Opinião

Luta contra o racismo no futebol requer penas severas

Autor

  • Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga

    é advogado mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa professor a contrato do Master Diritto & Sport da Universidade La Sapienza de Roma membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) do Instituto dos Advogados do Distrito Federal (IADF) e da União Internacional de Advogados (UIA) membro honorário da Academia Petropolitana de Letras e sócio do Corrêa da Veiga Advogados.

27 de janeiro de 2024, 17h17

O Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial é comemorado em 21 de março. A data escolhida foi em razão do massacre praticado pela polícia do apartheid que deixou 69 negros mortos na cidade de Sharpeville, na África do Sul.

Desde aquele episódio, ocorrido em 1960, é claro que houve avanços, porém, insuficientes para se erradicar, de vez, essa chaga que é o preconceito racial.

No último final de semana o futebol internacional ficou marcado por dois episódios de racismo, que envolveram torcedores do Sheffield Wednesday, da Inglaterra, e da Udinese, da Itália, os quais imitaram gestos de macacos para os jogadores adversários, com registro imediato pelos equipamentos de transmissão.

Na Itália, o goleiro do Milan, Mike Maignan, informou ao árbitro e se retirou de campo, no que foi acompanhado pelos colegas de equipe. Em seguida, a partida foi retomada, mas o mal já estava feito, independentemente da vitória do Milan.

Reação mundial
Imediatamente as atitudes foram condenadas e repercutidas em todo o mundo, inclusive com a enérgica manifestação do presidente da Fifa, Gianni Infantino que apresentou uma proposta dura, mas necessária: derrota para a equipe cujos torcedores interrompam a partida por atos ou gestos racistas [1].

O futebol tem a graciosa virtude de unir culturas e povos, sem distinção de credo, raça ou origem. A linguagem da bola é universal. Contudo, os recentes episódios de discriminação racial ocorridos nas partidas de futebol em quase todo o mundo demonstram, de forma inconteste, que o preconceito é uma chaga que envergonha a raça humana e que tem que ser erradicada de uma vez por todas.

Antes dos questionamentos de como seria possível executar com precisão a medida sugerida pela Fifa, talvez seja o momento ideal para refletirmos acerca do que tem sido feito. Há algumas campanhas, medidas punitivas e alguma visibilidade, mas que não são suficientes para impedir essa abominação que é reflexo de uma sociedade doente.

Esporte bretão
O atleta Vinícius Júnior, do Real Madrid, sofre constantemente com ataques covardes e tem sido a principal voz de denúncia do racismo no esporte.

Na obra O Negro no Futebol Brasileiro, Mário Filho relata que no início do século 20 o futebol era praticado quase que exclusivamente por clubes de engenheiros e técnicos ingleses, além de jovens da elite metropolitana que conviviam nesse espaço. A base dos principais times de futebol era formada por profissionais liberais, servidores públicos, acadêmicos e bacharéis em Direito que monopolizavam os campeonatos nos bairros de elite.

Para se ter acesso ao Fluminense, era preciso pertencer a “boa família”, pois, do contrário, a pessoa certamente ficaria de fora. Alguns clubes da época demonstravam em seus próprios nomes sua inegável origem, como, por exemplo: Paissandu Cricket Club, The Bangu Athletic Club e o Rio Cricket and Athletic Association, sendo que este último era fechado para ingleses e filhos destes. Já o Bangu, apesar de ser de ingleses, admitia negros em seu elenco, que eram os operários da fábrica e os colocava em pé de igualdade com os mestres ingleses, o que não acontecia com Botafogo e Fluminense (MÁRIO FILHO, 2003 – p. 29).

Pioneirismo cruzmaltino
A quebra desse paradigma ocorreu somente em 1923, com a vitória do Vasco da Gama, que era um clube de origem popular e que abriu novas oportunidades para a nobre prática desportiva, valendo destacar a constatação feita pelo cronista Mário Filho:

“Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um multirracial era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada. Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor”.

A triunfal conquista do Vasco em 1923 e o bicampeonato estadual no ano seguinte incomodaram os outros clubes cariocas, afinal, como poderia um time formado por jogadores negros, pobres e oriundos da periferia ter tanto sucesso dentro das quatro linhas?

Inicialmente, tentaram excluir os jogadores que não pudessem assinar a súmula, em seguida, os clube de elite se desligaram da Liga organizadora do campeonato e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Amadores (Amea). Ao Vasco foi negado o acesso à referida associação, sob a falsa alegação do clube não ter um estádio próprio, porém, o real motivo da negativa veio à tona quando foi apresentada uma proposta indecorosa, na qual o Vasco da Gama seria admitido na Amea desde que eliminasse do time 12 jogadores, mais explicitamente os negros, pardos, caixeiros e operários.

Diante da proposta racista e preconceituosa, o clube cruzmaltino não se intimidou e apresentou a seguinte resposta:

“Estamos certos de que V.Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se à Amea, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923. São 12 jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de suas carreiras. Um ato público que os maculasse nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias. Nestes termos, sentimos ter que informar à V.Exa. que desistimos de fazer parte da Amea.”

Neste ano de 2024 a “Resposta Histórica” comemora 100 anos e pode ser considerada a “Lei Áurea” do futebol brasileiro, pois, no ano seguinte, em 1925, o Vasco foi admitido na Amea, com dignidade.

O ídolo Friedenreich
Independentemente de preferências clubísticas, raça, credo ou cor, os gênios da bola foram os responsáveis pelo fascínio do público em admirar a arte dentro dos gramados. Muitos craques tiveram esse importante papel, apesar de um número extremamente reduzido destes é que grava seu nome no mural história.

Arthur Friedenreich foi o primeiro jogador brasileiro a ter sua popularidade reconhecida ao ser carregado, em triunfo, na vitória do campeonato Sul-Americano de 1919. Sua chuteira ficou exposta na vitrine de uma joalheria no centro do Rio de Janeiro.

Este jogador traduz o significado da raça brasileira. Foi contemporâneo de Charles Miller e sua infância se deu em um período em que o futebol era praticado pela elite nacional, composta também de filho de imigrantes, que praticavam esse esporte no São Paulo Athletic Club, no Germânia e no Mackenzie College. Nesse círculo infelizmente não havia espaço para negros e pobres, daí a importância de Friedenreich que ajudou a iniciar o processo de integração racial e cultural entre os povos. Nascido no bairro da Luz, em São Paulo, era filho de um alemão e uma empregada doméstica de pele escura, era mulato de olhos claros e estudou nos melhores colégios de São Paulo.

Medidas necessárias
É absolutamente incompreensível que, em pleno século 21, atitudes irracionais sejam manifestadas por certos torcedores de determinados clubes. O racismo é um ato criminoso e tem que ser punido da forma mais severa possível.

Os códigos desportivos disciplinares preveem penas para essa prática criminosa, inclusive, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê a exclusão do clube do torneio.

A exclusão do time envolvido, daquele campeonato, pode parecer uma pena injusta e desproporcional, pois, afinal, foi apenas um grupo de indivíduos (não evoluídos) que cometeu o ato. Nada obstante, a partir do momento em que você pune a agremiação em razão do ato criminoso praticado por determinado grupo, possivelmente não haverá reincidência, pois os dirigentes terão cuidados redobrados no tocante a fiscalização de seus torcedores.

Importante destacar que no Brasil existe o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, entidade proativa e atuante, que reafirma ser o futebol um importante vetor de inclusão social e de luta contra a violência e a discriminação racial. Trata-se de um movimento que tem se consolidado como um verdadeiro instrumento de debate, alerta e conscientização acerca da discriminação racial no futebol brasileiro, com o desenvolvimento de ações preventivas e educacionais.

Pseudotorcedores e a coragem de Vini Jr.
Portanto, além de os operadores do Direito Desportivo terem a coragem de aplicar as penas disciplinares mais rígidas dos códigos disciplinares correspondentes, é fundamental que se comece a utilizar, de forma eficaz, as ferramentas e leis disponíveis, em especial as criminais, sem desculpas, sem atenuantes, de forma imediata e firme, sem omissão e conivência com as atitudes criminosas que devem ser banidas do futebol mundial.

Após a finalização deste artigo foi divulgada a alvissareira notícia de que o “pseudotorcedor” que proferiu insultos racistas contra o goleiro foi identificado e banido do estádio da Udinese. A medida foi possível graças a união de forças entre os serviços policiais e as câmeras de segurança do Estádio Blueenergy. Além disso, a Comissão Disciplinar da Série A, organizadora do Campeonato Italiano, puniu a Udinese com a realização de um jogo com portões fechados.

A batalha contra a discriminação racial é tarefa árdua e os casos de racismo que são noticiados causam perplexidade, porém, ainda são poucos aqueles cidadãos que, como o atleta Vinícius Júnior, têm coragem para enfrentar e mudar essa realidade.

Fazendo coro ao presidente da Fifa, De uma vez por todas: Não ao racismo! Não a qualquer forma de discriminação!

 


[1] “Os acontecimentos que tiveram lugar em Udine e Sheffield no sábado são totalmente abomináveis e completamente inaceitáveis. Não há lugar para o racismo ou qualquer forma de discriminação – tanto no futebol como na sociedade. Os jogadores afetados pelos acontecimentos de sábado têm todo o meu apoio. Para além do processo em três fases (jogo interrompido, jogo novamente interrompido, jogo abandonado) temos de implementar uma perda automática de direitos para a equipa cujos adeptos cometeram racismo e causaram o abandono do jogo, bem como a proibição de acesso aos estádios em todo o mundo e acusações criminais para os racistas.

A FIFA e o futebol são totalmente solidários com as vítimas de racismo e de qualquer forma de discriminação. De uma vez por todas: Não ao racismo! Não a qualquer forma de discriminação!”

Autores

  • é advogado, mestre em Ciências Jurídicas (UAL), professor à contrato do Master Diritto & Sport da Università La Sapienza Roma, vice-presidente de Relações Internacionais e titular da Cadeira nº 3 da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Brasil), presidente da Comissão de Direito Desportivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), auditor do STJD do Basquete, membro honorário da Academia Petropolitana de Letras, membro da Associação Portuguesa de Direito Desportivo e da Associação de Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa e autor de livros.

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