Turbulência na Argentina

'Corte Suprema terá dificuldade para validar decreto de Milei', afirma Zaffaroni

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30 de janeiro de 2024, 8h51

Uma das principais medidas de início de mandato do novo presidente da Argentina, Javier Milei, o Decreto de Necessidade e Urgência 70/2023 desregula a economia do país. A norma flexibiliza direitos trabalhistas, retira o controle dos preços de aluguéis e alimentos e abre o caminho para a privatização de empresas estatais. Conforme era esperado, a medida provocou enorme controvérsia no país e, na opinião do ministro aposentado da Corte Suprema argentina Eugenio Raúl Zaffaroni, o tribunal terá muita dificuldade para declarar a sua constitucionalidade.

Spacca

Como advogado do governador da província de La Rioja, Ricardo Quintela, Zaffaroni moveu ação contra o decreto na Corte Suprema. Para ele, a norma é inconstitucional e uma forma que Milei encontrou de driblar o Congresso, porque não há situação de necessidade e urgência que autorize o Poder Executivo a implementar tais reformas unilateralmente. A Câmara Nacional de Apelações do Trabalho da Argentina suspendeu uma parte da regulação. E a juíza do Trabalho Liliana Rodríguez Fernández sustou seis artigos da normativa.

Caso prevaleçam, o decreto e a chamada Ley Omnibus (lei geral) pacotão com 523 artigos que promove reformas ultraliberais na economia e já recebeu um parecer favorável de comissões da Câmara dos Deputados — vão “destruir toda a harmonia da legislação argentina” e gerar graves consequências sociais, avalia o advogado.

Professor aposentado de Direito Penal e Criminologia da Universidade de Buenos Aires, e citado constantemente na jurisprudência brasileira, Zaffaroni afirma que a proposta de Milei de ampliar a legítima defesa para blindar policiais de processos por abusos pode corromper as instituições e tornar os agentes sócios do crime organizado.

O jurista diz ainda que a finada “lava jato” foi um caso de lawfare, conceito que designa o uso estratégico do Direito para fins políticos, geopolíticos, comerciais ou militares. Ele destaca que a prática tem sido empregada mundialmente contra políticos que contrariam os interesses do poder financeiro que constitui o “grande crime organizado” do planeta. Enquanto existirem Judiciários e institucionalização fracos, opina o ministro aposentado, iniciativas à moda do lavajatismo vão continuar surgindo.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Zaffaroni — que também foi juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos — falou sobre todos esses temas e lamentou ainda o plano da vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, de revisar condenações contra a última ditadura militar do país (1976-1983).

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O senhor entrou com ação na Corte Suprema contra o Decreto de Necessidade e Urgência 70/2023, editado pelo presidente Javier Milei para desregular a economia argentina. Por que esse decreto contraria a Constituição?
Raúl Zaffaroni —
Há na Constituição uma disposição que proíbe expressamente o Poder Executivo de exercer funções legislativas, sob pena de nulidade absoluta. E há uma exceção para situações de necessidade e urgência. São situações pontuais, que sejam percebidas como de necessidade e urgência pela população, como uma guerra civil, algo assim. O dispositivo que permite os decretos de necessidade e urgência foi usado na reforma constitucional de 1994, mas excepcionalmente.

O que acontece agora é que o presidente editou um decreto, que ele chama de necessidade e urgência, e sem intervenção do Congresso, para legislar e modificar mais de 70 disposições legais. Qual é a necessidade? Qual é a urgência? Milei fala que é a situação econômica do país. Mas, por mais que a situação econômica do país esteja complicada, a solução que ele propõe para alterar mais de 70, 80 leis via decreto é uma solução ideológica, conforme a ideologia dele. Há uma situação de necessidade e urgência conforme a ideologia dele.

A ideologia de Milei é uma ideologia anarcocapitalista, que busca destruir o Estado, excluir todas as intervenções do Estado que não sejam as penais. Mas em três anos e seis meses vamos escolher outro presidente, que pode ter uma ideologia diferente. O que Milei quer fazer é privatizar, por decreto, empresas públicas. O futuro presidente, daqui a três anos e meio, pode seguir o mesmo critério e expropriar empresas privadas por decreto. É uma coisa louca. Se eu tivesse US$ 100 milhões e quisesse fazer um investimento na Argentina, e perguntasse ao meu advogado qual é a segurança jurídica na Argentina, e ele comentasse isso, eu não iria investir US$ 1.

Aliás, a jurisprudência constitucional da Corte Suprema argentina não é obrigatória para todos os juízes. E temos Códigos Civil, Comercial, Penal, mas com 25 interpretações diferentes cada, uma por cada estado, e a federal, e não temos cassação. Assim, ninguém cumpre a função nomofilácica (de manutenção da integridade do Direito). Quem vai investir na Argentina nessas condições?

ConJur — A Câmara Nacional de Apelações do Trabalho da Argentina suspendeu uma parte do decreto de Milei. A corte entendeu que não está comprovada nem a necessidade, nem a urgência que justifique contornar o Congresso, que é quem legisla, e editar um decreto com tão importantes e numerosas medidas. A decisão mostra que Milei tem um viés autoritário e não buscará dialogar com o Congresso?
Raúl Zaffaroni — Milei faz declarações contraditórias. Ele diz que vai dialogar (com o Congresso), mas depois fala que não vai negociar nada. Os ministros que vão ao Congresso explicar o decreto e a chamada Ley Omnibus estão confusos, falam uma coisa e depois um jornalista ou deputado diz que não é bem assim, que é diferente, então percebem que incluíram algo errado nos projetos. É uma coisa caótica. Vai destruir toda a harmonia da legislação argentina.

E o presidente está ameaçando o Congresso, dizendo que se o Congresso não aprovar a Ley Omnibus e o decreto de necessidade e urgência, as consequências vão ser piores, a redução do orçamento vai ser mais brutal, não haverá verba para nada. O dólar subiu, os preços dos artigos de primeira necessidade — água, energia, alimentos — estão subindo em uma velocidade incrível, os salários aparentemente estão congelados. Isso vai gerar um mal-estar social enorme. E consequências que, espero, não sejam violentas.

A verdade é que estamos em um vazio político. A direção do movimento popular se perdeu, falhou. Não temos condução política. Por sorte, a Confederação Geral do Trabalho assumiu a condução dos protestos — o que é muito importante, porque coloca limites nas manifestações, restringe situações de violência.

ConJur — Milei afirmou que pretende reduzir a maioridade penal para 14 anos, estabelecer políticas de “tolerância zero” contra a criminalidade e legalizar as armas. Como o senhor avalia as ideias do presidente nas áreas penal e de segurança?
Raúl Zaffaroni — Ainda não há nada sobre a legalização de armas de fogo. Reduzir o limite da responsabilidade juvenil para 14 anos é uma iniciativa que aparece cada vez que há um governo reacionário e não só reacionário, também governos populares têm proposto isso, achando que, desse jeito, não vão perder votos. São reféns da mídia, uma mídia que procura o ódio, e a nossa mídia é monopolizada, mais do que a dos brasileiros. Então sempre aparecem propostas do tipo. Mas não é possível implementá-las por decreto de necessidade e urgência. O decreto de necessidade e urgência não pode abranger matéria penal, nem matéria impositiva ou eleitoral. Isso tem de ser feito por lei.

Existem alguns aspectos penais na Ley Omnibus, como uma reforma na legítima defesa, que é absurda. Ela estabelece que ninguém que for afetado por um policial que praticou um crime pode ir à Justiça, nem seus familiares. Isso é inconstitucional. Eu não sei quem faz certos projetos, porque o que querem fazer com uma legítima defesa está feito e sempre falamos a mesma coisa. Se um criminoso está fugindo e, na fuga, faz disparos com uma arma contra viaturas, e se os policiais atirarem nele, estarão agindo em legítima defesa. Sabemos disso. Não li ninguém que falasse algo diferente na vida. Mas outra coisa, absurda, é a presunção absoluta de legalidade dos atos dos policiais. Nós podemos nos defender legitimamente. Mas é um direito, e não um dever. Se alguém me quebra a cara, e eu não me defendo, não acontece nada. Eu tenho o direito de me defender, não o dever. Os funcionários públicos, os policiais, têm o dever de me defender. É um dever jurídico. Presumimos que os funcionários públicos não praticam crimes. Se praticam, cabe ao Ministério Público provar que praticaram. É o princípio da presunção de inocência. Então, é um absurdo insistir nessas coisas. Quando o ministro da Justiça (o advogado Mariano Cúneo Libarona) tem de justificar essas medidas, ele fala de outras coisas. Não o conheço muito bem, mas parece ser uma pessoa mais ou menos razoável. Mas penso que essas ideias vêm de Patricia Bullrich, que é a ministra da Segurança.

O risco disso é destruir as polícias. Quando as polícias podem fazer o que querem, elas viram corruptas, parte vira sócia do crime organizado. Aí surge um grande problema. As polícias têm de ser cuidadas, têm de ser bem pagas, é preciso ouvir os trabalhadores policiais, que são os que estão nas trincheiras. Uma política diferente, de autonomização das polícias, é um grande risco.

ConJur — No Brasil, a grande autonomia das polícias gerou a criação das milícias, especialmente no Rio de Janeiro. Existe o risco de isso acontecer na Argentina?
Raúl Zaffaroni — Neste momento, não. Mas pode acontecer. É um risco para o futuro. Temos uma situação muito séria na cidade de Rosário (interior da Argentina). Polícia corrupta, associada ao crime organizado. Mas é algo localizado, algo da cidade de Rosário. A realidade da Argentina é diferente da do Brasil. Hoje nós temos um índice de homicídios de cerca cinco por cem mil habitantes, vocês têm 22 por cem mil. Mas eu não esqueço que o Equador, há dez anos, tinha um índice de homicídios de sete por cem mil habitantes, e hoje tem 45 por cem mil. Destruir tudo isso é fácil.

ConJur — A criminalidade é um grande problema na América Latina. Como combatê-la de forma eficaz sem violar os direitos fundamentais de acusados?
Raúl Zaffaroni — O fundamental é promover a justiça social. No entanto, é preciso fazer uma distinção básica entre crimes graves, contra a vida, contra a liberdade sexual, de uma delinquência de média intensidade e de uma delinquência de baixa intensidade. E tentar por todos os meios evitar a cadeia em casos de delinquência de média e baixa intensidade. O aprisionamento massivo de pessoas é um fator de reprodução da criminalidade. O aprisionamento massivo leva à superlotação das prisões, e a superlotação das prisões faz com que o controle interno das prisões fique nas mãos da criminalidade organizada, submetendo o resto da população penitenciária a condições de subordinação. Com essas condições, jogar um jovem em uma cadeia é criar um delinquente. Isso é muito evidente. Quando um fenômeno é disfuncional, ele tem de ser detido. Mas essa disfuncionalidade não é detida porque há interesse em caotizar as nossas sociedades. Sociedades caóticas são sociedades com medo. A mídia insufla mais medo, pânico, terror, e a população pede mais punição. A polícia fica mais livre e mais corrupta, há uma destruição da institucionalização das polícias.

Nas sociedades caóticas, o Estado perde o monopólio do poder punitivo, do exercício do poder punitivo. O poder punitivo é exercido pelas polícias e o poder punitivo é exercido informalmente pelo crime organizado. Aí vem alguém “inteligente”, uma “inteligência” que jamais falta nos nossos países, falar em usar as Forças Armadas como polícia. Mas elas não têm treinamento para isso, então cometem erros e perdem o respeito da população.

O resultado é um país caótico, que perde o monopólio do exercício do poder punitivo, perde o monopólio da arrecadação fiscal — porque é isso o que se chama de corrupção — e tem enfraquecida a defesa nacional. É menos Estado. Ficamos mais vulneráveis à vitimização do colonialismo. Estamos vivendo, geopoliticamente, uma situação de colonialismo financeiro.

ConJur — Grande parte da criminalidade na América Latina se deve ao tráfico de drogas e às facções que o controlam basta ver a recente crise no Equador. Descriminalizar ou legalizar o uso e a venda de drogas seria uma medida positiva?
Raúl Zaffaroni — Há diversas coisas a falar sobre drogas, mas a cocaína é o único produto de economia primária que conseguimos inserir no mercado dos Estados Unidos. Agora ela está sendo substituída pelas drogas sintéticas. Devagar, isso vai acontecendo. O custo de produção da cocaína é baixo, e o principal demandante da cocaína são os EUA. A cocaína chega aos EUA com preço free on board relativamente baixo. Mas ao consumidor americano, chega com um preço cinco ou seis vezes maior. Então onde fica a renda do tráfico de cocaína? Nos EUA.

Há uma divisão internacional do trabalho perfeita. Não é como no tempo da Lei Seca, da proibição do álcool, em que o produto tóxico era produzido nos EUA. A concorrência pelo mercado consumidor produzia-se nos EUA, a luta entre as máfias era no interior dos EUA. Agora tudo isso fica abaixo do Rio Bravo, e o maior ganho fica nos EUA, onde há uma perfeita rede de distribuição. E se tem algum negro envolvido, então ele é quem vai para a cadeia.

A Drug Enforcement Agency (DEA), em termos econômicos, é a comissão de regulação do preço internacional da cocaína. Se eliminam um produtor na Colômbia, no México, e há menos cocaína no mercado, o preço sobe. Então a DEA relaxa um pouquinho. Se fica muito relaxada, o preço baixa demais, aí a DEA aperta um pouquinho. É a comissão internacional do preço de cocaína.

E onde se faz a lavagem de dinheiro? Nos refúgios fiscais. Todo mundo sabe onde estão os refúgios fiscais. Às vezes tem algum escândalo, como os Panama Papers, mas nenhum alemão foi denunciado nos Panama Papers, nenhum americano. Há concorrência entre os refúgios fiscais, concorrência no serviço ilícito de lavagem e reciclagem de dinheiro internacional. E qual é o grande crime organizado, então? É o aparelho financeiro mundial.

ConJur — Sendo assim, não seria de interesse dos países latino-americanos legalizar as drogas, tanto pelo aspecto econômico quanto pelo de criminalidade organizada?
Raúl Zaffaroni — A legalização é uma questão que temos de discutir em algum momento. Especialmente a legalização da maconha, que é um negócio menor, não produz os mesmos efeitos mortíferos. Veja o caso do México. O México teve um presidente irresponsável (Felipe Calderón), que quebrou o equilíbrio que havia entre os cartéis. Neste momento, o México tem um surto de homicídios incrível, uma quantidade enorme de mortos e mais de cem mil desaparecidos. Pergunto: quantos anos teria demorado para o México ter a mesma quantidade de mortos por overdose de cocaína? Agora foi por overdose de chumbo.

ConJur — A vice-presidente Victoria Villarruel prometeu revisar a atual política de memória e direitos humanos da Argentina, que indenizou milhares de vítimas da repressão provocada pelo Estado durante a última ditadura militar (1976-1983). É possível juridicamente revisar as condenações a militares e as indenizações a famílias de perseguidos políticos? E qual seria o impacto dessas medidas para a sociedade?
Raúl Zaffaroni — Seria tentar apagar a memória histórica desses fatos. Hoje, a maioria dos condenados está velha. Passaram-se mais de 40 anos (do fim da ditadura). As condenações têm um valor simbólico, um valor de memória. Quanto ao valor da pena, duvido um pouco. Mas se o que essa senhora (Victoria Villarruel) quer é apagar a memória, é outra coisa. É acabar com o valor simbólico das condenações. Isso não vai ser facilmente tolerado, haverá séria resistência na sociedade argentina.

De qualquer jeito, quem falou isso foi ela, mas não Milei. É uma coisa meio estranha. Dizem que (o ex-presidente) Mauricio Macri está falando com ela por uma eventualidade em que Milei saísse da Presidência da República. Não tenho confirmação disso, mas não seria muito surpreendente. É um programa que não vai ter sucesso, sem dúvida.  Seja como for, Millei conseguiu obter 55% dos votos devido à grande pobreza da oferta opositora. Um candidato que era ministro da Economia (Sergio Massa), com 150% de inflação, nada simpático da militância do movimento popular. Um sujeito em que votamos para não votar em Milei, nada mais. E Milei também conseguiu um certo carisma, com um discurso de quebrar tudo, acabar com tudo. Mas isso é pessoal de Milei, não vai ser transferido para a vice-presidente. Se perder isso, o governo não vai ser salvo pela vice-presidente. É quase impossível.

ConJur — No Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi a principal barreira contra atos autoritários do ex-presidente Jair Bolsonaro. Como o senhor imagina que a Corte Suprema da Argentina atuará com relação a Milei?
Raúl Zaffaroni — Na nossa ação perante a Corte Suprema da Argentina, nós (Raúl Zaffaroni e Raúl Gustavo Ferreyra) fomos advogados do governador da província de La Rioja. Entramos na Corte Suprema por via da competência originária do tribunal, com o conflito entre uma província, um estado, e o Estado federal. Protocolamos a petição no sistema eletrônico da Corte Suprema à meia-noite, e às 10h do dia seguinte a Corte Suprema aceitou o governador como parte e passou o caso para a opinião do Ministério Público, que é o trâmite regular. A Corte Suprema fez isso corretamente, mas alguns jornalistas e políticos falaram que a Corte Suprema não tinha habilitado a ação. Isso porque, durante todo o mês de janeiro, o Judiciário fica em recesso, sem funcionar. E a Corte Suprema interrompeu as férias para resolver esse caso. Mas a Corte Suprema quase nunca faz isso, não faz há uns 25 anos.

Eu não sei o que vai acontecer, porque é muito difícil para a Corte Suprema dizer que o decreto de necessidade e urgência é constitucional. Não sei, talvez possa adiar a coisa um pouco, convocar uma audiência pública, por exemplo. Mas isso também seria um escândalo nacional. No dia da audiência pública, haveria uma concentração popular em frente ao Palácio de Justiça.

A Argentina tem uma Corte Suprema muito particular. O Brasil tem uma Suprema Corte com 11 ministros. Nós temos uma Corte Suprema com quatro ministros. Só na Argentina existe algo assim. E há outros problemas.

Os nossos políticos jamais se preocuparam muito com a institucionalidade, e o resultado é este: temos um Judiciário complicado.

Se os quatro ministros disserem que o decreto é constitucional, haverá um sério problema. A Corte Suprema não tem um grande prestígio público, pelo contrário, mas poderia aproveitar essa oportunidade para melhorar sua imagem junto ao público. E creio que alguns dos ministros pensarão nisso. É a lógica política de qualquer um.

ConJur — Por causa da contenção de medidas de Bolsonaro, o STF e seus ministros viraram alvos de partidários do ex-presidente, e a corte foi vandalizada na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. A Corte Suprema da Argentina pode vir a ser alvo de ataques se barrar medidas de Milei?
Raúl Zaffaroni — Bolsonaro, como qualquer governante, pelo menos em um certo momento, soube que era possível abrir uma frente de luta, duas, três. Depois, abriu demais e brigou com o Supremo gratuitamente. O que eu não entendo é o atual governo argentino abrir frentes de luta em 360 graus. É contra os trabalhadores, a Confederação Geral do Trabalho, as províncias, os governadores, as universidades, os artistas, os cinemas, os investigadores, as pequenas empresas… Não entendo essa tática. É muito pior do que fez Bolsonaro. Sim, Bolsonaro, depois, abriu frentes demais. Mas Milei está abrindo logo no começo, e ninguém fica satisfeito com isso. Isso é um problema. Não sei o que vai acontecer.

ConJur — Como o senhor avalia a “lava jato”?
Raúl Zaffaroni — É mais um caso de lawfare, assim como o caso dos subornos de Rafael Correa, no Equador, o caso de Cristina Kirchner, na Argentina, o caso de Evo Morales, na Bolívia, e o caso de Pedro Castillo, no Peru (todos ex-presidentes de seus países). Estão pedindo 34 anos de prisão para Castillo por crimes de rebelião no Peru. Castillo estava fazendo um discurso e, após dez minutos, foi preso por sua própria guarda. De que rebelião estamos falando? No pior dos casos, é uma tentativa impossível.

E vamos falar claro: os americanos estão praticando lawfare contra Donald Trump. Eu não gosto de Trump, não vou defender a personagem. Mas isso é diferente. Trump falou uma coisa que é verdade: “Eu não fiz nenhuma guerra”. Ele não fez nenhuma concessão ao complexo industrial-militar. Ele quis reindustrializar os EUA, produzir no país, não explorar o trabalho escravo fora. Ele quis ser protecionista. São interesses contrários aos interesses financeiros transnacionais. Por isso estão praticando lawfare contra ele também.

ConJur — O lawfare continuará sendo uma tendência mundial?
Raúl Zaffaroni — Sim. O caso mais claro de lawfare é contra (o ativista australiano) Julian Assange. Inventaram crimes, uma extradição irregular para os EUA (a Suprema Corte do Reino Unido julgará o último recurso contra a medida em fevereiro). Isso em uma Europa decadente. A voz mais progressista da Europa neste momento é o papa Francisco. Estão doidos?

ConJur — Por que o tema da corrupção encanta tanto a imprensa e a sociedade?
Raúl Zaffaroni — Porque a imprensa é parte do poder financeiro. Não é aliada, é parte. São grupos financeiros importantes que integram o poder financeiro. Há cerca de 40 anos, decidiram parar de produzir papéis verdes, que são a inflação, e passaram a produzir outros papéis de promessas de pagamento, que são o crédito. Foi uma mudança do capitalismo. O capitalismo produtivo passou para o capitalismo financeiro. A economia foi financeirizada, o aparelho financeiro cresceu, cresceu, cresceu, e submeteu o aparelho produtivo a ele. Os políticos do Hemisfério Norte, hoje, são reféns dos chief executive officers (CEOs, os diretores-executivos). Joe Biden (presidente dos EUA), na verdade, tem um poder limitado. E as transnacionais financeiras não têm nacionalidade, têm domicílio. E usam os políticos do seu domicílio segundo os seus interesses.

Por isso, penso que esquerda e direita não são termos úteis para definir as situações que estamos vivendo em nossos países. Eu prefiro falar de colonialismo, soberania, autodeterminação. A economia financeirizada controla a política. O antigo imperialismo atuava em benefício dos establishments dos países do Hemisfério Norte. Mas era conduzido por políticos, não CEOs. É algo muito diferente. É um mundo difícil de compreender.

ConJur — Quando os interesses econômicos dos grupos financeiros forem contrariados, vão surgir novos casos de lawfare, como a “lava jato”?
Raúl Zaffaroni — Sim, sem dúvida. Especialmente se temos Judiciários fracos, institucionalização fraca. Esse é o problema.

ConJur — Como são, por exemplo, os Judiciários brasileiro e de outros países latino-americanos?
Raúl Zaffaroni — O Judiciário brasileiro é mais forte do que o argentino. O nosso é mais fraco.

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