Opinião

Compatibilidade do islamismo com o constitucionalismo liberal democrático

Autor

  • Clarita Costa Maia

    é consultora legislativa do Senado doutora em Direito pela USP mestre em História das Relações Internacionais e especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Universidade de Bochum Alemanha e pela Universidade de Brasília.

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5 de junho de 2024, 9h21

No final de abril, em Hamburgo, na Alemanha, uma expressiva marcha de imigrantes defendeu a instituição de um estado islâmico no país europeu. A pauta começou a fazer parte dos protestos na Europa, seja aproveitando-se daqueles havidos em razão do conflito Hamas-Israel, seja em razão das eleições para o Parlamento europeu e em resposta ao crescimento da extrema-direita no continente. Salta aos olhos o horizonte potencial de choque entre tradições político-legais. Tanto os preconceitos civilizacionais quanto as romantizações ingênuas atrapalham o bom entendimento dos prováveis valores em colisão.

Fernando Frazão/Agência Brasil

A literatura a respeito da experiência constitucionalista no Oriente Médio contemporâneo não é abundante e sugere a divisão dos autores em duas categorias gerais: os céticos quanto à adaptabilidade do modelo do constitucionalismo liberal democrático à experiência oriental; e os defensores de um constitucionalismo adaptado. Incluem-se, em ambas as categorias, número expressivo de autores de origem islâmica, referenciados neste artigo.

1. Constitucionalismo, liberalismo, secularismo e defesa dos direitos individuais

O espraiamento geográfico do fenômeno do constitucionalismo sugere sua exaltação à condição de princípio político de caráter universal [1]. Suas características, são, no entanto, controversas, muito embora se possa depreender serem razoavelmente assentes as que seguem: (i) a soberania popular, em outras palavras, a imprescindibilidade do consentimento dos governados [2]; (ii) a separação de competência entre poderes constituídos; (iii) a racionalidade do direito; (iv) o impedimento do arbítrio; (v) o Estado de Direito.

Embora fenômenos paralelos, o constitucionalismo e o liberalismo se comunicam e se potencializam. A menos exportável das ideologias europeias, o liberalismo traz, fundamentalmente, duas dimensões: econômica e política. No plano econômico, propaga a livre iniciativa, o livre empreendimento e a menor intervenção possível do Estado no andamento da economia. No plano político, identifica-se com o individualismo [3] e preconiza a maximização do mercado político e de ideias [4].

1.1 A influência calvinista no constitucionalismo americano

No esteio de Jellinek e Alexis de Tocqueville, que já haviam reconhecido no constitucionalismo americano a marca do puritanismo, Martinez minudencia essa influência [5].

Para o autor, os imigrantes britânicos eram, em grande parte, puritanos influenciados pelo calvinismo congregacionista, o qual preconizava valores como o contratualismo e o federalismo, que os compeliam a urdir, nas novas comunidades das Américas, pactos que vinculavam diretamente povo e igreja, criavam uma união federal entre as várias unidades religiosas e impunham uma série de restrições ao poder administrativo face aos fieis. O

calvinismo, em sua forma proto-política, desafiava a figura do rei e enaltecia a figura da constituição como garante da ordem e do bem-estar da comunidade [6]. O sistema de privilégios concedido pela Coroa Britânica potencializava esse caráter, porquanto teve por subproduto não intencional o estímulo à vida cívica e ao autogoverno na nova colônia [7].

Quatro anos antes do nascimento de Locke, anos antes da Revolução Gloriosa e antes mesmo da Carta de Direitos de Virgínia, o Pilgrim Code of Law e as Fundamental Orders of Connecticut poderiam ser consideradas as primeiras constituições americanas por descreverem pactos políticos de maneira inovadora e muito afim à moderna noção de constitucionalismo.

Previa, inter alia: a afastabilidade das autoridades por atos imorais; a temporalidade de mandatos; a autolimitação dos poderes, a divisão e o mútuo controle de atividades; uma estrutura federal de governo, tanto em nível civil quanto eclesiástico; o desenvolvimento da codificação de leis como meio de promover a segurança jurídica e garantia dos direitos dos cidadãos; e o sufrágio para a indicação das autoridades políticas e eclesiásticas [8].

No plano dos direitos fundamentais, dos vinte e oito direitos consignados na Magna Carta, apenas quatro são inspirados na Bill of Rights, os demais nas cartas eclesiásticas, cuja técnica e espírito foram traduzidos nos pactos e constituições seculares que deram ensejo ao constitucionalismo americano [9].

Essa matriz de pensamento permitiu que as ideias de Locke fossem ventiladas, em primeira mão, por pastores puritanos, ativos questionadores dos limites do poder [10].

1.2 Securalismo e neutralidade

Se o constitucionalismo é, epistemologicamente, incompatível com a teocracia, ele não é genealógica e pragmaticamente neutro de valores religiosos. O secularismo, à europeia, significava um compromisso político de mútua tolerância entre denominações religiosas cristãs. O constitucionalismo à americana, também traduzia a promessa de tolerância entre os sistemas deístas, monoteístas e dogmáticos [11]. Claro é que o secularismo atual propugna pela convivência pacífica de todos os credos, de todas as matrizes civilizacionais.

Qual a essência da religião? Para Durkheim, conforme visto, são valores espraiados e confundidos na própria matriz cultural, das quais outras tantas matrizes de pensamento (política, econômica, sociológica, jurídica) pode não se distanciar da forma pretendida. Para W. Tarver Rountree Jr., o próprio constitucionalismo seria a religião e o totem norte-americanos [12].

A dificuldade de se definir a “essência” da religião parece destacar a anacronicidade dos discursos secularistas radicais, antirreligiosos. E isso inspira a que problematizemos a própria neutralidade do constitucionalismo moderno [13].

A questão seria, portanto, aventar-se a possibilidade de um secularismo mínimo que promovesse um léxico capaz de evitar pretensões absolutas de determinados credos e religiões à inspiração das estruturas sociais [14].

2. O Constitucionalismo no Oriente Médio

A maior parte dos projetos de modernização político-jurídica para o Oriente Médio propugna pelo secularismo. Para Fald, essa perspectiva não tem se provado útil [15]: uma proposta de constitucionalismo que alijasse o islamismo do epicentro jurídico seria rechaçada, i.a, por ser, normalmente, associada à imposição ocidental e à rejeição à religiosidade, e porque se discute se princípios baseados na razão seriam mais propícios a alcançar o bem-estar social do que na fé.

Com efeito, nota-se o surgimento de uma demanda popular cada vez mais altissonante no Oriente Médio no sentido de que o Estado adapte suas leis e seus preceitos àqueles tradicionais de seus povos, incluindo a religião [16].

2.1 Islã e islamismo

A demanda supramencionada não se confunde com a pauta islamista, embora seja constantemente capturada por ela. O termo “islamismo”, no jargão dos estudos em ciências políticas internacionais, se refere ao uso político do Islã, cujo endosso presuntivo da maioria da população mulçumana é contestável.

O Islamismo elevou o Islã de religião à condição de uma ideologia moderna, com todos os seus predicados: aspiração ao poder estatal, uma ciclotimia que contempla e se beneficia da crise e mesmo da guerra, a dedicação sacrificial de seus seguidores e seu messianismo [17]. Defende um modelo teocrático de sociedade que se coloca como uma alternativa ao modelo de sociedade do Ocidente e rejeita seus valores centrais e seus símbolos: secularismo e individualismo.

Além disso, possui programa político e social   que passa pela restauração da Sharia como direito, o que é fórmula é muito vaga: a Sharia não é um sistema completo, mas um método de aplicação e uma forma de dedução das escrituras sagradas que guiam uma vasta gama de questões ritualísticas, sociais, econômicas e jurídicas [18].

Algumas propostas do islamismo político seriam: o modelo político ideal é o Estado Islâmico, cujo objetivo é o de estimular e facilitar o estilo de vida religioso; o governo deve estar a serviço do islamismo; superioridade dos mulçumanos sobre os demais cidadãos (Taghallub); e uma ordem islâmica internacional deve ser promovida.

2.2 O Estado Islâmico

“Estado islâmico” é um regime político, ou um conjunto de instituições políticas orientadoras da vida social. Não se confunde com o “Estado Islâmico do Iraque e Levante”, organização jihadista e terrorista, que se apropriou da nomenclatura.

Muitos dos islamistas têm simpatia por um constitucionalismo conducente à instauração de um Estado Islâmico, aproveitando-se da aceitação que o projeto constitucionalista tem amealhado na academia e em parte da sociedade daquela região [19].

O Estado Islâmico é, para An-Na’im [20], ao menos tempo, uma impossibilidade lógica e dogmática; uma experiência sem precedentes na história, exceto pelo mítico Estado de Medida, sob a coordenação do Profeta; uma apropriação conceitual indevida; e uma ideia política temerária para as próprias sociedades do Oriente Médio pelo potencial de engendrar a aceitação e a pacificação social artificiais e um temor incompatíveis com a vitalidade cívica necessária para fazer com que os instrumentos do constitucionalismo moderno de controle do poder sejam efetivamente utilizados [21].

Seria uma impossibilidade lógica e dogmática porquanto a religião islâmica, a rigor, deveria ser de livre adesão. Também o seria impossível em razão das várias leituras sobre a Sharia, de igual nível de autoridade, tornando difícil a identificação de uma regra de direito de validade universal. A Sharia é ambígua tanto em relação ao elo entre a religião e o Estado quanto em relação às formas de se fazer cogente a Sharia aos líderes políticos. Haveria de se falar, assim, em vários Estados Islâmicos.

Kamali define o Islã político como um múnus público (amanah), que impõe a criação de um governo limitado e não totalitário, uma democracia qualificada e um sistema de governo civil, não teocrático, embora fortemente inspirado no Islã, pautado tão-somente por princípios gerais [22].

Tampouco para o autor, não houve precedentes de Estado Islâmico na história. O Estado Otomano, da dinastia Umayyad em diante, foi pautado em princípios muito distantes do Islã sobre conveniência e oportunidade política. O pensamento político urdido sobre o califado centrava-se em deveres e direitos, competências do judiciário e das estruturas administrativas, tributação, entre outras matérias. Apesar disso, pouco ou nada tangenciavam os temas modernos do constitucionalismo [23].

A despeito dos esforços empreendidos no sentido de extrair do Corão e da Sunna os preceitos para um Estado Islâmico, não há consenso sobre seus baldrames, a não ser os parâmetros muito gerais sobre bem-estar público e justiça, os quais podem ter leituras diversas.

O conceito de governo como múnus confere a noção de responsabilidade do governante perante Deus. O poder do povo de retirar o voto de confiança do governo que abertamente desobedecesse ao Islã ou mesmo que excedesse em seu poder, ou de desobediência civil [24], embora teoricamente previsto, seria, na prática, inócuo: a tradição conservadora das sociedades islâmicas considera como traição e desordem qualquer tipo de insurgência contra os poderes constituídos. É, portanto, um similar equivocado e apressado de um sistema democrático [25].

Para Kamali, o Islã conferiria considerável autonomia aos indivíduos e limitaria o poder legiferante às normas islâmicas, à consulta e ao consenso. O raciocínio subjacente a essa assertiva, porém, é o de que os interesses individuais estarão sempre em conformidade com o Islã, o que é equivocado [26]. Mais ainda, ressalta que o governo não seria uma prerrogativa dos ulamãs (juristas), tampouco um governo de homens por exclusão às mulheres, indicando o reinado do Terceiro Califa como um exemplo histórico no qual as mulheres gozaram de ampla liberdade cívica e política [27].

Para os autores, o modelo constitucional islâmico não reconheceria a soberania popular, vez que a vontade geral estaria sempre pautada pelos preceitos islâmicos, deles não podendo se afastar. Tentar-se-ia conferir um matiz contratualista à conexão entre o governante e o povo [28], todavia, não há precedente no discurso islâmico sobre um contrato assim negociado. O consentimento conferido ao governante seria qualificado, uma competência daqueles legitimados pela sociedade, os que deteriam o poder e a força para garantir a necessária obediência ou o consentimento público [29]. E a shura, ou governo por consulta não se equipararia à democracia propriamente dita. Embora evite a autocracia e o despotismo, não garante a participação cívica e todo e qualquer cidadão.

Quanto aos direitos humanos, o Islã os categoriza em três classes. As necessidades fundamentais, que inspirariam os direitos individuais básicos, seriam a religião, a vida, o intelecto, a linhagem, a honra e a propriedade [30]. As demais categorias (necessidades negociáveis e luxo) seriam temperadas pelo expediente político e pela necessidade. Não houve desenvolvimento doutrinário sobre os desdobramentos daqueles cinco direitos, deixando em aberto uma teoria islâmica de direitos fundamentais [31].

Nada obstante suas limitações, é justamente na noção contratualista que Fadl encontra o mais promissor canal para veicular o constitucionalismo no Oriente Médio, e não o discurso da proteção de direitos individuais ou de minorias, porquanto uma noção mais cara e mais endógena àquelas sociedades.

Conclusão

No constitucionalismo liberal democrático, o controle civil dos Poderes do Estado depende da vitalidade cívica do povo ao qual essa ordem é endereçada. A melhor arquitetura constitucional pode se tornar inócua se não mobilizar ou permitir o civismo e o debate público crítico aos poderes constituídos. Para muitos autores orientais, o constitucionalismo no Oriente Médio pode tornar-se uma preocupação meramente acadêmica, uma ficção sem efetivas reverberações sociais, se ao povo não forem dadas efetivas condições de participação, materiais, morais, intelectuais e motivacionais [32].

Doutrinariamente, o Islã não é de todo refratário à experiência constitucional, mesmo em sua vertente liberal e democrática, porquanto dele não se deduz um sistema de regras de governo, a não ser por parâmetros muito gerais. O precedente histórico tampouco auxilia na elucidação de como seria o mais quintessencial Estado Islâmico. Há que se destacar, todavia, que alguns dos institutos do islamismo que versam sobre a arte do governo, no entanto, são insuficientes e outros até contrários aos padrões do constitucionalismo liberal democrata.

O Estado Islâmico, por sua vez, é uma bandeira vergada, em geral, por elites políticas demagógicas que visam a angariar ampla aceitação popular em situações de crise ou ampliar seus projetos de poder em política externa. Embora exista, de fato, uma demanda cada vez maior no Oriente Médio no sentido de que as instituições de governo reflitam valores quintessenciais, isso não significa, necessariamente, a demanda por um Estado teocrático islâmico.

Para os autores orientais, a confusão dessas agendas tem óbvia pretensão política e é detrimental à população islâmica.

________________

[1] MALLAT, Chibli. Introduction to Middle Eastern Law. Oxford University Press. 2007, p. 2.

[2] Idem, p. 6.

[3]Ibidem, p. 689.

[4] Ibidem, p. 692.

[5] MARTINEZ, Fernando Rey. The Religious Character of the American Constitution: Puritanism and Constitutionalism in the United States. HeinOline- 12 Kan, J. L.&Pub. Pol’y 459. 2002-2003. p.  478.

[6] Idem, p. 460.

[7] Ibidem, p.  471.

[8] Ibidem, p.  477.

[9] Ibidem, p. 480.

[10] Ibidem, p. 482.

[11] FREEMAN, III. George C. The Misguided Search for the Constitutional Definition of “Religion”. Heinoline- 71. Geo, L.J. 1519. 1982-1983.

[12] JR. W. Tarver Rountree. Constitutionalism as the American Religion: the good portion. HeinOline- 39. Emory Law Journal. 203.1990. p. 240.

[13] BADER, Veit. Post-Secularism or Liberal-Democratic Constitutionalism?. Erasmus Law Review, Volume 5, Issue 1 (2012). p. 11.

[14] Ibidem, p. 22.

[15] FADL, Khaled Abou el. The Centrality of Shariah to Government and Constitutionalism in Islam. In: GROTE, Rainer & RÖDER, Tilmann J. Constitutionalism in Islamic Countries: between upheaval and continuity. Oxford. p 55.

[16] KAMALI, Mohammad Hashim. Constitutionalism in Islamic Countries: a contemporary perspective of Islamic Law. In: GROTE, Rainer & RÖDER, Tilmann J. Constitutionalism in Islamic Countries: between upheaval and continuity. Oxford. p.21.

[17] DEMANT, Peter R. Islam vs Islamism: The Dilemma of the Muslim World. Foreword by Aghar Ali. Praeger. Westport, Connecticut, London, p. 180.

[18] Ibidem, p.177

[19] BROWN, Nathan J. Constitutions in a Nonconstitutional World. Arab Basic Laws and the Prospects for Accountable Government. State University of New York Press. p. 170.

[20] AN-NA’ IM, Abdullahi Ahmed. Religion, the State, and Constitutionalism in Islamic and Comparative Perspectives. HeinOline, 57, Drake Law Review. 829. 2008-2009. p. 831.

[20] Idem, p. 842.

[21] Ibidem.

[22] KAMALI, p. 19.

[23]Idem, p. 20.

[24] FADL, p.49.

[25] AN-NA’ IM, p. 838.

[26] KAMALI, p. 24.

[27] FADL, p.39.

[28] Idem, p. 46.

[29] Ibidem, p. 47.

[30] Idem, p. 51.

[31] Ibidem, p. 51.

[32] AN-NA’ IM, p. 838.

Autores

  • é consultora legislativa do Senado, doutora em Direito pela USP, mestre em História das Relações Internacionais e especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Universidade de Bochum, Alemanha, e pela Universidade de Brasília.

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