Diário de Classe

Qual verdade busca o processo penal?

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13 de julho de 2024, 8h00

O papel da verdade no direito processual é um dos temas mais espinhosos da ciência jurídica processual. Especificamente em relação ao processo penal, o senso comum teórico acostumou-se a dizer que a finalidade do processo penal consistiria em buscar a verdade real. Reconhecendo a impossibilidade de este fim ser alcançado, parcela considerável da doutrina nacional mais moderna apostou em conceitos epistemológicos de verdade, conferindo-lhes, no entanto, tratamento intermediário, insuficiente para conter o protagonismo judicial, que ainda hoje se vale do princípio inquisitorial da verdade real na aplicação do Direito.

Tratar da verdade no processo penal é tarefa porosa e controversa. É claro que a complexidade do tema e a dificuldade em compreendê-lo poderia explicar o problema. Mas isso, por si só, não nos parece suficiente para esclarecer a forma como a matéria ainda é tratada pela doutrina e jurisprudência nacionais.

Antecipando o objeto deste singelo texto, entendemos que um dos fatores que pode explicar o resquício da pretensão da busca da verdade real ou verdade como correspondência no processo refere-se à ausência de diálogo da maior parte dos processualistas penais com outras áreas do saber, especialmente a Filosofia e a Teoria do Direito [1]. Autoreferente e inflexível, ainda hoje o discurso dominante no processual penal é incapaz de permitir uma abertura desta disciplina a outros ramos do saber.

Álibi

A partir da Crítica Hermenêutica do Direito, dentro dos limites deste artigo, tentaremos demonstrar nas linhas que seguem que este “mantra”, reproduzido amiúde em inúmeros manuais de processo penal, fora incorporado à jurisprudência brasileira e que embora respeitável parcela da doutrina processual penal entenda superada a noção, ideia ou conceito de verdade real – sustentando, para tanto, relativizações da verdade – e defenda ser impertinente tratar do tema ora debatido ou até mesmo a supressão desta categoria, nossos tribunais continuam o aplicando em suas decisões, empregando-o em muitos casos como álibi retórico legitimador de decisões antidemocráticas e supressoras de garantias constitucionais.

Vejamos como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça permanecem reféns de categorias inquisitórias como o “princípio da verdade real” e a “busca da verdade real”.

Fundando-se na lógica de que a confissão tem como objetivo colaborar com o Judiciário na elucidação da verdade real, a 1ª Turma do STF entendeu descabida a atenuante da confissão espontânea no crime de tráfico de drogas envolvendo o transporte de vultosa quantidade de droga [2]. A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, partindo da premissa de que a finalidade maior do processo penal seria a busca da verdade real, em decisão proferida em 2021, criou exceções à regra de fixação da competência do local do crime – em postura claramente ativista e pragmática –, concluindo que “em situações excepcionais, a jurisprudência desta corte tem admitido a fixação da competência para o julgamento do delito no local onde tiveram início os atos executórios, em nome da facilidade para a coleta de provas e para a instrução do processo, tendo em conta os princípios que atendem à finalidade maior do processo que é a busca da verdade real” [3].

Mas esse resquício inquisitório, evidentemente, não se limita aos tribunais superiores, refletindo-se também em nosso dia a dia no foro criminal, na crença subjetiva da magistratura e do ministério público de que seria possível alcançar a tal verdade real. Seguramente, quem exerce o múnus da advocacia, já se deparou em algum momento em audiências de instrução e julgamento ou até mesmo interrogatórios com posturas de magistrados ou membros do MP pedindo para que o réu se sentasse de frente de quem julga ou de quem acusa, como se a partir disso fosse possível extrair “a verdade dos fatos”.

Meia-verdade não é a verdade

E como o fenômeno é tratado pela dogmática? Embora tenhamos hoje processualistas que avancem o tratamento da matéria e rompam com a ideia de que seria possível alcançar a verdade real e que esta deve ser perseguida a qualquer custo, porque corresponderia à finalidade do processo penal, eles não conseguiram se desprender a noções relativas de verdade como correspondência [4], e a parcela que tenta se desgarrar dessas amarras ou não trabalha com o conceito de verdade, suprimindo-o de suas pesquisas, por ela ser inalcançável, ou entende se tratar de tema impertinente em razão dos novos rumos que a ciência processual penal está tomando [5].

Entendemos problemática a ideia de verdade como correspondência porque ao se relativizar a ideia (noção ou conceito) de verdade, ela se transforma em outra coisa que não a verdade. Considerando que epistemologia é conhecimento, e, pois, nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho,“se a verdade está no todo, e epistemologicamente não se consegue atingir esse todo, quando dela se fala não é dela que se trata. Simples assim, de novo” [6]. Ainda nas palavras deste autor, mas em outro de seus escritos:

“A verdade é a verdade; e a meia-verdade é a meia-verdade. Logo, não se trata de saber se um relógio é um relógio (está-se de acordo sobre tal objeto, ou pelo menos se pensa assim), mas de ser impossível saber todas as respostas sobre ele. E isto porque serão sempre-meias-respostas; como se fossem meios relógios; ou apenas partes-de-um relógio. E meios relógios não são relógios” [7].

Assim como meios relógios não podem ser considerados relógios, também a meia-verdade não é a verdade, na medida em que a verdade é a verdade. Portanto, “a verdade do processo penal nunca é a Verdade; e nem a verdade, se vista como uma parte; uma parcialidade”.

Ora, quando o juiz é provocado ao acertamento de um caso penal, o evento – a suposta prática de infração penal imputada pela acusação –, segundo Salah Khaled Jr. [8], pertence a um tempo que “já passou, não volta mais e que não tem como ser reproduzido de forma alguma”. Nesse contexto, a verdade como correspondência consistiria em um “excesso epistêmico inaceitável”, uma vez que a verdade produzida narrativamente pelo julgador se refere a algo ontologicamente distinto do passado que ele deseja representar, “motivo pelo qual restará [ao juiz] somente representância: assim como o historiador, o juiz será inevitavelmente um devedor insolvente em relação ao passado”.

Decisionismo

E aí surge um ponto crítico a um dos grandes problemas aqui postos: admitir-se que o julgador possa produzir uma espécie de “verdade” é perigoso, pois, além de se relativizar a própria verdade – pois imaginem quantas “verdades” não podem ser produzidas neste contexto –, flerta com o que nós, adeptos da Crítica Hermenêutica do Direito, combatemos: a discricionariedade judicial, o decisionismo e o autoritarismo. Isso porque esta mesma crença de que se pode alcançar a verdade – ou alguma espécie de verdade – dentro do processo é o que legitima os arbítrios vistos diariamente no foro, denunciados de há muito pela CHD.

Isto não faz também com que sejamos adeptos de um all in epistêmico, onde se a verdade é um problema basta que não a admitamos que o problema se resolve(rá), pois aí cairemos no paradoxo que a própria CHD critica, que é o paradigma posto a partir de Nietzche de que “não existem fatos, somente interpretações”. É o que adverte Lenio Streck [9], ao afirmar que

“O mal-estar da civilização jurídica é a flambagem dos sentidos que os juristas fazem. Pensam que podem atribuir sentidos livremente. Descobriram o Santo Graal da “dação de sentidos”: basta nominar. Feito um novo Gênesis. Algo como “no princípio o que vale é o que eu digo sobre as coisas”. Não há tradição. Não há história. Nada é verdadeiro. Os juristas neoprofe(s)tas [1] que apresentam a “boa nova” de que não existe(m) verdade(s) correm o risco de serem comidos pela primeira onça que encontrarem. Afinal, para um relativista, a onça pode existir…ou não. Depende. Porque a onça é relativa. Com base em Nietszche, ficam repetindo algo similar à sua máxima: “fatos não há; só há interpretações”. Logo, as onças não existem; só há a narrativa do e sobre as onças. Para os relativistas jurídicos, o que aconteceu com o fotógrafo Sérgio Silva (ver aqui) não foi um fato; foi uma ilusão. Tudo é relativo. O tiro no olho não existiu. O que existiu foi apenas uma interpretação errada sobre o tiro que lhe furou o olho. Algo como “azar o seu por ter dado mole ao assaltante”. Por isso tudo, inverto a máxima de Nietzsche e afirmo: Contra essa gente que diz “fatos não há, só há interpretações”, eu digo: só-existem-interpretações-porque-existem-fatos!”

É possível falar em verdade no processo penal?

O que buscamos mostrar neste texto é a complexidade sobre o tema verdade e processo e os riscos a partir desta complexidade, basta ver, por exemplo, que, em pleno 2024, ainda há quem defenda que o juiz possa fazer livre apreciação da prova no processo penal, ou que ainda sustente o livre convencimento motivado, ignorando as inovações trazidas pelo CPC – influenciadas pela própria Crítica Hermenêutica do Direito –  que romperam com este velho paradigma.

Voltando, porém, ao objeto central do texto: seria possível falar em verdade ou em alguma verdade no processo penal? Lenio Streck nos adverte para que não caiamos no risco de simplesmente dizer que não há verdades, ou que a verdade não existe, para tanto nos alerta o professor [10]

“Se a verdade não existe, então é por isso mesmo que não é verdadeiro dizer que a verdade não existe. Como mencionei anteriormente, o autor do enunciado cai em um paradoxo. E, como também sabemos, paradoxos são coisas sobre as quais não podemos decidir (assim nos ensinam os sistêmicos). Por exemplo, o mais famoso paradoxo é o do mentiroso. “Todos os que estão na sala são mentirosos. Eu, quem disse a frase, estou na sala, logo, sou mentiroso e acabo de dizer uma mentira, cujo contrário é a verdade”.

De fato, enquanto juristas, somos um produto do nosso tempo e não podemos, por esse motivo, nos desconectar da realidade que aflige o cotidiano jurídico. Por outro lado, tais críticas reafirmam a importância da denúncia que fizemos ao início do texto, quando dissemos que a indeterminação da ideia, noção ou conceito de verdade decorre da ausência de diálogo da dogmática processual penal com a Filosofia, porque é ela que conferirá o aporte teórico. Neste sentido, socorrendo-nos ainda a Streck [11], temos que

“Para ser mais incisivo: a história da Filosofia e, do seu modo peculiar, a dogmática jurídica, sempre trabalharam a verdade como a relação entre um juízo ideal construído pelo sujeito sobre algo real, posto no mundo. Assim, ao centralizar na subjetividade (que é também um ser subsistente, como os objetos sobre os quais se fazem juízos, como bem expõe Heidegger nos volumes sobre Nietzsche), acaba-se limitando as possibilidades da verdade. Partindo desse paradigma, estamos sempre limitados a falar a verdade (fazer juízo é um exemplo) sobre representações ou conteúdos da consciência, ignorando a realidade na qual sempre estivemos inseridos.”

Tema permanece latente

Não pretendemos, com este pequeno texto, salvar sistemas ou institutos defasados, mas demonstrar que, gostemos ou não, concordemos ou não a respeito da busca incessante da verdade aplicada ao processo, ela permanece sendo um obstáculo à concretização do sistema acusatório em nosso sistema processual penal.

Isso porque, enquanto mantivermos inalterada a ideia de busca da verdade – seja ela real ou correspondente – nas mãos do Judiciário, nossos tribunais continuarão se valendo deste espantalho jurídico para julgar ações e recursos e, como esse artifício lhes permite fazer escolhas discricionárias – por vezes ativistas e arbitrárias –, permanecerão como protagonistas do sistema, e o sistema acusatório, que deveria ser o mecanismo substitutivo deste protagonismo e que tivera sua constitucionalidade reafirmada pelo STF recentemente, continuará não passando de uma mera formalidade.

Apesar de, academicamente, parecer que o tema da busca da verdade – tantas vezes reproduzido automático e acriticamente – esteja desgastado e até mesmo superado, entendemos que ele permanece latente no interior da operacionalização do Direito. Com efeito, é justamente quando uma determinada categoria jurídica se mostra epistemologicamente superada ou controlada que garantias constitucionais vão sendo suprimidas por órgãos judiciais e nada é feito para que a situação concreta seja contornada. Luís Alberto Warat e Albano Marcos Bastos Pêpe identificaram esse problema há vinte oito anos:

“Quando observamos as formas pelas quais a filosofia é utilizada na prática do Direito, verificamos como muitos elementos da tradição jurídica aparentemente rejeitados pelo pensamento jusfilosófico manifestam-se. Eles acabam constituindo um conjunto de opiniões que permanecem de modo latente no discurso aparentemente controlado pela epistemologia. Trata-se de um senso comum teórico que age no interior dos discursos epistemológicos do Direito para transformá-lo numa ideologia” [6].

Portanto, ainda que parcela considerável de processualistas penais diga ter superado a categoria de verdade real, a crença nela permanece enraizada em boa parte da nossa doutrina. Quanto aos processualistas que, para superá-la, relativizam sua noção ou conceito, articulando a ideia de verdade correspondente – relativa, aproximativa –, vimos que a tese se mostra insustentável, além de se opor às próprias bases epistemológicas articuladas pelos que a adotam.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos nossos tribunais, que, explícita ou implicitamente, se valem até hoje da busca da verdade real – que assumiu contornos principiológico em nosso judiciário – para fundamentar verdadeiros ativismos judiciais, bem como manter resquícios inquisitórios, uma vez que se segue confiando no protagonismo do juiz na condução do processo. Portanto, enquanto a doutrina insistir no argumento de que a verdade é “inalcançável” ou reforçar as relativizações da verdade – como se isso fosse possível –, o Poder Judiciário continuará se valendo deste conceito indeterminado para sustentar decisões arbitrárias.

Eis então a razão da importância do diálogo do Direito com a filosofia, e mais: a pequena parte do problema que aqui tentamos demonstrar só faz com que reafirmemos, guiados pelas premissas da CHD pela necessidade urgente da aplicação de uma teoria de decisão no Direito brasileiro, como apontam, por exemplo Quarelli e Bernsts [12]

“Tendo assimilado a importância de uma Teoria da Decisão, a proposta hermenêutica delineada por Streck se traduz na tese da resposta adequada à Constituição enquanto aquela que segue a coerência e a integridade do Direito a partir de uma fundamentação minuciosa, respeitando a autonomia do Direito e por consequência, evitando a discricionariedade.”

A importância da Teoria da Decisão aqui é clara: pois com ela(s) – a teoria da decisão e uma resposta constitucionalmente adequada – já seriam excelentes motes de bloqueio à concepção de que se pode alcançar a verdade real dentro do processo, combatendo assim o discricionarismo e o senso comum teórico.

 


[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, pp. 378-381.

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Prova, meios de prova e a questão da “verdade”. In:  COUTINHO, Aldacy Rachid. Bate papo jurídico [livro eletrônico]. 1. Ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 134.

[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A dogmática jurídica a partir de uma nova visão da filosofia do direito. In: Empório do Direito. Disponível em: <A dogmática jurídica a partir de uma nova visão da filosofia do direito – Empório do Direito (emporiododireito.com.br)>. Acesso em: 05/07/2024.

[4] KHALED JR., Salah H. A produção analógica da verdade no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, n. 1, p. 166-184, 2015.

[6] WARAT, Luís Alberto; PÊPE, Albano Marcos Bastos. Filosofia do Direito: uma introdução crítica. São Paulo: Moderna, 1996, p. 86.

[1] Nesse sentido, indicamos a coluna do colega Luã Jung aqui no ConJur, Filosofia no Direito (2): o problema da verdade. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-jan-15/diario-classe-filosofia-direito-problema-verdade/> .

[2] Habeas Corpus 101.861, rel. min. Marco Aurélio, 1ª T, DJE de 9-5-2011.

[3] CC 177.882-PR, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 26/05/2021. No mesmo sentido, ver: CC 151.836/GO, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, DJe 26/6/2017.

[4] Veja-se, por exemplo, o que diz BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, pp. 378-381.

[5] Parece ser o caso de BORGES, Clara Maria Roman. Um olhar para além dos sistemas processuais penais, pp. 7-10. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 104. p. 147 e seguintes.

[6] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Prova, meios de prova e a questão da “verdade”. In:  COUTINHO, Aldacy Rachid. Bate papo jurídico [livro eletrônico]. 1. Ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 134.

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A dogmática jurídica a partir de uma nova visão da filosofia do direito. In: Empório do Direito. Disponível em: <A dogmática jurídica a partir de uma nova visão da filosofia do direito – Empório do Direito (emporiododireito.com.br)>. Acesso em: 05/07/2024.

[8] KHALED JR., Salah H. A produção analógica da verdade no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, n. 1, p. 166-184, 2015.

[9] STRECK, Lenio Luiz. O que é verdade ou é tudo relativo? O que dizer a quem perdeu um olho? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-out-02/senso-incomum-verdade-tudo-relativo-dizer-quem-perdeu-olho/

[10] STRECK, Lenio Luiz. Um manifesto antirrelativista: só há interpretações porque existem fatos, regras e princípios a serem interpretados. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 31, n. 199, p. 53-71, nov./dez. 2023.

[11] Ibidem.

[12] QUARELLI, Vinícius. BERNSTS, Luísa Giuliani. Teoria da Decisão e CHD: as três perguntas fundamentais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-23/diario-classe-teoria-decisao-chd-tres-perguntas-fundamentais/

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