Opinião

Inserção da sustentabilidade no enforcement do Direito Concorrencial

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2 de novembro de 2023, 7h01

O começo de julho deste ano foi marcado pelo dia mais quente, em escala global, já registrado na história, segundo dados do Centro Nacional de Previsão Ambiental dos Estados Unidos [1]. Mais recentemente, em setembro, uma onda de calor acometeu o Brasil durante seu inverno, fazendo com que os termômetros ultrapassassem a marca dos 40º C em diversas regiões do país [2].

Estes não foram episódios isolados: de acordo com estudo de 2019 publicado no periódico científico Nature, nos últimos anos, a Terra vem apresentando temperaturas cada vez mais altas, em um menor período de tempo, se comparado com qualquer outro momento dos últimos 2000 anos [3].

O principal problema são as consequências que referido aumento de temperatura pode acarretar à humanidade e ao planeta como um todo. Muito já se falou sobre alguns de referidos efeitos, tais quais a migração forçada de populações litorâneas decorrente da erosão das cidades costeiras e a escassez de água e alimentos para abastecer a população mundial [4]. Mas os desdobramentos podem ser muito menos óbvios: conforme o estudo Empirical evidence of mental health risks posed by climate change [5], publicado no periódico Proceedings of the Nacional Academy of Sciences, o aquecimento global pode trazer riscos, inclusive, à saúde mental das pessoas, as quais ficam mais suscetíveis a desenvolver estresse, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático.

Diante desse cenário, questiona-se: há algo a ser feito, no âmbito do Direito da Concorrência, para auxiliar a frear uma iminente tragédia climática global?

Trataremos do assunto em pouquíssimas palavras para incentivar a discussão e reflexão sobre o assunto.

No Brasil, a Constituição de 1988 prevê, em seu artigo 170, a defesa do meio ambiente como um dos princípios da ordem econômica nacional, sendo possível, inclusive, a aplicação de tratamentos diferenciados a produtos e serviços, a depender de seu impacto ambiental, bem como de seus processos de elaboração e prestação. Nesse sentido, dúvida não há quanto à determinação, pelo ordenamento jurídico pátrio, de que um desenvolvimento mais sustentável consiste em um dos objetivos a serem perseguidos pelo país.

No entanto, referida determinação ainda não encontra eco na atuação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), autoridade antitruste brasileira. Inicialmente, nota-se a ausência da publicação de qualquer documento específico sobre sustentabilidade ambiental pela autarquia (como os reconhecidos Guias do Cade, que estabelecem diretrizes que norteiam determinados temas referentes à política de defesa da concorrência).

Não bastasse o exposto, os precedentes do Cade também demonstram certa resistência em considerar questões ambientais na sua atuação, já tendo sido exaradas decisões, inclusive, que expressamente afirmaram que a atuação da autoridade antitruste deveria se ater a uma análise estritamente concorrencial, na medida em que outras questões (como aquelas relacionadas ao meio ambiente) não estariam abarcadas por sua competência [6].

Por outro lado, a experiência internacional evidencia que a sustentabilidade ambiental consiste em uma variável que vem refletindo cada vez mais na política antitruste das jurisdições estrangeiras. Materiais publicados pela Autoriteit Consument & Markt (autoridade concorrencial holandesa)[7], pela Competition and Market Authority (autoridade concorrencial do Reino Unido)[8], pela Bundeskartellamt (autoridade concorrencial alemã)[9] e pela Hellenic Competition Comission (autoridade antitruste grega)[10] já trazem diretrizes para a aplicação da legislação antitruste em questões de sustentabilidade.

A própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou, em 2020, o paper Sustainability and Competition [11], por meio do qual propôs formas de se analisar a relação entre o Direito Antitruste e a sustentabilidade de modo a garantir, de um lado, que a legislação concorrencial não impeça ou dificulte a implementação de atividades privadas destinadas à promoção do desenvolvimento sustentável e, de outro, que a sustentabilidade não se torne um pretexto para que os agentes econômicos se envolvam em condutas anticompetitivas.

E o Brasil ainda não se debruçou sobre o assunto…

Como forma de incentivo à nossa mudança de postura, voltemos à análise da produção, da experiência e do conhecimento internacional sobre o tema. Da análise de referidas publicações, verifica-se que fatores de sustentabilidade ambiental podem ser incorporados à análise concorrencial implementada pelas autoridades antitruste tanto no âmbito do controle de estruturas, como na esfera do controle de condutas.

No que se refere à análise de atos de concentração, defende-se que as questões de sustentabilidade passem a ser entendidas como fatores que impulsionam o desenvolvimento técnico e o progresso econômico [12], objetivo que, inclusive, já é levado em consideração pelo Cade no âmbito do controle preventivo, conforme previsto no artigo 88, §6º, inciso I, alínea c, da Lei nº 12.529/2011.

Nesse sentido, as requerentes de operações econômicas poderiam apresentar às autoridades eventuais ganhos de sustentabilidade decorrentes de determinado ato de concentração para que eles sejam considerados ao se decidir pela sua aprovação ou reprovação. Ou seja, não há necessidade de abandono da análise tradicional de atos de concentração, mas, nesses casos, também seriam levados em consideração externalidades relacionadas à sustentabilidade.

Por outro lado, mesmo nos casos em que seja improvável que prejuízos ao meio ambiente acarretem a reprovação de determinada operação, a constatação de produção de referidos efeitos negativos relacionados ao desenvolvimento sustentável poderia fundamentar a imposição de remédios às requerentes [13], consubstanciados, principalmente, em remédios comportamentais.

Já no âmbito do controle de condutas, as supramencionadas publicações demonstram que a legislação antitruste pode ser utilizada como forma de evitar e punir condutas que, além de configurarem infrações à ordem econômica, também são prejudiciais à sustentabilidade, principalmente considerando existir uma sobreposição entre sustentabilidade, bem-estar do consumidor e eficiência produtiva e dinâmica [14]. Inclusive, eventuais prejuízos ao meio-ambiente gerados a partir da implementação de determinada conduta anticompetitiva poderiam ser entendidos pelas agências concorrenciais como um fator agravante da conduta, acarretando a aplicação de multas mais elevadas aos infratores [15].

Ora, pode-se pensar, por exemplo, na hipótese de um agente econômico que viola as normas ambientas e, com isso, reduz artificialmente os seus custos de modo a criar para si uma vantagem competitiva indevida, em prejuízo dos concorrentes e do mercado como um todo. Apesar de o Cade não ter a competência ou a expertise para verificar se a prática em si seria, de fato, uma infração à legislação ambiental, dúvida não há quanto à possibilidade de atuação da autoridade decorrente da criação de distúrbios concorrenciais por referida conduta.

Além disso, conforme se depreende dos materiais internacionais acima destacados, o fator da sustentabilidade ambiental também pode autorizar determinadas condutas que tenham o potencial de causarem prejuízos à concorrência do setor caso haja a produção de ganhos de eficiência relacionados ao meio ambiente [16].

Nesses casos, é necessária uma especial cautela para que determinada iniciativa não mascare um eventual objetivo espúrio de arrefecimento da competição entre os players do setor. Por isso, é imprescindível que alguns requisitos sejam preenchidos para a autorização de referidas condutas, sobretudo 1) que os consumidores do serviço ou produto cujo mercado fora afetado recebam uma parcela justa dos benefícios decorrentes da conduta; 2) que haja a criação de restrições unicamente necessárias e indispensáveis para a consecução dos objetivos do acordo; e 3) que haja a preservação da concorrência em relação a uma parte substancial do mercado em questão [17][18].

Pelo exposto, ao considerar a sustentabilidade no controle de estruturas e de condutas, o país pode fortalecer sua política concorrencial e contribuir para um desenvolvimento responsável e consciente, em harmonia com o objeto de preservação do meio ambiente para as futuras gerações. Trata-se, sem dúvidas, de um claro progresso da política antitruste nacional!

Continuamos a insistir que a “cultura da concorrência” pede (e pode) mais….

 


[1] NEVES, Ernesto. Terra registra o dia mais quente da história. Veja, 04 de julho de 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/agenda-verde/terra-registra-o-dia-mais-quente-da-historia. Acesso em: 20 de julho de 2023.

[2] Onda de calor no Brasil: semana terá sol e temperaturas que podem chegar a 40ºC; veja previsão. Exame, 18 de setembro de 2023. Disponível em: https://exame.com/brasil/onde-calor-no-brasil-semana-tera-sol-e-temperaturas-que-podem-chegar-a-40oc-veja-previsao/ . Acesso em: 19 de setembro de 2023.

[3] GÓMEZ-NAVARRO, Juan Jose; NEUKOM, Raphael; STEIGER, Nathan; WANG, Jianghao; WERNER, Johannes P. No evidence for globally coherent warm and cold periods over the preindustrial Common Era. Nature, 24 de julho de 2019. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41586-019-1401-2. Acesso em: 26 de julho de 2023.

[4] THOMAS, Jennifer Ann. Globo, 04 de abril de 2021. Disponível em: https://umsoplaneta.globo.com/clima/noticia/2021/04/04/como-o-aquecimento-global-afeta-a-vida-das-pessoas.ghtml. Acesso em: 17 de setembro de 2023.

[5] MIGLIORINI, Robyn; OBRADOVICH, Nick; PAULUS, Martin P.; RAHWAN, Iyad. Empirical evidence of mental health risks posed by climate change. Proceedings of the Nacional Academy of Sciences (PNAS), 2018. Disponível em: https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1801528115. Acesso em: 15 de setembro de 2023.

[6] Cf., por exemplo, voto proferido pelo Presidente Alexandre Cordeiro Macedo no Ato de Concentração n. 08700.009905/2022-83 (Requerentes: SustainIt Pte Ltd, Cargill, Incorporated, Louis Dreyfus Company Participations B.V. e ADM International Sarl). D.J. 21 de junho de 2023.

[7] AUTORITEIT CONSUMENT & MARKT. Guideline Sustainability agreements: Opportunities within competition law. Disponível em: https://www.acm.nl/sites/default/files/documents/second-draft-version-guidelines-on-sustainability-agreements-oppurtunities-within-competition-law.pdf. Acesso em: 25 de julho de 2023.

[8] COMPETITION AND MARKET AUTHORITY. Environmental sustainability agreements and competition law. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/environmental-sustainability-agreements-and-competition-law/sustainability-agreements-and-competition-law. Acesso em: 26 de julho de 2023.

[9] Bundeskartellamt. Offene Märkte und nachhaltiges Wirtschaften – Gemeinwohlziele als Herausforderung für die Kartellrechtspraxis. Disponível em: https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Publikation/DE/Diskussions_Hintergrundpapier/AK_Kartellrecht_2020_Hintergrundpapier.html. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

[10] HELLENIC COMPETITION COMISSION. Staff Discussion Paper on Sustainability Issues and Competition Law. Disponível em: https://www.epant.gr/files/2020/Staff_Discussion_paper.pdf. Acesso em: 25 de julho de 2023.

[11] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Sustainability and Competition. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sustainability-and-competition-2020.pdf. Acesso em: 24 de julho de 2023. O paper explora a interação entre, de um lado, o direito e a política concorrenciais e, do outro, questões de sustentabilidade, analisando se a sustentabilidade deve desempenhar um papel na legislação e na política antitruste, sob uma perspectiva normativa. Além de analisar questões relacionadas aos processos antitruste (como objetivos, prioridades, procedimentos de aprovação, capacidade, multas e cooperação internacional), o trabalho também ilustra como questões de sustentabilidade podem ser aplicadas no direito da concorrência e como se daria essa relação.

[12] HELLENIC COMPETITION COMISSION. Op. cit., p. 39.

[13] HELLENIC COMPETITION COMISSION. Op. cit., p. 40.

[14] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Op. cit., p. 19.

[15] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Op. cit., p. 29.

[16] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Op. cit., p. 21.

[17] COMPETITION AND MARKET AUTHORITY. Op. cit., In. Demonstrate that the conditions for an individual exemption are met.

[18] AUTORITEIT CONSUMENT & MARKT. Op. cit., p. 12.

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