Diário de Classe

A cartografia do Direito e a grafia das Teorias

Autor

  • é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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6 de janeiro de 2024, 8h00

Uma lição que Ronald Dworkin expressa em suas obras é a de que metáforas, analogias e aforismos podem ser muito úteis para explicar ideias. Juiz Hércules e romance em cadeia são apenas alguns exemplos utilizados pelo autor. Contudo, vale lembrar que Dworkin também afirmava que analogias são sempre perigosas e que metáforas seriam mais ainda [1]. Nesse sentido, o perigo de usar tais figuras de linguagem é muito simples e pernicioso: criarmos mitologias que substituam a própria explicação e um jogo de linguagem que pouco ou nada diz. Sendo, no limite, uma doxa [2] e eis aqui uma advertência salutar.

Não obstante, existem bons exemplos de como algumas histórias conseguem ilustrar o significado da Constituição e dos seus princípios. A jornada de Ulisses para voltar à Ítaca no primeiro caso [3] e o julgamento de Orestes no segundo caso [4]. Ao passo que a jornada de Ulisses e o mastro de seu navio representam o significado da Constituição contra o canto das sereias, o julgamento de Orestes e absolvição concedida em razão do voto de empate de Atena representam o verdadeiro significado do in dubio pro reo enquanto uma conquista da autonomia do Direito [5].

Mas sem desprezar a advertência dworkiniana que foi mencionada mais acima é que este texto se inspira no jurista para também apresentar uma metáfora que consiga dar explicabilidade ao que é uma Teoria. Nessa senda, e sobre este mesmo tema que é a explicabilidade, autores como Lenio Streck [6] utilizam-se de algo chamado de metáfora do mapa. Narrativa essa que, com algumas alterações, segue brevemente recontada.

Imaginemos o seguinte cenário: em tempos passados, existia um rei que queria um mapa do seu reinado. Ele queria algo com o que contar para administrar suas terras e em vista disso é que chamou o seu cartógrafo de confiança. Fez o pedido e teve retorno alguns dias depois. Entregue o mapa, o rei ficou insatisfeito. Afinal, como ele poderia administrar suas terras caso não soubesse quem são seus vizinhos e quais seriam as ameaças ao seu reinado. Outro mapa foi requerido e mais uma vez o rei ficou insatisfeito. Dessa vez ele queria que o mapa contivesse o relevo das suas terras para melhor compreender para onde expandir e mais uma vez o cartógrafo realizou o serviço. Mas se acredite ou não, mais uma vez o rei ficou insatisfeito. Agora ele queria a vegetação para saber onde explorar e o mapa foi feito mais uma vez. Em seguida e vez após vez o rei foi exigindo novos detalhes que foram sendo incluídos. Meses se passaram e o cartógrafo já exausto entregou um último mapa. Sendo que outra vez mais o monarca ficou insatisfeito… Dessa vez ele queria um mapa da própria realidade e dessa vez o cartógrafo se negou a realizar o serviço. Nenhum mapa poderia representar a realidade, disse ele. Afinal, se isso fosse possível, esse mapa seria do tamanho da própria realidade. Ao fim e ao cabo, esse serviço não poderia ser realizado porque mapa/mundo, real/ideal e descrição/realidade jamais são iguais.

Em outros termos, a metáfora do mapa traduz a ideia de que qualquer pretensão explicativa sobre o mundo jamais poderá ser totalizante e daí porque que insistir em aprisionar o mundo em proposições nada mais é do que confundir a estrutura de nossos discursos com a estrutura da realidade [7]. Assim sendo, o mundo não é um mapa. O mundo não está no mapa. E o mapa não é o mundo. Assim como as palavras não refletem a essência das coisas [8].

No fundo, portanto, toda teorização é uma tentativa de dar explicabilidade às nossas compreensões sobre o mundo. Nesse contexto, veja-se que nem mesmo a física newtoniana consegue explicar diversos fenômenos inerentes à fisicalidade e isto não a torna falsa (p. ex. astrofísica). Ao invés disso, significa que seus termos abarcam uma fração daquilo que compreendemos.

Retomando a metáfora do mapa, teorias em geral são algo que precisamos para organizarmos os sentidos e para projetarmos horizontes [9]. Caso existisse um mapa (leia-se teoria) tão perfeito que pudesse mostrar as coisas exatamente como elas são (leia-se realidade), ele já não seria mais um mapa e tornar-se-ia a própria coisa que pretende representar. Assim, dizer algo sobre o mundo nunca é dizer o mundo. Agora, caso não existisse nenhum mapa/teoria, seríamos cegos para tudo aquilo que estivesse na nossa frente e como aduz Streck uma pessoa sem horizontes é aquela que não consegue ver nada além das coisas imediatas. Ela diz: “é assim mesmo[10].

Por conseguinte, veja-se que assim como os textos, as teorias não são tudo; mas também não podem ser nada. Pois nenhum mapa serve para tudo e nenhum mapa serve para nada. Se cruzar o oceano atlântico sem nenhum mapa talvez pareça uma ideia desaconselhável, lidar com o fenômeno jurídico sem qualquer Teoria não poderia ser diferente. Afinal, saber apontar uma decisão como (in)correta e uma norma como (in)constitucional é algo que antes depende de uma teorização sobre qual é o papel da jurisdição.

Num plano menos abstrato, isto quer dizer que toda teorização (jurídica) é produto do seu tempo e dos seus horizontes, bem como das suas limitações e das suas pretensões. Nos dizeres de Hegel, resume seu tempo em pensamentos [11].

Pense-se, nesse sentido, no seguinte exemplo: quando do julgamento das ADCs 43, 44 e 54 pelo Supremo Tribunal Federal, não houve unanimidade. Considerando que cito este caso apenas para que o leitor consiga se situar, vale lembrar que o que estava em jogo era a (in)compatibilidade do artigo 283 do Código de Processo Penal com o artigo 5º, LVII, da Constituição, que veda a chamada execução provisória de sentença penal condenatória. E decidiu-se pela compatibilidade. Novamente passou a valer o entendimento de que a prisão a partir da segunda instância é inconstitucional. Pois bem. Concordemos ou não com a afirmação de que um país em que venceu por um voto a declaração de constitucionalidade da própria Constituição viveu dias insanos [12], os ministros do STF decidiram por 6 a 5. Mas como? Será que apenas seis ministros estudaram Direito e os demais não teriam? Claro que não. O que o placar simboliza é que existem desacordos teóricos sobre o Direito [13] (lembre-se que não existia questão de fato: Ações Diretas de Constitucionalidade são ações sem rosto) e que mesmo os ministros de um tribunal eminentemente constitucional podem divergir sobre o significado da Constituição. Tudo isso porque na prática, é impossível refletir sobre a resposta correta a questões de direito a menos que se tenha refletido profundamente [14]. Eis o papel da teoria. O Direito não é um fato bruto no mundo e o Direito só é quando interpretado. Dizer se o Supremo acertou ou errou quando julgou as ADCs 43, 44 e 54 é, inicialmente, um juízo que só pode ser realizado a partir de um marco teórico.

Diante de tudo que foi sendo acrescentado, retomemos a metáfora do mapa para (re)pensar o Direito. Seja qual for a pensamento jurídico que conduz as nossas reflexões, não é preciso muito para perceber que o Direito tem caminhos e descaminhos (ativismo judicial, arbitrariedade, subjetivismo, decisionismo, inefetividade dos Direitos Fundamentais, regimes iníquos etc.). Ao mesmo tempo que existem caminhos pavimentados pela tradição que consagrou boas ideais como o Estado democrático de Direito, também existem problemas que acometem o fenômeno jurídico. Em face disso é que o Direito pode ser compreendido também como um labirinto.

Da realização dessa analogia é que finalizo: toda e qualquer teoria nada mais é do que um mapa que tenta superar os descaminhos do Direito. Sendo o próprio Direito um fenômeno complexo, existem teorias e “Teorias”. Daí porque o que se está afirmando não é que toda teorização pode ser equiparada. O labirinto está aí com todos seus problemas, riscos e perigos. Evitá-los e superá-los é o caminho de toda boa teorização. Por tudo isso, existem mapas e Mapas. Se alguns — os mapas — prometem atalhos; e isso prova muita (pouca) coisa. Alguns outros — os Mapas — anunciam um caminho; e isso prova muito mais.

Ao fim e cabo, lidar com qualquer labirinto sem um mapa adequado é perder-se em suas bifurcações e em seus becos sem saída. Isto porque aquele que sequer sabe o que é um beco sem saída (o subjetivismo, por exemplo) tende a aceitá-lo como um fato natural e esta é a sina de desprezar a condição teórica que antepara as razões de quaisquer enunciados. Aproximando tudo isso de Platão e do Mito da Caverna [15], juristas que lidam com o Direito sem qualquer teorização são como aqueles que veem as sombras e as sacralizam sem perceber que desde-sempre estavam sob o jugo de um cabresto e do senso comum.

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[1] DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 80.

[2] Nota explicativa: “Na filosofia clássica, sobretudo em Platão e Aristóteles, a opinião (doxa) opõe-se à ciência (episteme) e ao pensamento racional (dianoia, noesis), sendo originária dos sentidos e portanto sujeita à variação, à ilusão e, assim, ao erro; ao contrário da ciência, que se funda na razão”. In: MARCONDES, Danilo; JAPIASSU, Hilton. Dicionário básico de filosofia. 5. ed. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 260.

[3] Nota explicativa: “Há uma metáfora – que circula há anos – interessante para explicar o valor da Constituição. Ulisses, voltando de Ítaca, pede para seus marinheiros que o amarrem no mastro do navio. E lhes ordena que, sob hipótese alguma obedeçam qualquer gesto seu no sentido de que o soltem. Só devem obedecer à primeira ordem: ‘amarrem-me ao mastro’. A sobrevivência de Ulisses reside no cumprimento da primeira ordem. Porque Ulisses sabe que, caso contrário, morrerá. E por quê? Porque ele não resistirá ao canto das sereias. As maiorias são como as sereias. Tem um canto sedutor. Quem não se proteger, pode sucumbir. Ulisses se salvou porque ficou amarrado às correntes. Essas correntes são a segurança de Ulisses. A Constituição é como as correntes, ela sustenta as leis”. In: STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 114-115.

[4] Cf: ÉSQUILO. Orésteia. Tradução de Mateus Alves Rodrigues. Dois Irmãos: Clube de Literatura Clássica, 2022.

[5] Nota explicativa: a despeito do tema voltar em capítulos futuros, importa assentar algumas premissas importantes. Em nome de todos aqueles trabalhos que articulam a ideia, vale referir a obra que resultou da tese apresentada por Georges Abboud para a obtenção de livre-docência na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Nesse sentido, autonomia do direito “deve ser compreendida como o paradigma dentro do qual a decisão passa a ser dada em nome do direito, com base em uma linguagem jurídica autônoma, e por meio de argumentos e fundamentos distintos de outras formas de discursos, como o econômico, político e religioso”. In: ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-moderno. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. p. 197.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito II: como o senso comum pode nos enganar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 19.

[7] TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete. Por dentro da lei: direito, narrativa e ficção. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 82.

[8] TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete. Por dentro da lei. op. cit. p. 82.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Para compreender direito: a hermenêutica jurídica. 2. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022. p. 46.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Para compreender direito. op. cit. p. 46.

[11] G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts (1821), 1970, prefácio, p. 26. In: VESTING, Thomas. Teoria do direito: uma introdução. São Paulo: Saraiva, 2015.

[12] AZEVEDO, Reinaldo. Vitória magra em dias insanos. Folha de São Paulo, 8 de agosto de 2019, São Paulo. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2019/11/vitoria-magra-em-dias-insanos.shtml>. Acesso em 11 de agosto de 2022.

[13] Cf: DWORKIN. Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[14] DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. op. cit. p. 72-73.

[15] Nota explicativa: “Este mito é construído a partir de três momentos fundamentais: o primeiro consiste em se libertar dos grilhões que aprisionam o indivíduo no mundo sensível, cujas imagens refletidas pela fogueira e captadas pelos seus sentidos são sua única fonte de conhecimento. No afã de se encontrar elementos para além de sua imagem simplificada, a liberdade proporciona o conhecimento das coisas como realmente são, isto é, para além das projeções da fogueira e opiniões desprovidas de cientificidade. O segundo momento é da saída da caverna. Ao conseguir deixar seus limites, o limite do cognoscível, o indivíduo ascende rumo à contemplação das essências de todas as coisas. O terceiro momento é o do retorno à caverna. Este homem que contemplou as verdades é o filósofo, que é lançado em descrédito por expor tudo aquilo que contemplou. A parábola encontra seu sentido na filosofia platônica por indicar que apenas os que contemplaram a essência das coisas seriam legitimados para dar sentido à política ao governar a Callipolis”. In: PANSIERI, Flávio. A Liberdade no pensamento Ocidental. Tomo I. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p.16.

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição. Membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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