da Súmula 111/STJ, ou mesmo a necessidade de seu cancelamento, após a vigência do CPC/2015.

Neste julgamento, restou firmada a seguinte tese: continua eficaz e aplicável o conteúdo da Súmula 111/STJ (com redação modificada em 2006), mesmo após a vigência do CPC/2015 no que tange à fixação de honorários advocatícios [5].

Aplicação de decisão do STJ

Com o julgamento ocorrido pelo rito dos recursos repetitivos, nos termos do disposto pelo artigo 927, III do CPC, a tese firmada deve ser observada por juízes e tribunais, dado o caráter vinculante da decisão proferida.

Desta forma, pode-se concluir que a Súmula 111 do STJ tem aplicabilidade obrigatória? Pois bem, a resposta não pode ser tão simples e, para achar uma solução realmente adequada, é preciso entender como deve ser aplicado um precedente qualificado, como o caso em análise, que firmou a tese do Tema 1.105 do STJ. É inegável que o ordenamento pátrio importou o sistema de precedentes do direito anglo-saxão, bem como com inspiração no direito alemão, que utiliza o procedimento-padrão (musterverfahrein) [6], mesmo que para tanto tenha sido positivada a possibilidade da cultura.

Com efeito, o artigo 926 do CPC dispõe que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Sobre a necessidade de coerência, Lênio Streck doutrina:

(…) haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada a integridade do Direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário. Isso somente pode ser alcançado por meio de um holismo interpretativo, constituído a partir de uma circularidade hermenêutica. Coerência significa igualdade de apreciação do caso e igualdade de tratamento. Coerência também quer dizer “jogo limpo” [7].

A aplicação de um precedente demanda imperativa análise acerca da solução debatida e concebida para determinado caso, com a verificação de todas as circunstâncias que levaram a corte a chegar à solução tomada. Somente assim será possível identificar a semelhança entre o precedente e o caso concreto para o qual se pretende aplicar a solução vinculante [8]. Com efeito, não se pode aplicar a tese firmada como uma regra geral e abstrata, pois se assim aplicada, estaria sendo violado o princípio da separação de poderes.

Pois bem, na hipótese de o juiz encontrar diferença entre as características da lide que levaram o tribunal a firmar tese vinculantes e o caso concreto que demanda julgamento, tem-se presente situação de distinção, não podendo a solução adotada pelo precedente vinculante ser adotada ao caso concreto. Pois tal conduta evidencia afronta à coerência exigida do tribunal ao unificar sua jurisprudência, e ao magistrado, que deve observar o precedente qualificado em suas decisões (artigo 927, III do CPC).

Assim como o sistema de precedentes foi importado ao ordenamento jurídico brasileiro, as técnicas para afastar sua aplicação igualmente são aplicáveis. Neste sentido, é possível afastar a aplicação da solução adotada por determinado precedente qualificado em casos de overrulling, overriding e distinguishing.

Como a intenção do presente estudo não é esgotar estas técnicas de superação dos precedentes, cumpre entender a técnica do distinguishing, pois é possível a aplicação desta para afastar a solução adotada pelo Tema 1.105 do STJ quando não estiver presente o contexto fático que validou a Súmula 111 do STJ.

Ocorre o distinguishing quando o juiz se depara com situação fática ou jurídica divergente daquela analisada no precedente. Ou seja, ao analisar o caso concreto, há distinção entre a lide a ser julgada e aquela que foi solucionada pelo precedente. Neste caso, não se está superando o precedente, mas se está julgando o caso concreto com base em suas particularidades, afastando a solução do precedente pelo fato de que a mesma não é aplicável em razão justamente desta distinção[9].

Pois bem, uma vez que tal questão acerca da aplicação (ou não) da Súmula 111 do STJ passou pelo rito de resolução de demandas repetitivas, deve ser analisada a tese firmada bem como as razões pelas quais a tese restou firmada (ratio decidendi) para que seja verificado se a tese firmada é aplicável (ou não) ao caso concreto, uma vez que ao sistema de julgamento permite a análise de eventual distinguishing.

Extraindo-se os motivos pelos quais o STJ fixou tese neste sentido, é possível observar que foi fundamentado que o intuito da edição da Súmula 111/STJ teve como objetivo desestimular o indevido prolongamento da demanda, possibilitando que o segurado logo recebesse as prestações judicialmente reconhecidas a seu favor, evitando o conflito de interesses entre o patrono e o seu representado.

Com efeito, o STJ, ao julgar o REsp 1.883.715/SP [10], apresentou a ratio decidendi de forma subdividida, apresentando três fundamentos através dos quais firmada a tese acerca da possibilidade de aplicação da Súmula 111/STJ.

O primeiro residiu sobre a ausência de delimitação da base de cálculos dos honorários de sucumbência pelo disposto no artigo 85, §4º do CPC/2015; o segundo fundamento reside na proposta de evitar o conflito de interesse do patrono com o segurado, reconhecendo que muitas vezes o patrono poderia procrastinar o término do processo em dissonância com o interesse do patrocinado, que postula o benefício previdenciário para sua subsistência; o terceiro fundamento residiu nos inúmeros julgados do próprio STJ, que seguiram aplicando o verbete 111/STJ, mesmo após a vigência do CPC/2015.

Evitar conflito de interesse com advogado

Aqui, o que interessa à análise acerca da possibilidade de distinção do caso concreto com o caso levado à julgamento pelo STJ é o segundo fundamento utilizado para declarar válida a súmula 111/STJ. Neste ponto, o principal fundamento utilizado foi no sentido de resguardar o direito do segurado em solucionar de forma mais célere a lide com a finalidade de evitar conflito de interesses com seu advogado.

Assim, na hipótese de ser demonstrado de forma inequívoca a ausência de conflito de interesses entre o advogado e o segurado, não persistirão os motivos pelos quais o STJ entendeu pela validação da Súmula 111/STJ, de modo que razão pela qual cabível a fixação dos honorários sucumbenciais sobre todo o proveito econômico obtido na demanda, afastando a aplicação da súmula por distinguishing.

Os exemplos são muitos, como nos casos em que o recurso é da autarquia em face de sentença procedente. Nesta situação hipotética, mesmo que o advogado não apresente recurso, a base de cálculos da verba honorária será limitada à sentença, sem qualquer conflito de interesses do advogado e seu patrocinado.

STJ

Outro exemplo que pode ser verificado habitualmente em julgados ocorre quando a sentença de parcial procedência é reformada reconhecendo direito ao melhor benefício, a partir de recurso do advogado do segurado. Igualmente nesta hipótese não se configura o conflito de interesses entre o advogado e seu patrocinado. Nesta hipótese, em recente decisão, a 10º Turma do TRF-3 reconheceu a distinção com o tema para reconhecer que a base de cálculo dos honorários de sucumbência deve ser fixada quando o benefício for reconhecido por inteiro. Ilustra-se o referido entendimento abaixo:

(…) entendo que o termo final da base de cálculo dos honorários advocatícios deve levar em conta o momento em que o benefício foi reconhecido em sua inteireza, ou seja, inclusive com os reflexos decorrentes do reconhecimento da natureza  especial das atividades em sede recursal, o que somente ocorreu, no caso dos autos, na sessão de julgamento de 12.12.2023. Neste contexto, o termo final da base de cálculo dos honorários advocatícios deve ser em 12.12.2023 [11].

Não se está defendendo a superação da Súmula 111/STJ por overrulling. Pelo contrário, não se está discutindo a tese firmada pelo Tema 1.105/STJ. O que se defende é que para a aplicação do tema e consequentemente da Súmula 111/STJ é imperativo que seja verificado o contexto fático que validou a manutenção do referido verbete. E caso não se possa fazer a analogia pelo fato do contexto fático ser divergente, que se busque outra solução para o caso concreto, pois aquela constante no precedente seria inaplicável. Como já sustentado, por mais que os precedentes sejam vinculantes e devam ser observados pelos juízes e tribunais, a aplicação das soluções adotadas demanda adequação dos contextos fáticos, sob pena de afronta à coerência exigida pelo artigo 926 do CPC.

 


[1] RSSTJ, a. 4, (8): 59-101, junho 2010.

[2] REsp n. 187.766/SP, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 1/12/1998, DJ de 22/3/1999, p. 239.

[3] Súmula 76/TRF4: Os honorários advocatícios, nas ações previdenciárias, devem incidir somente sobre as parcelas vencidas até a data da sentença de procedência ou do acórdão que reforme a sentença de improcedência.

[4] SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário – 9ª. Ed. Re. Atual. Ampl. – Curitiba: Alteridade, 2021, pg. 633-634. Para Savaris: “A possibilidade de conflito de interesses não poderia ensejar a interpretação restritiva da norma processual civil, a ponto de se cristalizar um enunciado que supostamente teria a função de inibir motivação para a prática de patrocínio infiel (…) A razão invocada pelo STJ, se procedente, deveria ser estendida às causas de outras naturezas que igualmente veiculam pretensão de recebimento de prestações sucessivas no tempo (…) se ao tempo do início da execução, há ainda parcelas vencidas e não pagas, elas apenas podem ser consideradas vencidas, jamais vincendas.

[5] REsp n. 1.880.529/SP, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 8/3/2023, DJe de 27/3/2023

[6] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 27-28.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. Consultório Jurídico, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-23/observatorio-constitucional-jurisdicao-fundamentacao-dever-coerencia-integridade-cpc. Acesso em: 19 mai. 2024.

[8] FERRAZ, Taís Schilling. A temporalidade do precedente: retrospectividade, travessia e prospecção. In LUNARDI, Fabrício Castagna, KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino, FERRAZ, Taís Schilling (org.) O sistema de precedentes brasileiro : demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência — Brasília : Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2022. Pg. 61.

[9] ANAISSE, Paulo César Moy. O sistema de precedentes judiciais brasileiro: o stare decisis nacional. In LUNARDI, Fabrício Castagna, KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino, FERRAZ, Taís Schilling (org.) O sistema de precedentes brasileiro : demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência — Brasília : Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2022.Pg. 55-56.

[10] REsp n. 1.883.715/SP, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 8/3/2023, DJe de 27/3/2023.

[11] TRF 3ª Região, 10ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 5005155-80.2022.4.03.6183, Rel. Desembargador Federal NELSON DE FREITAS PORFIRIO JUNIOR, julgado em 25/04/2024, DJEN DATA: 30/04/2024

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