A mudança política alemã e seu impacto na ascensão dos movimentos de extrema-direita
13 de fevereiro de 2024, 7h13
De acordo com a última pesquisa eleitoral do site Dawum, se as eleições para o Bundestag fossem realizadas em fevereiro de 2024, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita, teria 19,6 % dos votos [1]. Essa constatação pode ser interpretada superficialmente como uma perda de memória coletiva por parte de um segmento da população alemã, especialmente à luz do passado histórico do país. No entanto, a situação é muito mais complexa do que uma simples amnésia histórica.
A Alemanha, dividida entre o oriente comunista e o ocidente capitalista durante a Guerra Fria, experimentou a imigração de maneiras distintas. Enquanto a Alemanha Ocidental se tornou um destino para muitos imigrantes, a Alemanha Oriental permaneceu relativamente isolada. Essas experiências divergentes moldaram percepções e atitudes políticas diferentes em relação à imigração e à integração, influenciando o panorama político atual. Além disso, decisões políticas recentes do governo alemão e o constante descontentamento de parte da população com o aumento no número de refugiados podem ter aumentado o apoio à extrema-direita.
A ascensão do partido AfD e o apoio de quase 20% da população não são fenômenos que podem ser simplificados. Em vez disso, refletem uma complexidade de fatores sociais, políticos e econômicos que vão desde as diferenças históricas entre o leste e o oeste da Alemanha até as recentes políticas governamentais. Essas dinâmicas contribuem para um cenário político em que o extremismo de direita não apenas flerta com o poder, mas o faz em um contexto extremamente complicado e matizado.
Portanto, é preciso desvendar as camadas dessa complexidade, destacando como as consequências das políticas passadas e presentes se entrelaçam para moldar o atual panorama político alemão. Ao fazer isso, aponta para a necessidade de uma compreensão mais profunda das forças em jogo, além de uma reflexão sobre como a Alemanha, e por extensão a Europa, pode enfrentar os desafios impostos pela crescente influência de movimentos extremistas de direita.
Contrastes entre Alemanha Oriental e Ocidental
Como é de conhecimento público, com o término da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em duas partes chamadas de Alemanha Ocidental (RFA), que ficou sob o domínio dos franceses, britânicos americanos, e Alemanha Oriental (RDA), que ficou sob o domínio soviético. A Alemanha Ocidental, beneficiada pelo Plano Marshall, experimentou um rápido crescimento econômico e tornou-se uma das maiores economias da Europa e um dos pilares da União Europeia.
A RFA abraçou um sistema de economia de mercado, o que resultou em um alto padrão de vida para seus cidadãos e atraiu uma quantidade significativa de trabalhadores imigrantes, principalmente da Turquia e sul da Europa durante os anos 1960 e 1970. Essa imigração moldou a diversidade cultural da região e criou uma sociedade mais aberta à multiculturalidade [2].

Em contraste, a Alemanha Oriental, sob regime soviético, enfrentou dificuldades econômicas, repressão política e isolamento internacional [3]. A RDA implementou políticas rigorosas de controle de fronteiras, limitando a emigração e a imigração. Como resultado, a Alemanha Oriental teve pouca exposição à diversidade cultural trazida pela imigração em larga escala, contribuindo para uma sociedade mais homogênea e, em alguns aspectos, mais fechada.
Essas diferenças históricas e socioeconômicas entre o oriente e o ocidente têm efeitos duradouros nas atitudes e percepções políticas e sociais dos cidadãos. No ocidente, a longa história de imigração criou uma maior aceitação da diversidade cultural e um apoio mais robusto a políticas inclusivas e progressistas. No entanto, também gerou debates significativos sobre integração, identidade nacional e coesão social, especialmente em áreas urbanas densamente povoadas.
No Oriente, a menor exposição à imigração resultou em menos oportunidades para interações culturais diretas com imigrantes. Isso, combinado com as dificuldades econômicas pós-reunificação, que afetaram desproporcionalmente a antiga Alemanha Oriental, criou um terreno fértil para narrativas de extrema-direita que culpam os imigrantes por problemas econômicos e sociais. Isso acaba resultando em um apoio maior a partidos de extrema direita nos estados da antiga Alemanha Oriental, como por exemplo o estado da Saxônia, onde a AfD está liderando as pesquisas eleitorais com 34% dos votos[4].
Perspectiva brasileira versus realidade alemã
Ao observar os 20% de apoio ao partido Alternativa para a Alemanha (AfD) de uma perspectiva brasileira, este número pode inicialmente parecer modesto, especialmente quando comparado ao cenário político do Brasil, onde a polarização política frequentemente resulta em um apoio mais concentrado a partidos específicos. No Brasil, por exemplo, é comum que candidatos à presidência ou partidos políticos obtenham uma porcentagem significativa dos votos devido ao sistema eleitoral majoritário para eleições presidenciais, o que pode levar a uma percepção de que 20% é um número relativamente baixo para um partido político.
No entanto, no contexto do sistema político alemão, esse percentual carrega um significado muito diferente e mais profundo. A Alemanha opera sob um sistema parlamentarista de governo, com um sistema proporcional de representação no Bundestag (parlamento alemão). Esse sistema promove uma diversidade maior de partidos políticos e, consequentemente, torna mais raro que um único partido obtenha uma maioria absoluta dos votos. Neste contexto, 20% de apoio a um partido, especialmente um de extrema-direita como o AfD, é consideravelmente significativo, pois pode representar a terceira ou até mesmo a segunda maior força política no parlamento, dependendo dos resultados eleitorais.
Além disso, o sistema político alemão é caracterizado pela formação de coalizões governamentais. Dado que raramente um partido alcança sozinho a maioria dos assentos no Bundestag, os partidos precisam formar alianças para criar um governo estável. Assim, mesmo que um partido obtenha uma porcentagem relativamente modesta dos votos, este pode exercer uma influência desproporcional nas políticas governamentais, participando de coalizões ou negociando apoio a certas iniciativas legislativas.
No caso do AfD, um apoio de 20% não apenas demonstra a força significativa do partido no cenário político alemão, mas também destaca a crescente polarização e o descontentamento de uma parcela da população com as políticas tradicionais. Portanto, ao comparar a perspectiva brasileira com a realidade alemã, é fundamental reconhecer as diferenças nos sistemas políticos e no significado do apoio eleitoral. Enquanto no Brasil, o foco pode estar em ganhar a presidência ou dominar o congresso com uma maioria clara, na Alemanha, a influência política pode ser exercida através de porcentagens aparentemente menores de apoio, que, no entanto, são suficientes para moldar políticas governamentais e direcionar o debate público.
Políticas do governo atual e a extrema-direita
Os recentes desdobramentos do cenário geopolítico moderno, especialmente se tratando da guerra na Ucrânia, culminaram com a decisão do governo de aumentar significativamente a ajuda militar e reforçar as capacidades de defesa. O aumento dos gastos militares e a virada estratégica para tornar o exército alemão um pilar central da defesa na Europa alinham-se com a política de “Zeitenwende” mais ampla anunciada pelo Chanceler Olaf Scholz[5]. Esta política representa uma grande mudança na estratégia de defesa alemã, enfatizando a necessidade de um exército bem equipado e robusto capaz de garantir a segurança da Alemanha e seus aliados.
No entanto, essa mudança não ocorreu sem controvérsias domésticas, com a opinião pública dividida sobre a extensão da ajuda à Ucrânia. Embora haja um apoio substancial à Ucrânia, as implicações financeiras do aumento dos gastos com defesa e ajuda em meio a desafios econômicos, como a inflação e considerações sobre benefícios sociais, provocaram debate dentro da Alemanha.
Ademais, a Alemanha enfrenta desafios significativos com o aumento no número de refugiados, o que tem levado a uma revisão das políticas governamentais, tanto em termos de alocação de recursos quanto na gestão de benefícios sociais. Em 2023, a Alemanha registrou cerca de 1,1 milhão de refugiados da guerra na Ucrânia, além de mais de 200.000 solicitações de asilo de outros países, representando um aumento de 77% em comparação com o ano anterior. Este aumento substancial coloca pressão sobre os recursos locais e exige uma gestão eficaz para fornecer habitação e integração adequadas[6].
Em resposta a isso, o governo alemão tomou medidas para alterar a forma como os benefícios são concedidos aos refugiados, movendo-se em direção a um sistema de pagamentos em espécie. Esta mudança significa que, em vez de receber dinheiro vivo, os refugiados receberão cartões de pagamento, aos quais as autoridades sociais transferirão regularmente as ajudas que podem ser utilizadas para compras em supermercados, mas que não permitirão a retirada de dinheiro[7]. Esta medida visa a reduzir o apelo do estado de bem-estar social alemão como um fator de atração para migrantes e refugiados, além de potencialmente resultar em economias significativas para o governo.
No nível da UE, houve um acordo sobre a reforma do sistema de asilo, introduzindo procedimentos acelerados nas fronteiras externas da UE para migrantes com poucas chances de serem autorizados a permanecer. Essa mudança é parte de um esforço para controlar e limitar a migração irregular, garantindo que apenas as pessoas com uma chance realista de obter asilo possam entrar na UE. Os procedimentos de asilo realizados nas fronteiras externas também visam a acelerar o processo de deportação para aqueles cujas aplicações são negadas, refletindo uma abordagem mais rigorosa para a gestão de novas chegadas[8].
A Alemanha também está implementando mudanças significativas para facilitar o processo de deportação de requerentes de asilo cujas aplicações foram negadas. As alterações legislativas propostas visam simplificar os procedimentos administrativos e legais, permitindo que as deportações sejam realizadas de maneira mais rápida e direta[9].
Portanto, é possível perceber que existe uma tentativa do governo de tomar medidas à direita para frear o avanço da extrema direita. Isso ocorre ao mesmo tempo em que integrantes da AfD tiveram um encontro secreto com o austríaco Martin Sellner, uma figura proeminente do movimento identitário extremista, sinalizando uma preocupação crescente com as direções ideológicas e estratégias adotadas por segmentos da política alemã[10].
No encontro, foram discutidos planos para promover a “remigração” de imigrantes, incluindo aqueles com passaporte alemão, uma proposta que suscita preocupações significativas sobre os direitos humanos e a coesão social na Alemanha. A ideia de enviar imigrantes de volta aos seus países de origem, mesmo aqueles que possuem cidadania alemã, reflete uma abordagem radical para as questões de imigração e integração, desafiando os princípios democráticos e o estado de direito.
Conclusão
O flerte com o extremismo na Alemanha atual não é um fenômeno isolado, mas uma manifestação de diversas tensões históricas, sociais e econômicas que têm moldado o país desde a reunificação até os desafios contemporâneos. A ascensão do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) e seu significativo apoio eleitoral refletem o complexo cenário político de uma nação que luta para reconciliar seu passado com as demandas e expectativas do presente.
A divergência de experiências entre a Alemanha Oriental e Ocidental, particularmente em relação à imigração e integração, criou um terreno fértil para discursos nacionalistas e anti-imigração. A Alemanha Ocidental, com sua longa história de imigração, desenvolveu uma sociedade mais multicultural, enquanto a Alemanha Oriental, menos exposta à imigração, tem mostrado maior suscetibilidade a narrativas de extrema-direita. Essa divisão histórica alimenta a polarização política e social que vemos hoje.
As recentes políticas do governo alemão, especialmente em resposta à guerra na Ucrânia e aos desafios econômicos, como a inflação e a redução de benefícios sociais, podem ter inadvertidamente reforçado a posição da extrema-direita. O aumento dos gastos militares e de grandes fluxos de refugiados gera debates internos sobre prioridades e recursos, potencialmente beneficiando narrativas de extrema-direita que exploram descontentamentos sociais e econômicos.
O encontro da AfD com figuras extremistas, como Martin Sellner da Áustria, é um indicativo de um desafio mais amplo. Estes eventos e políticas não apenas fortalecem a extrema-direita, mas também sinalizam uma luta contínua dentro da Alemanha para definir sua identidade nacional e os valores que deseja promover.
Para enfrentar a ascensão do extremismo, é necessário um entendimento profundo e matizado das causas subjacentes que impulsionam o descontentamento e a polarização. A Alemanha, e a Europa como um todo, deve buscar soluções que abordem não apenas os sintomas do extremismo, mas também suas raízes, promovendo inclusão, justiça social e diálogo intercultural. Somente através de uma abordagem holística e comprometida será possível contrariar a tendência crescente de extremismo e reafirmar os princípios de democracia, tolerância e coesão social que são fundamentais para o futuro da Europa.
[1] Bundestagswahl: Neueste Wahlumfragen im Wahltrend | Sonntagsfrage #btwahl (dawum.de)
[2] Bundesamt für Migration und Flüchtlinge – The Impact of Immigration on Germany’s Society
[3] A economia da RDA em transição – Unidade Alemã 1990 (deutsche-einheit-1990.de)
[4] Bundestagswahl: Neueste Wahlumfragen im Wahltrend | Sonntagsfrage #btwahl (dawum.de)
[5] Reden zur Zeitenwende (bundesregierung.de)
[6] Where Germany stands on refugees and asylum – DW – 09/17/2023
[7] Bezahlkarte für Asylbewerber kommt wohl nicht flächendeckend – Landespolitik – Nachrichten – WDR
[8] What’s in the new EU migration and asylum deal? | Reuters
[9] Bundesrat billigt Gesetz für schnellere Abschiebungen | tagesschau.de
[10] “Remigration”-Pläne: Die ostdeutsche AfD will das umsetzen | MDR.DE
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