Justiça Tributária

O Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul) e a Convenção de Quioto Revisada

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

22 de janeiro de 2024, 8h00

Não só o mundo tributário anda agitado, cada dia com uma novidade. Também no campo aduaneiro tivemos um tema que mobilizou especialistas em 2023, e que deve seguir repercutindo este ano: trata-se do recém-criado Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul).

As pessoas que se interessam pela matéria certamente conhecem a controvérsia e já devem ter lido alguns dos importantes textos publicados sobre ela, como aqueles de Leonardo Branco e Oswaldo Gonçalves de Castro Neto (aqui), Fernanda Kotzias e Diogo Fazolo (aqui), Leonardo Branco, novamente (aqui), Thális Andrade (aqui) Rosaldo Trevisan (aqui e aqui) e Andréa Duek (aqui), só para mencionar alguns.

Spacca

Espelhando as cisões binárias típicas dos debates tributários brasileiros, nota-se que as percepções sobre o Cejul se dividem entre os que entendem que se trata de evidente descumprimento de um tratado internacional pelo Estado brasileiro, e os que veem no novo órgão de julgamento um claro avanço e uma forma de alinhamento do país com as diretrizes internacionais.

Como essa questão já foi mais do que bem exposta nos textos que mencionei, vou poupar o leitor e a leitora de reler toda a evolução do debate. Apenas para que as pessoas que estão tendo o primeiro contato com o tema não se sintam perdidas, apresentarei, de forma suscinta, a controvérsia.

O ponto de partida da disputa está na entrada em vigor, no Brasil, do “texto revisado do Protocolo de Revisão da Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros — Convenção de Quioto, concluído em Bruxelas, em 26 de junho de 1999”, tornado público por meio do Decreto nº 10.276/2020 (adiante apenas “CQR”, disponível aqui).

Os dispositivos controvertidos da CQR são os itens 10.4, 10.5 e 10.6 do seu Anexo Geral, que transcrevemos a seguir:

“10.4. Norma
A legislação nacional deverá prever um direito de recurso em 1ª instância perante as Administrações Aduaneiras.
10.5. Norma
Quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras for indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da Administração Aduaneira.
10.6. Norma
Em última instância, o requerente deverá ter direito de recurso para uma autoridade judicial.”

Em decorrência das diretrizes processuais estabelecidas na CQR, foi editada a Lei nº 14.651/2023, que alterou o Decreto-Lei nº 1.455/1976 para prever, em seu artigo 27-E, que “o Ministro de Estado da Fazenda regulamentará o rito administrativo de aplicação e as competências de julgamento da pena de perdimento de mercadoria, de veículo e de moeda”.

Com base neste dispositivo, foi editada a Portaria Normativa MF nº 1.005/2023 (“PN 1.005”), que disciplinou “o rito administrativo e as competências para aplicação da pena de perdimento de mercadoria, veículo e moeda, e da multa ao transportador, de passageiros ou de carga, em viagem doméstica ou internacional, que transportar mercadoria sujeita à pena de perdimento” e criou o Cejul. Segundo o artigo 5º da PN 1.005, o Cejul é constituído por:

“I – uma Equipe Nacional de Julgamento – Enaj, a quem compete o julgamento de primeira instância;
II – Câmaras Recursais, a quem compete o julgamento de segunda instância; e
III – um Serviço de Controle de Julgamento de Processos de Penalidades Aduaneiras – Sejup.”

De acordo com o artigo 3º, § 1º, da PN 1.005 o “julgamento das impugnações e dos recursos a que se refere o caput compete aos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil em exercício no Cejul”. Ou seja, trata-se de órgão julgador composto exclusivamente por auditores fiscais. O funcionamento do Cejul foi posteriormente regulamentado em mais detalhe pela Portaria RFB nº 348/2023.

Em linhas gerais, a principal questão que tem sido debatida, e que analisaremos adiante, é a seguinte: ao criar o Cejul, órgão de julgamento integrante da estrutura da Secretaria da Receita Federal do Brasil, sem composição paritária, teria o Estado brasileiro violado o compromisso internacional assumido na CQR?

Posso antecipar aos leitores que minha posição é no sentido de que não existe incompatibilidade entre o sistema brasileiro de controle da legalidade da aplicação de penas de perdimento e os dispositivos antes transcritos da CQR. Vejamos.

Há duas formas de abordar a questão, uma que nos parece mais simples e outra um pouco mais complexa.

Para começarmos pela linha de argumentação mais simples, vamos voltar ao que estabelece a CQR. De acordo com esse tratado internacional, a legislação brasileira tem que prever um recurso de primeira instância para a Administração Aduaneira (item 10.4); caso este seja indeferido, deve haver um recurso para uma autoridade independente da Administração Aduaneira (item 10.5); e a decisão de última instância deve caber sempre ao Poder Judiciário (item 10.6).

Ora, a legislação brasileira prevê um recurso de primeira instância para o Cejul, que será decidido por um julgador monocrático (artigo 13 da PN 1.005). Proferida decisão em primeira instância pela manutenção do Auto de Infração, uma vez que não há no Brasil instância administrativa de curso forçado,[1] o interessado pode ir diretamente para o Poder Judiciário ou apresentar recurso para as Câmaras Recursais do Cejul (artigo 16 e seguintes da PN 1.005).

Em todo caso, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, a última palavra caberá sempre ao Poder Judiciário.

Parece-nos um equívoco assumir que a obrigação prevista no item 10.5 só pode ser cumprida criando-se um órgão fora da Secretaria da Receita Federal do Brasil para a revisão das decisões proferidas em primeira instância pelo Cejul. O que o item 10.5 estabelece é que deve haver a possibilidade de um recurso a um julgador independente da Autoridade Aduaneira, e isso sempre houve no Brasil, mesmo antes da criação do Cejul.

É importante notar que o uso da palavra “recurso” nos itens 10.4, 10.5 e 10.6 não deve ser compreendido a partir de uma perspectiva processual doméstica. Não se trata ali, segundo vemos, de um direito a um duplo grau dentro de um mesmo processo. Afinal, mesmo o item 10.4, que trata da contestação em primeira instância, usa a palavra “recurso”. Dessa forma, entendemos que esse termo foi empregado ali como concretizador de um direito de petição, de um direito de contestar o ato de imposição da sanção e a decisão administrativa.

Nessa linha de ideias, cremos ser possível concluir, sem maiores digressões sobre o próprio Cejul, que o sistema brasileiro de controle da legalidade da aplicação de penas de perdimento está alinhado com o disposto na CQR. A própria World Customs Organization, em suas Guidelines sobre o tema dos recursos em matéria aduaneira (disponíveis, aqui), ao comentar o item 10.5 da CQR, afirmou:

“A constituição e o campo de jurisdição dessa autoridade independente podem variar de um país para outro. Pode ser, por exemplo, um tribunal judicial ou um tribunal especial com poderes para resolver litígios aduaneiros, ou pode fazer parte de um procedimento de arbitragem estabelecido.” [2] (Destaque nosso)

O comentário ao item 10.06 vai na mesma linha, e parece confirmar a posição que estamos defendendo neste artigo:

“Muitas administrações permitem esse recurso [ao Poder Judiciário] em qualquer fase do processo. Por exemplo, se uma estância aduaneira local proferir uma decisão contra a qual a pessoa decida recorrer, a pessoa deve ser autorizada a recorrer diretamente para uma autoridade judicial independente sem passar por níveis superiores da administração aduaneira. Os custos envolvidos neste curso de ação geralmente levam os recorrentes a seguir um processo faseado. No entanto, em certos casos, como no caso de grandes empresas multinacionais, o recorrente pode optar por submeter a questão ao órgão máximo competente o mais cedo possível. Alguns traders internacionais podem ter um grande volume de transações ou uma alta quantidade de investimentos e clientes que seriam afetados pelo resultado e, portanto, decidem acelerar todo o processo de apelação para obter a primeira decisão definitiva.” [3] (Destaque nosso)

Assim sendo, sem qualquer comentário sobre a natureza do Cejul, concluímos que não se vislumbra, em relação à criação deste órgão, qualquer violação das obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.

As manifestações no sentido da incompatibilidade do Cejul com a CQR não consideram a existência de acesso ao Poder Judiciário como elemento suficiente para o atendimento das obrigações assumidas na aludida convenção internacional. O debate, então, centra-se na discussão sobre a natureza do próprio Cejul e sobre a possibilidade ou não de o julgamento pelas suas Câmaras Recursais atender às disposições da CQR.

Passa-se, assim, para um debate — desnecessário, em nossa opinião, e mais complexo — a respeito da independência ou não do Cejul em relação à Administração Aduaneira.

“Administrações Aduaneiras” é uma expressão definida no artigo 2º da CQR, como “os serviços administrativos responsáveis pela aplicação da legislação aduaneira e pela cobrança de direitos e demais imposições, bem como pela aplicação da legislação e da regulamentação relacionadas com a importação, a exportação, a movimentação e a armazenagem das mercadorias”.

Veja-se que a CQR não menciona “autoridade aduaneira”, mas sim “administração aduaneira”. Os defensores da legitimidade do próprio Cejul como o órgão de revisão dos Autos de Infração referentes a penas de perdimento previsto no item 10.5 do Anexo Geral da CQR, vão apontar que ele está vinculado à Subsecretaria de Tributação e Contencioso (Sutri), e não à Subsecretaria de Administração Aduaneira (Suana). Consequentemente, segundo essa interpretação, o Cejul seria independente da Administração Aduaneira.

Nada obstante, tanto a Sutri quanto a Suana são órgãos da Secretaria da Receita Federal do Brasil, de modo que certamente não seria equivocado sustentar que esta é, em última instância, a Administração Aduaneira no país.

Por essa perspectiva, realmente nos parece terem razão aqueles que sustentam que o Cejul, se considerado de forma isolada, não seria o órgão “independente da Administração Aduaneira” exigido pelo item 10.5 do Anexo Geral da CQR. Entretanto, não estamos diante de nenhuma violação convencional óbvia nem “ilegalidade” evidente cometida pelo Estado Brasileiro.

Com efeito, o fato de entendermos que o item 10.5 do Anexo Geral da CQR seria mais corretamente atendido por um órgão que se situasse fora da estrutura da Secretaria da Receita Federal do Brasil — como é o caso do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — não significa que a segregação formal entre Sutri e Suana não possa ser considerada suficiente para que o aludido item seja observado.

De toda maneira, como já mencionamos, cremos que este debate centrado no Cejul seja irrelevante, já que a garantia de acesso ao Poder Judiciário é suficiente, a nosso sentir, para que as obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro sejam consideradas adimplidas.

Tendo em conta essas considerações, a criação do Cejul seria um avanço ou um retrocesso? Segundo vemos, o Cejul é um avanço, assim como a criação das Delegacias da Receita Federal de Julgamento foi uma evolução em comparação ao modelo em que o julgamento de primeira instância da legalidade de Autos de Infração tributários era realizado pelo próprio Delegado da Receita Federal territorialmente e materialmente competente para tanto.

Estamos diante de um órgão novo, que sequer tem tempo de existência e atuação para que suas decisões sejam avaliadas. É certamente prematuro fazer qualquer análise qualitativa sobre o Cejul. O que podemos concluir é que nosso sistema de controle da legalidade de penas de perdimento não viola a CQR, e que, em comparação com o modelo anterior, o Cejul tende a ser uma melhoria e não um retrocesso.

Note-se que neste breve texto consideramos apenas a questão da compatibilidade entre o sistema brasileiro de revisão de penas de perdimento e a CQR. Contudo, esta não é a única controvérsia que circunda a criação do Cejul. Tema por demais interessante é a constitucionalidade da delegação de competência legislativa prevista na Lei nº 14.651/2023. Afinal, como temos sustentado, o devido processo legal requer procedimento administrativo previsto em lei, não em atos administrativos normativos. [4] Trata-se de questão que pode ser objeto de um próximo texto.

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[1] Cf. ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Almedina, 2018. p. 321.

[2] Redação original em inglês: “The constitution and field of jurisdiction of such an independent authority may vary from one country to another. It may be, for example, a court of law or a special tribunal with power to settle Customs disputes, or it may be part of an established arbitration procedure.”

[3] Redação original em inglês: “Many administrations allow this appeal at any stage in the overall process. For example, if a local Customs office renders a decision that the person decides to appeal against, the person should be allowed to appeal directly to an independent judicial authority without going through higher levels of the Customs administration. The costs involved in this course of action usually result in appellants following a stage-by-stage process. However, in certain cases, such as with large multinational corporations, the appellant may opt to submit the matter to the highest authoritative body as early as possible. Some international traders may have a large volume of transactions or a high amount of investment and clients which would be affected by the outcome, and therefore decide to expedite the entire appeals process to obtain the earliest definitive ruling.”

[4] Cf. ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Almedina, 2018. p. 157.

Autores

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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