Opinião

Um ineditismo inoportuno do Tribunal Constitucional Federal alemão... Mas para quem?

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8 de dezembro de 2023, 21h32

Desde o dia 15 de novembro de 2023, o governo alemão procura um remédio para uma dor de cabeça inesperada. A “coalisão semáforo”, constituída pela difícil combinação do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), com a Aliança 90/Os Verdes (Bündnis 90/Die Grünen) e com o Partido Democrático Liberal (FDP), enfrenta uma crise governamental — literalmente — sem precedentes. A oposição parlamentar aproveita-se da fragilidade do governo como pode, chegando a declarar a existência não de uma simples crise política, mas de uma “crise de Estado” [1].

Isso tudo se deve à decisão do Segundo Senado do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF) na Ação de Controle Abstrato de Constitucionalidade, que declarou a nulidade da Segunda Lei Orçamentária Suplementar do ano 2021 [2]. A ação foi proposta pelos(as) 197 deputados(as) e membros(as) da maior fração parlamentar da oposição (CDU/CSU-Fraktion), que peticionou a anulação dessa Lei em virtude de sua inconstitucionalidade. Agora, o governo da coalisão semáforo corre contra o tempo para, ainda em 2023, reestruturar e aprovar um orçamento para 2024 no parlamento alemão — com 60 bilhões de euros (cerca de 320 bilhões de reais) a menos que o previsto e com o financiamento da política climática para os anos subsequentes em vista.

Quanto aos fatos centrais para a decisão: a Primeira Lei Orçamentária Suplementar do ano de 2021 aumentou a autorização de crédito para o orçamento de 2021 em 60 bilhões de euros. Esse crédito foi aprovado como patrimônio fideicomisso para enfrentamento da pandemia por Covid-19, indo legalmente além dos limites máximos de crédito fixados constitucionalmente, já que a pandemia se enquadrou como caso de catástrofe natural e situação extraordinária de emergência (artigo 109, § 3º c/c artigo 115, § 2º da Lei Fundamental da Alemanha). Os 60 bilhões de euros, todavia, não precisaram ser utilizados para o combate à pandemia em 2021 e foram, então, realocados pelo governo alemão para o Fundo de Clima e Transformação (KTF) em fevereiro de 2022 por meio da Segunda Lei Orçamentária Suplementar do ano de 2021.

Três foram as razões principais para a anulação da Lei pelo TCF: o Legislativo não haveria demonstrado suficientemente a conexão fática necessária entre a emergência e as medidas tomadas para administração da crise — parágrafo 195 e ss. da decisão; o uso posterior de autorizações de crédito relacionadas a emergências em exercícios financeiros posteriores contradiria os princípios da orçamentação anual (Jährlichkeit) e da anualidade (Jährigkeit) — par. 206 e ss. Ele imputaria ao legislador orçamentário uma violação lógica se ele, em uma situação de emergência, contrair dívidas dentro da estrutura do que é constitucional permitido e, posteriormente, transferi-las para um fundo especial que, por definição, não está sujeito ao freio à dívida pública; a adoção retroativa do orçamento suplementar para um exercício financeiro concluído violaria o princípio da anterioridade (Vorherigkeit) — par. 213 e ss.

O ineditismo da decisão se deve a pelo menos três fatores. Primeiro, essa foi a primeira decisão do TCF sobre os limites máximos de crédito estabelecidos constitucionalmente desde a emenda constitucional de 1 de agosto de 2009. Segundo, o TCF estabeleceu inovadoramente elevados padrões para controle (hohe Kontrolldichte) de uma questão orçamentária pela jurisdição constitucional, com uma consequente e incomum baixa margem de apreciação ao Parlamento para essa matéria orçamentária concreta. Terceiro, muitos esperavam que, mesmo em caso da procedência da ação, o TCF declararia a inconstitucionalidade do remanejo orçamentário sem pronunciar a nulidade, já que a pronúncia de nulidade poderia vir a ter — como de fato teve — efeitos consideravelmente alarmantes para a situação política e governamental no Parlamento alemão [3].

O que resta, todavia, é a pergunta: e para quem foi essa decisão inoportuna? Para a coalisão semáforo, evidentemente. Mas para quem mais? Há outros “perdedores” por causa dessa decisão?

Um primeiro possível perdedor é a democracia. A argumentação eminentemente técnica do tribunal, a partir de princípios constitucionais orçamentários (em parte, não escritos no texto constitucional), juntamente com a consequência jurídica aplicada de “nulidade”, tem um efeito drástico para a democracia parlamentar alemã, apesar de isso não parecer tão claro em uma primeira leitura da decisão. A questão é que não é só raro o TCF anular uma lei em matéria orçamentária. É raro que o TCF anule leis, em geral. Essa é, na verdade, a consequência jurídica mais extrema que o TCF toma em suas decisões e que só incide poucas vezes por ano [4]. Ao tomar esse caminho, e não o de uma declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, p.ex., o TCF esconde a sua opção interpretativa de uma elevação sem precedentes da criteriosidade com a qual decisões parlamentares em matéria de direito constitucional financeiro podem ser reavaliadas judicialmente. É mais material para aprofundamento da discussão sobre a tal “judicialização da política” [5].

Um segundo é a política ambiental intergeracional. Após a tão celebrada decisão do Primeiro Senado do TCF em 2021 sobre justiça climática intergeracional [6], o Segundo Senado torna claro que as mudanças climáticas não são capazes de justificar quaisquer “emergências” em termos constitucionais. Essa postura convence pouco, primeiro, porque o melhor momento para se combater catástrofes naturais causadas por mudanças climáticas não é depois de elas acontecerem, mas antes, isto é, por meio da contribuição à prevenção estrutural de mudanças climáticas. Segundo, porque o Segundo Senado, ainda que declarasse a inconstitucionalidade da Lei, perdeu a oportunidade de ouro de pontuar critérios casuísticos para a configuração de catástrofes naturais em cenários de prevenção a mudanças climáticas.

Isso nos leva a um terceiro possível perdedor com a decisão: a ciência do direito. Isso porque o TCF, ao não desenvolver esses critérios casuísticos — ou até dogmáticos — rejeita explorar conexões interpretativas profícuas entre o direito financeiro e o direito ambiental constitucional (inclusive como objetivo constitucional, nos termos do artigo 20a da Lei Fundamental), que tende a ser crescentemente mais tematizado em ações constitucionais. Mas sobretudo: a ciência do direito perde especialmente com a negação do TCF a uma abordagem funcional-democrática, por meio do qual o Tribunal não precisaria encobrir sua decisão em um tecnicismo constitucional, mas sim clarificar seus padrões de intensidade na apreciação da matéria constitucional concreta.


[1] Cf. MEYNS, Michael. Markus Söder bei Lanz: „Wir sind in einer Staatskrise“. Disponível em: <https://www.merkur.de/politik/kritik-talkrunde-markus-soeder-lanz-staatskrise-verschuldung-notlage-migration-kosten-haushalt-tv-92690344.html>. Acesso em: 04 dez. 2023.

[2] Cf. BVerfG, Urteil des Zweiten Senats vom 15. November 2023 – 2 BvF 1/22. Disponível em: <https://www.bverfg.de/e/fs20231115_2bvf000122.html>. Acesso em: 04 dez. 2023.

[3] Para maiores detalhes sobre a prática do TCF de tomada de decisões de declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade: Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. O Apelo ao Legislador – Appellentscheidung – na Práxis da Corte Constitucional Federal Alemã. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 188, p. 36-63, abr./jun., 1992.

[4] Cf. KRANENPOHL, Uwe. „Angst vor dem Freunde“ oder ein „Problem der knappen Legitimation“? Bundesverfassungsgericht und Bundestag. In: Oberreuter, Heinrich (ed.). Macht und Ohnmacht der Parlamente. Baden-Baden: Nomos, 2013, p. 95-113, 96s.; e Bundesverfassungsgericht. Jahresstatistik 2020. Disponível em: <https://www.bundesverfassungsgericht.de/DE/Verfahren/Jahresstatistiken/2020/gb2020/Gesamtstatistik%202020.pdf?__blob=publicationFile&v=2>. Acesso em: 04 dez. 2023.

[5] Essa discussão já tem começado a ser travada no contexto dessa decisão: Cf. STARKE, Lennart. Eine verpasste Chance. Disponível em: <https://verfassungsblog.de/eine-verpasste-chance/>. Acesso em: 04 dez. 2023.

[6] Cf. BVerfGE 157, 30 – Klimabeschluss (2021).

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