Opinião

Inidoneidade licitatória e infrações ambientais: o recente posicionamento da AGU sobre o tema

Autores

  • Mário Saadi

    é sócio de Direito Público e Infraestrutura do Cescon Barrieu Flesch & Barreto Advogados. É professor do mestrado profissional da FGV Direito SP. Doutor (USP/2018) mestre (PUC-SP/2014) e Bacharel (FGV-SP/2010) em Direito.

  • Roberta Jardim de Morais

    é pós-doutora em Direitos Humanos e doutora em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

19 de janeiro de 2024, 7h12

O cometimento de infrações ambientais pode impactar a participação do eventual infrator em licitações? Em conformidade com o entendimento veiculado pela Advocacia Geral da União (AGU) no Parecer nº 016/23, no caso das infrações apontadas como especialmente graves, a compreensão é de que sim: o infrator ambiental, com fundamento no artigo 155, X, da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações),[1] poderia ser considerado como inidôneo para participar de futuras licitações.

A edição do parecer foi motivada por consulta, formulada pelo consultor-geral da União, que solicitou a análise, em tese, da possibilidade de aplicação de medidas sancionatórias, previstas no âmbito da legislação de licitações e contratos administrativos, às pessoas naturais e jurídicas responsáveis pela prática de infrações ambientais, especialmente graves. Após ouvida a Procuradoria Nacional de Defesa do Clima e do Meio Ambiente (Pronaclima), foi editado o parecer neste sentido.

A tese central do parecer da AGU é fundamentada na interpretação de que, tendo a Constituição consagrado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o cometimento de infrações que o abalam, de forma especialmente grave, seria conduta que agrediria valor essencial à própria vida e que, portanto, seria eventualmente considerada como “comportamento inidôneo”, capaz de ensejar a aplicação da penalidade de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar, nos termos da Nova Lei de Licitações.[2] Além disso, seria possível a discussão sobre a extinção do contrato administrativo, com base na mesma lei.[3]

O parecer da AGU segue a interpretação de que condutas especialmente lesivas ao meio ambiente são aquelas tipificadas como infrações ambientais que, em tese, correspondam a tipos penais considerados, por si, de maior potencial ofensivo, quando houver violação qualificada ao meio ambiente. São exemplos: as infrações de incêndio e desmatamento, a lesão a áreas superiores a 1000 há (mil hectares); a infração de elaboração ou apresentação de documento falso a órgãos ambientais, a presença de dano significativo ao meio ambiente, em decorrência do uso da informação falsa, incompleta ou enganosa; e a infração de maus-tratos a cães e gatos, a ocorrência de morte do animal.[4]

Este parecer ainda ressalta a necessidade de observância do princípio do contraditório e da ampla defesa, inclusive com o afastamento da aplicação da penalidade quando afastada a autoria e/ou a materialidade do dano. No entanto, o posicionamento da AGU é o de que a aplicação da orientação é prospectiva não em relação a condutas praticadas após a sua edição, mas às infrações especialmente graves cujos autos tenham sido lavrados em momento posterior à sua publicação.

Em conformidade com a hermenêutica apresentada, a prática de infrações ambientais especialmente graves pode configurar razão de interesse público para fins de encerramento de contratos administrativos firmados, por exemplo, com base na Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (Lei 12.462/2011), agora revogada, em parte, pela Nova Lei de Licitações.

A partir do conteúdo deste parecer da AGU, destacamos que tal documento foi preparado utilizando-se, por analogia, o Parecer JM-01, proferido em razão de discussão sobre a prática de atos antidemocráticos no País. A analogia apenas seria aplicável se inexistisse hipótese semelhante à situação analisada, o que, definitivamente, não é o caso da consulta apresentada, já que os temas objeto dos Pareceres nº 016/23 e JM-01 não guardam correlação. Além disso, há aspectos jurídicos próprios do Parecer nº 016/23 que devem ser levados em consideração, como as normas ambientais aplicáveis ao tema.

Com efeito, o Brasil possui legislação ambiental de ponta, com suporte em avalizada doutrina e notáveis posicionamentos jurisprudenciais. No que concerne à temática posta sob a análise da AGU, podemos dizer que não se trata de assunto recente.

Em nosso país, a previsão de sanções afetadas à interdição de direitos de contratar com poder público, por ocasião do cometimento de infrações ambientais, remonta no mínimo a 12.02.1998, data da edição da Lei 9.605/1998, que, em seu artigo 10, dispõe sobre essa penalidade.[5] Ademais, o artigo 22 do Decreto Federal 6.514/2008 tem a mesma previsão. A menção a tais dispositivos está contemplada no parecer da AGU, não se compreendendo, realmente, a motivação de se ter recorrido à analogia com atos antidemocráticos para avaliação da consulta apresentada pelo consultor-geral da União.

Além disso, a despeito de o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado caracterizar-se como fundamental, é certo que o cometimento de infração ambiental não pode, por si só, em tese, ser considerada como afronta a tal direito, a ensejar a imposição de penalidade tão radical.

Em complemento, o paralelo traçado com a legislação penal ambiental para definir as infrações ambientais especialmente graves e as hipóteses colacionadas demonstra: confusão entre as esferas de responsabilização ambiental (penal, administrativa e civil, as quais  não podem ser embaralhadas); distanciamento das normas e da realidade e prática do ramo do direito ambiental. Isso porque o fato de uma área ser maior ou menor não significa que a infração cometida é de maior ou menor relevância (por exemplo, um incêndio que tem lugar em uma área protegida de 10 hectares pode ser muito mais gravoso que um incêndio em uma área não protegida de 100 hectares). Além disso, eventuais maus tratos a animais domésticos não fazem com que a prática seja mais abominável que a crueldade que incide sobre animais silvestres.

Diferentemente do que é afirmado no parecer, nem todos os crimes ambientais dispostos na Lei 9.605/1998 apresentam lesão ao meio ambiente. Existem crimes formais, a exemplo do consubstanciado no artigo 60 desta lei, que, muitas vezes, não têm relação com a ocorrência de danos ambientais.

Além disso, a prescrição administrativa, diferentemente do que é afirmado no parecer, tem como termo inicial a data do cometimento da infração, e não a data da lavratura do auto de infração. Interpretação distinta facultaria à administração pública o exercício indefinido da pretensão punitiva.

Neste ponto, a imprescritibilidade da reparação do dano ambiental não se confunde com a prescrição da atuação da imposição administrativa. Tais esferas não se confundem e são regidas por princípios e regras distintos.

Conclui-se, portanto, que o posicionamento exarado no referido parecer não merece guarida, pois seus fundamentos não se coadunam com a legislação ambiental vigente, tampouco com posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a tema. Referido posicionamento merece reforma imediata, por se encontrar em desconformidade com as normas integrantes do ordenamento jurídico vigente.


[1] Art. 155. “O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações: […] X – comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza”.

[2] Art. 156. “Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções: […] IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar”.

[3] Art. 137. “Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações: […] VIII – razões de interesse público, justificadas pela autoridade máxima do órgão ou da entidade contratante”.

[4] Fl. 20 do Parecer.

[5] Art. 10. “As penas de interdição temporária de direito são a proibição de o condenado contratar com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros benefícios, bem como de participar de licitações, pelo prazo de cinco anos, no caso de crimes dolosos, e de três anos, no de crimes culposos”.

Autores

  • é sócio de Direito Público e Infraestrutura do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados. É professor do mestrado profissional da FGV Direito SP. Doutor (USP/2018), mestre (PUC-SP/2014) e Bacharel (FGV-SP/2010) em Direito.

  • é sócia do Cescon, Barrieu, Flesch e Barreto Advogados, pós-doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, doutora em Ciências Jurídico-Econômicas pela mesma instituição e mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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