Opinião

Pauta de costumes e consecução das políticas públicas de democracia inclusiva

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6 de maio de 2024, 18h28

No post de sua conta no Instagram, de 27 de abril de 2024, o professor João Cezar de Castro Rocha [1] afirma que, se não houver resistência, em 15 anos não haverá mais democracia no mundo.

E após uma simples constatação da atual situação dos fatos vividos no mundo inteiro, vistos por diversos ângulos do conhecimento humano, da Realpolitik [2] ao direito, ou ainda, sob o cariz da “Normal Politics” observada por Canotilho [3], como aquela desenvolvida com base nas regras constitucionais, João Cezar de Castro Rocha pode estar correto nesse vaticínio.

Norberto Bobbio, em “O Futuro da Democracia” [4], observa que frêmitos ditatoriais estão sempre à espreita, mas, se considerarmos os poucos anos democráticos vividos, em comparação aos regimes de mitigação da liberdade que se sucederam em toda a história, parece que o frêmito é, na verdade, democrático, e não ditatorial, com todas as vênias possíveis a um de nossos maiores juristas.

Outro ponto abrasivo no debate é sob qual regime político poderíamos adentrar nessa discussão, o que, de fato, engendra a conclusão muito simples de que apenas no regime democrático este pequeno ensaio crítico jurídico seria possível, justamente porque o dissenso não é permitido em qualquer outro modelo.

Posta a base da controvérsia, mais especificamente na arquitetura das políticas públicas, cuja implementação exitosa depende, num sentido pragmático, mais da ação ou inação do grupo político que detém a representatividade política no momento, bem mais que as perspectivas de quem está na linha de frente, ou “no chão da fábrica”, sendo de conhecimento geral que as agendas públicas estão sendo dominadas pela chamada “pauta de costumes” [5], fenômeno em escala mundial que pode ser considerado como as incursões do Estado sobre a vida privada das pessoas.

Não é de hoje que a pauta de costumes permeia o cenário político. Simone de Beauvoir [6], ao investigar a rivalidade entre as próprias mulheres, precisamente sobre as agendas femininas após a Revolução Industrial, no século 19, observou que a pauta de costumes já fazia parte das reivindicações das feministas das classes abastadas, juntamente com o reconhecimento de direitos mais alinhados ao âmbito privado, como direito a herança, nome e divisão de bens, mas também incluíam a proibição do uso de bebidas alcoolicas, da literatura pornográfica e da prostituição, em contraposição à agenda feminista proletária, que tinha como objetivo o reconhecimento dos direitos sociais, mormente dos direitos trabalhistas, por motivos bem óbvios, diante da ausência de patrimônio das pessoas da base da sociedade. Ademais, por essa evidência, pode ser afirmado que a pauta de costumes está intrinsecamente ligada às mulheres, aos corpos femininos.

Spacca

Pensando o trinômio estruturante da sociedade como família-mercado-Estado [7], lida sob o viés materialista, histórico e dialético como patriarcado-colonialismo-neoliberalismo, a pauta de costumes se reporta incisivamente ao primeiro item: a família, avocando para si a determinação do modo de vida particular e da estrutura familiar, embora a contradição esteja justamente no argumento de liberdade atrelado à pauta de costumes. Todavia, analisando a questão com maior vagar, o fato de haver uma imposição sobre o modo de vida não se coaduna com nenhum conceito relativo à liberdade.

Inclusão

Mas qual seria o problema da inclusão da pauta de costumes no design das políticas públicas?

O primeiro seria o de delimitar o público-alvo da política pública, o que não serve ao propósito de universalidade, ou maior alcance possível da política pública empreendida. Muito embora seja correto afirmar que a política pública pode ter uma clientela específica, por exemplo, mulheres da faixa etária de 18 a 39 anos, com a finalidade de propagação de informações sobre métodos contraceptivos, a reverberação dos benefícios dessa política pública hipotética pode ser constatada em todo o tecido social.

Nesse exemplo fictício, em exercício argumentativo, é simples pensar quais seriam tais benefícios, como promoção da unidade familiar planejada, mitigação da propagação de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), diminuição de casos de gravidez indesejada, fomento à saúde da mulher, tratamento preventivo de diversas doenças, como câncer, por exemplo, e assim podem ser imaginados vários benefícios que, ao fim e ao cabo, se integrariam à sociedade como um todo.

Mas, ainda nesse cenário fantasioso, a inclusão de vedações morais ou religiosas a essa política pública meramente informativa e esclarecedora, de modo a afastar sua implementação, traria uma série de implicações que trariam mais malefícios que benefícios à sociedade.

Veja-se que o fato de a política pública estar disponível não significa de plano que seja compulsória. Voltando ao exemplo fictício, toda mulher de 18 a 39 anos poderia se inscrever no programa de informação e esclarecimento sobre métodos contraceptivos. Aquelas que não o desejarem, por questões íntimas relacionadas à moral familiar, ou impedidas por suas crenças religiosas, simplesmente não ingressam no programa.

Note-se que a diferença está justamente no elemento volitivo. O dever estatal de implementar políticas públicas de saúde está posto, é visível no texto constitucional de 1988 e não pode ser afastado por questões momentâneas e pontuais de um determinado ambiente político ou agrupação social de momento.

Por isso Maria Paula Bucci [8] faz de maneira precisa a distinção entre políticas públicas de Estado e de governo, estando estas submetidas ao alvedrio do momento, enquanto aquelas são inerentes à estrutura medular do próprio Estado, como é o caso das políticas públicas que envolvem o direito à saúde, plasmadas na Constituição de 1988.

Por isso mesmo, a pauta de costumes não deve estar no nascimento da política pública, mas apenas e somente na sua conclusão, no final do processo, manifestada como vontade individual do eventual beneficiário daquela política. A retirada do elemento da vontade, ou o uso do proselitismo para determinar o direito da escolha de cada beneficiário em potencial retira o propósito da política pública, bem como a torna inconstitucional, por impedir o acesso à saúde, como no exemplo fictício estudado.

Políticas públicas na democracia

É justamente nesse ponto nevrálgico de manifestação da vontade em contraponto a uma série de imposições à vida privada que a questão alcança a implementação das políticas públicas num ambiente democrático inclusivo, porque, a partir do momento em que o Estado gadunha a vontade individual, surge uma rachadura para além do ambiente familiar: os outros elementos, mercado e o próprio Estado, também são atingidos e há muitos processos que podem surgir a partir dessa verdadeira mobilização restritiva de direitos democráticos inclusivos.

Se pensarmos o mercado como o ecossistema neoliberal, ou capitalismo tardio, hoje predominante no mundo, e os reflexos das disposições sobre a vida privada no panorama econômico, a controvérsia se torna preocupante e contraditória.

Essa contradição está justamente no subjetivismo neoliberal, do individualismo como mote e única possibilidade de vivência e prática da liberdade, como observa Byung-Chul Han [9], que sequer inclui o elemento familiar, aquele elemento social que ao menos dá potencialmente ao indivíduo o alento emocional e rede de apoio, na medida em que o sujeito deve desempenhar individualmente e alcançar seus objetivos, o que se choca, por exemplo, com várias doutrinas cristãs.

A partir do momento em que aquilo que se convencionou chamar de vida boa passou a ser uma necessidade que “resulta apenas de coerções sistêmicas a partir da lógica do sucesso mercantil quantificável” [10], a saúde, por exemplo, é condição para o alcance dessa lógica enraizada na sociedade atual. Mas como ter um desempenho esperado pelo mercado, ou pelo neoliberalismo, estando doente?

Retomando o exemplo fictício de política pública, e sabendo-se que a mulher enfrenta os maiores problemas no mercado de trabalho após o nascimento do primeiro filho, como constatado por Claudia Goldin [11], ganhadora solo do Nobel de Economia de 2023, a retirada do elemento volitivo da escolha de engravidar, do exercício da maternidade e da maternagem forçadas, pode retirar dos mecanismos atinentes ao mercado a potencialidade de serventia do trabalho daquela mulher, tanto quanto produtora, como na qualidade de consumidora.

Se a lógica do mercado é apenas produzir “gente”, no sentido mesmo descrito por Eduardo Galeano [12], então a discussão acaba neste ponto e até aqui se basta.

Porém, se a sociedade pretende ser algo mais que uma máquina de mero fornecimento de mão de obra e conseguir alcançar um modo de vida inclusivo, num ambiente democrático, a questão vai um pouco mais além, e o debate precisa ser aprofundado para que o proselitismo moral e religioso se desapegue da modelagem das políticas públicas.

O tema é controverso, extenso e tem reflexos profundos no tecido social, e, portanto, no direito. Mas precisa ser debatido no ambiente democrático inclusivo, com a finalidade de que se evite a produção de políticas públicas desastrosas e ineficientes.

 


[1] @joaorocha1965

[2] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição (tradução Gilmar Ferreira Mendes). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991.

[3] CANOTILHO, JJ Gomes. Direto Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina. 7ª ed., 2003.

[4] BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra. 7ª ed., 2000.

[5] MENESES, AAM. Políticas Públicas Democráticas Inclusivas de Gênero na Proposta de Constituição Chilena Rechaçada em 2022”. Dissertação de Mestrado. PPGD-UNIRIO. 2024.

[6] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5ª ed., volume 1, 2019.

[7] PÉRIVIER, Hélène. A Economia Feminista: Por Que a Ciência Econômica Precisa do Feminismo e Vice-Versa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 2023.

[8] BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2021.

[9] BYUNG-CHUL, Han. Psicopolítica: O Neoliberalismo e as Novas Técnicas de Poder. Belo Horizonte: Âyiné. 10ª ed., 2023.

[10] BYUNG-CHUL, Han. Psicopolítica: O Neoliberalismo e as Novas Técnicas de Poder. Belo Horizonte: Âyiné. 10ª ed., 2023, p. 47.

[11] https://www.weforum.org/

[12] GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Porto Alegre: LP&M, 2022.

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