Opinião

Eficiência e efetividade do exercício jurisdicional e abuso do direito à prova

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16 de março de 2024, 11h20

Mesmo sem um estudo científico que legitime essa afirmação, parece lícito reconhecer a existência de um anseio, comum a todo usuário do sistema jurisdicional, por um aumento não só da eficiência, mas também da própria efetividade na prestação jurisdicional, no sentido de se entregar uma tutela célere e eficaz.

Sem hiperbolismos ou exageros, também não parece haver impropriedade em afirmar que tal anseio é uma das principais demandas por parte dos jurisdicionados e, consequentemente, um dos grandes desafios que orientam o presente e o futuro do exercício da jurisdição.

Nesse sentido, muito se discute a respeito de formas de não apenas “obter a maior produção possível com o menor uso dos recursos disponíveis” (eficiência), mas também “a qualidade de se produzir um impacto ou efeito…de forma satisfatória” (efetividade) [1].

Afinal, se, por um lado, a Constituição assegura aos cidadãos o direito de ação e de defesa e, de um modo geral, de acesso à justiça, por outro, e justamente como forma de materialização de tais direitos, emerge a necessidade (ou melhor, o dever) de se assegurar que a tutela jurisdicional seja útil e eficiente no tempo e no espaço.

Todavia, e diferentemente do que poderia se conjecturar, tal dever não está restrito apenas aos operadores do direito, estendendo-se a todos os sujeitos processuais, inclusive as próprias partes envolvidas no litígio (como, aliás, determina o artigo 6º do CPC ao positivar que todos que participam do processo devem “cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”).

Naturalmente, tal dever, comum a todos os sujeitos, é verificável não somente antes ou contemporaneamente à propositura de determinada medida judicial (no sentido de não se propor medidas frívolas), mas também, e principalmente, no decorrer de todo o trâmite processual, no que se inclui, portanto, a atividade probatória.

Nesse sentido, o Código de Processo Civil, em linha com o artigo 5º, LV, da Constituição [2], assegura às partes “o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos…para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz” (artigo 369).

Da leitura de tal dispositivo, dois elementos relevantes parecem emergir: a existência de um direito à prova; e, como consequência e a existência de limitações ao exercício desse direito.

É dizer, como reconhece a doutrina, o direito à prova, “como qualquer direito, também está sujeito a limitações decorrentes da tutela que o ordenamento confere a outros valores e interesses igualmente dignos de proteção” [3].

Admite-se, assim, a existência de um controle de admissibilidade das provas (ou dos meios de prova) que as partes no intuito de influir no convencimento do juiz ou do árbitro podem produzir, inclusive autonomamente no âmbito de determinada medida probatória, ainda que desvencilhada de algum requisito de urgência.

Direito à prova é direito constitucional

Nesse sentido, e justamente porque o direito à prova está umbilicalmente ligado ao próprio direito constitucional de ação, a ele são aplicáveis, por um paralelismo lógico, limitações voltadas a evitar que o seu exercício se dê em prol de pretensões inúteis, desnecessárias, não-razoáveis ou desproporcionais [4].

A admissibilidade da prova reflete, pois, um mecanismo de valoração prévia instituído pelo legislador destinado a, dentre outros anseios, evitar que provas ou meios de prova deturpem a finalidade que a eles atribuiu a lei, contribuindo para um indesejável retardamento da marcha processual, a macular a eficiência e eficácia tanto, e por todos, visada.

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Os limites ao exercício do direito probatório exsurgem com maior clareza, por exemplo, no âmbito de procedimentos penais e administrativos, nos quais há, comumente, um órgão acusador, a quem o legislador atribuiu prerrogativas investigativas que, por um lado, corroboram para o adequado cumprimento da função, mas, por outro lado, trazem à lume, com maior ênfase, a relevância da tutela da situação jurídica dos acusados em juízo, em regra, mais vulnerável.

É dizer: quanto maior a disparidade de forças entre os litigantes, maior ênfase se dará à repressão de excessos no exercício do direito à prova [5].

Para além dessa faceta (mecanismo de valoração prévia instituída pela lei), há, ainda, outra perspectiva que pode ser de grande relevância à compreensão aos limites do controle da admissibilidade da prova (ou dos meios de provas).

É que se, como visto, o direito à prova guarda vínculo com o direito de ação e defesa, o seu exercício, para ser admitido, deve estar, de alguma forma, condicionado ao interesse processual, notadamente em sua perspectiva de utilidade, mais proximamente ligada ao caráter instrumental desempenhado pela prova no âmbito do processo.

Daí a possibilidade de serem excluídas provas que eventualmente não sejam úteis à formação da convicção do magistrado (agindo, neste particular, sempre de forma motivada e fundamentada) e/ou que não contribuam para que os fatos alegados, em ação ou em defesa, sejam devidamente esclarecidos.

Bem por isso, se fala, com acerto, que é ônus da parte especificar como e em que medida as provas de que pretende se valer ou que pretende produzir estão relacionadas com os fatos controvertidos (materiality), bem como em que medida são aptas a demonstrar a existência ou a inexistência, a verdade ou a falsidade dos fatos controvertidos (relevancy).

De certo modo, parece possível afirmar que os critérios acima referenciados refletem as exigências decorrentes da faceta ética do processo, delineada pelos princípios de boa-fé e cooperação processuais (CPC, artigos 5º e 6º).

Outrossim, além de contribuir para que o destinatário das alegações possa melhor exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa, a adequada demonstração da relevância e do nexo entre a prova ou meio de prova pretendida e os fatos alegados, em ação ou em defesa, são elementos igualmente relevantes quando se tem em mente que não compete ao magistrado “extrair da prova conclusões a respeito de fatos e de fundamentos que não tenham sido articulados pelo interessado” [6].

Modalidades de abuso do direito à prova

E é dentro desse contexto que determinadas condutas, embora não violadoras de direitos a autorizar, per se, a exclusão da prova pretendida, podem configurar como modalidades de abuso do exercício do direito à prova e, como tal, devem ser tratadas. Dentre elas, merecem destaque duas condutas processuais que, cada vez mais, ganham atenção da doutrina e da jurisprudência pátrias: o “document dump” (“despejo de documentos”) e o “fishing expedition” (“pescaria probatória”).

Dois lados da mesma moeda, o document dump reflete o ato de “despejar” sobre o adversário um elevado volume de documentos, eximindo-se de esclarecer de maneira clara e objetiva a relação entre o seu conteúdo e as alegações que se pretende provar; impondo, ao fim e ao cabo, ao adversário o ônus de garimpar a documentação colacionada e estabelecer conexões de relevância e de nexo com os fatos controvertidos [7], seja para os refutar, seja para os comprovar.

Por sua vez, por meio do fishing expedition, a parte pretende obter informações do seu adversário sem que se tenha um objeto pré-definido de investigação, de modo que, nesse caso, as provas deixam de servir como uma demonstração de hipóteses previamente formuladas, passando a serem a própria construção de hipóteses [8].

No âmbito do direito sancionador, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition)” [9].

Semelhantemente, também o Supremo Tribunal Federal já repudiou o uso de fishing expedition naquilo o que, aos seus olhos, já se tornou “uma prática” [10] adotada por determinadas autoridades e órgãos de investigação no desempenho de suas atividades. Também no âmbito cível, a fishing expedition vem sendo igualmente reconhecida e invocada, quer como causa do indeferimento da prova [11], quer como causa de extinção, por falta de interesse de agir, de ações visando à produção antecipada de provas sem fundamento em urgência, tampouco utilidade [12].

A seu turno, também a prática de document dump vem sendo igualmente refutada pela doutrina e jurisprudência, caracterizando-a, quando reconhecida, como “nociva à própria substância do devido processo legal”, na medida em que “subtrai do julgador considerável tempo útil tão somente para localizar e identificar elementos específicos nos autos, como prejudica a ampla defesa” [13]. Não à toa, tal prática é aproximada a um tipo de “ilícito processual” [14].

Em qualquer dos casos, é evidente a pretensão de subverter a natureza instrumental da prova, com evidente prejuízo aos demais sujeitos do processo e à própria atividade jurisdicional; naquilo o que parecer ser o exercício de um direito à prova em prol de estratégias processuais desleais [15].

Naturalmente, é preciso triar e bem identificar as situações em que, de fato, está-se diante do uso desses mecanismos; tarefa que, dentro de uma realidade contemporânea cada vez mais complexa e multifacetada, pode não se mostrar das mais triviais, sendo relegada, invariavelmente, à casuística.

Porém, e mesmo longe de se tratar de uma atividade simples, o equilíbrio entre a observância de garantias constitucionais e o adequado controle de admissibilidade das provas mostra-se fundamental não somente para a formação qualificada da cognição ao longo do processo, rechaçando, assim, o desvirtuamento da natureza instrumental do direito à prova em prol de interesses parciais.

A correta compreensão e efetivo controle em torno do uso dessas (e de outras) ferramentas desleais certamente poderá contribuir para que os anseios e desafios em torno da eficiência e efetividade na prestação jurisdicional sejam aprimoradas, em direção a um processo mais eficiente e efetivo.

 


[1] Cf. Guilherme Pignaneli, Análise Econômica da Litigância: Uma busca pelo Efetivo Acesso à Justiça, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 23 e 49-50.

[2] “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

[3] Cf. Antonio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova no processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 93.

[4] Cf. Flávio Luiz Yarshell, Antecipação da prova sem o requisito da urgência, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 321.

[5] Pensemos, por exemplo, na inviolabilidade da intimidade e da vida privada, extensível ao sigilo de dados e das comunicações, direitos estabelecidos no art. 5º, X e XII, da Constituição Federal, e que, analisados pelo Supremo Tribunal Federal à luz do direito à prova, foram extensamente debatidos quando da edição do Tema 990 (“Possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário”).

[6] Cf. Flávio Luiz Yarshell, “Breves reflexões sobre o assim denominado document dump”, In: Eduardo Arruda Alvim et al, Estudos em homenagem à Professora Thereza Alvim, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 290.

[7] Nesse sentido: TJSP, Apel. 1005895-02.2021.8.26.0482, Rel. Des. Thiago de Siqueira, 14ª Câm. Dir. Priv., j. em 15/01/2024.

[8] Cf. Mike Ziesmann, Gone fishing: an analysis of CRA powers and policies relating to the use of fishing expeditions in information gathering, vol. 58, nº 1, Canadian Tax Journal, 2009.

[9] STJ, HC 663.055, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, 6ª T., j. 9/12/2020.

[10] Expressão utilizada no voto proferido pelo Min. Ricardo Lewandowski. STF, Inq. 3991, Rel. Min. Edson Fachin, 2ª T., j. em 17/4/2018.

[11] “Com relação ao caso dos autos, tem-se que a pretensão da agravante não possui objeto certo ou declarado ao contrário: pretende-se a realização da quebra do sigilo bancário para que os extratos bancários da executada apontem eventual ilícito ou abuso praticado pela empresa executada. Ou seja, a investigação em questão possui nítido contorno especulativo, à míngua de mínimos indícios de ocorrência de fraude à execução, o que não pode ser admitido, notadamente por configurar a prática denominada de ‘fishing expedition’ ou ‘document hunting’, objetivando a promoção de devassa de forma indiscriminada, com a expectativa de obtenção de algum elemento revelador. (…). Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso.” (TJSP, AI 2057252-24.2023.8.26.0000, Rel. Des. Heloísa Mimessi, 23ª Câm. Dir. Priv., j. 31/3/2023)

[12] “De fato, não há interesse processual (CPC, art. 485, IV), devendo o autor, querendo, ajuizar contra os réus nomeados na inicial, a ação cabível. (…). A cautelar de antecipação de provas não pode ser mal utilizada, como é de boa doutrina: ‘…a antecipação de prova exige a prévia delimitação do fato a ser provado. Não apenas por força da literalidade do texto normativo (que é claro, em diversas passagens, em relação a isso), mas, também, pela própria estrutura do procedimento: as limitações procedimentais são viáveis e fazem sentido apenas se houver a prévia e adequada limitação do fato a ser provado’. (…). Em situação assemelhada, neste Tribunal, decidiu-se consoante a doutrina, em caso em que se pedia produção antecipada de provas para coleta de informações, em inadequada prática de mero document hunting (ou fishing expedition).” (TJSP, Apel. 1005463-48.2018.8.26.0268, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câm. Res. de Dr. Empr., j. 2/3/2022).

[13[ TJRJ, AI 0021999-38.2022.8.19.0000, Rel.ª Des.º Denise Nicoll Simões, 5ª Câm. Civ., j. em 28/06/2022.

[14]  “(…) Na apresentação de relatórios, devem os Executados fazer referência expressa na petição das páginas relevantes para o deslinde da questão, vedando-se, desde logo, qualquer tentativa de document dump, que será tratado como ilícito processual.” (TJRJ, AI 0028710-25.2023.8.19.0000, Rel.ª Des.ª Mônica Feldman de Mattos, 6ª Câm. Dir. Púb.; j. em 28/11/2023).

[15] Nesse sentido: “Em muitos casos, a discovery se tornou um instrumento para atendimento de pretensões protelatórias e coação. Grandes corporações podem coagir particulares em ações individuais a celebrar acordos mediante ameaças de uma discovery longa e complexa. Por outro lado, as empresas, uma vez confrontadas com procedimentos envolvendo um exacerbado volume de documentos ou incessantes interrogatórios podem ver o acordo como única alternativa. Em qualquer dos casos, é evidente que a justiça é subvertida, na medida em que a discovery é utilizada não para procurar a verdade, mas para forçar um acordo”. Cf. Mary Kay Kane, Civil procedure in a nutshell, 4ª ed., West Academic, 1996, pp. 150-151, em tradução livre. No original: “In many instances Discovery has become a tool of delay and harassment. Large corporate parties can coerce settlements in suits by individuals by threatening them with long and involved discovery. Conversely, a Corporation faced with enormous document demands or a ceaseless series of interrogatories may feel settlement is the only reasonable alternative. In either case, it is clear that justice is subverted insofar as discovery is used not to search out the truth, but to force settlement”.

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