Opinião

O trabalho de Sísifo e o ICMS depois do Convênio 178 e da LC 204

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21 de janeiro de 2024, 11h14

Primeiro de janeiro de 2024. O ano começa e, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Declaratória de Constitucionalidade 49 (ADC 49), com eficácia para todos, o ICMS não deveria ser mais destacado nas transferências interestaduais de mercadorias, e os contribuintes deveriam poder exercer seu direito de transferir créditos de ICMS do estado de origem para o estado de destino nessas transferências.

Todavia, a realidade dos contribuintes no início de 2024 é um pouco mais complexa do que isso. As complicações começam no final de 2023, com a publicação, pelo Confaz, em 1º de dezembro de 2023, do Convênio nº 178/2023 e, posteriormente, da Lei Complementar 204/2023 (LC nº 204/2023), em 29 de dezembro de 2023.

Há uma tradição nacional, no campo tributário, de se publicar nas últimas edições do ano do diário oficial as normas que serão manchetes dos jornais pelo resto do ano seguinte: pacotes tributários que, a pretexto de equilibrar o orçamento público, acabam desequilibrando a vida do contribuinte.

No caso do Convênio ICMS nº 178/2023, há uma norma curiosamente tornando dever o que o STF havia reconhecido como direito: a obrigatoriedade de transferência dos créditos de ICMS quando o contribuinte transfere mercadorias de um estado para outro. Como se faz essa transferência de crédito? Diz a norma: simplesmente destacando-se o ICMS nas transferências interestaduais!

Um curioso giro de 360 graus: o Poder Judiciário há décadas reconhece a invalidade da cobrança de ICMS nas transferências interestaduais de mercadoria ante a falta de caráter mercantil e de mudança de titularidade das mercadorias em meras movimentações físicas entre estabelecimentos de uma mesma empresa. Quando finalmente se reconhece a inconstitucionalidade dessa cobrança, no controle concentrado, na ADC 49, com eficácia contra todos, o que faz o Fisco? Vale-se de uma sutileza hermenêutica para continuar exigindo o destaque do ICMS nessas operações.

O Fisco argumenta que não estaria propriamente tributando a transferência de mercadorias, mas, sim, efetuando a transferência do crédito de ICMS da mercadoria adquirida no estabelecimento de origem para o estabelecimento que comercializará a mercadoria no estado de destino.

Há, todavia, problemas graves nesse raciocínio do Fisco. A uma, o regime de compensação do ICMS é matéria reservada à lei complementar, nos termos do artigo 155, § 2º, XII, da CF/1988. Jamais poderia ser objeto de um simples convênio do Confaz. A duas, mesmo que o convênio interestadual pudesse dispor sobre essa matéria, o STF já decidiu que convênios de ICMS devem ser internalizados no estado por procedimentos que contem com a participação do Poder Legislativo [1], o que não ocorreu até o momento em qualquer um dos Estados que estão pretendendo aplicar as disposições do convênio. A três, o Convênio ICMS nº 178/2023 viola flagrantemente a decisão do STF na ADC 49, que reconheceu que a transferência do crédito de ICMS é um direito em decorrência do princípio da não cumulatividade [2]. Esse procedimento visa a evitar acúmulo de créditos de ICMS no estado de origem e de débitos, no estado de destino. Portanto, trata-se de uma faculdade do contribuinte, e não de um dever.

Por sua vez, a LC nº 204/2023, fruto do Projeto de Lei Complementar nº 116/2023 (PLP 116/2023), aprovado por ampla maioria no Parlamento, foi sancionada pelo presidente da República, mas com veto bastante relevante.

Na sua redação original, o PLP 116/2023 possuía basicamente três normas que, de alguma forma, operacionalizavam a decisão do STF na ADC 49: (1) a transferência interestadual não é fato gerador do ICMS, garantindo-se a manutenção do crédito da operação anterior e assegurando-se transferência do crédito do estado de origem para o estado de destino pelo valor atribuído à transferência; (2) por opção do contribuinte, pode-se tratar a operação de transferência como uma operação tributada; (3) e revoga-se a norma que previa, como base de cálculo do ICMS nas transferências interestaduais, o “custo” da mercadoria.

A norma indicada no item (2) acima foi vetada com base no argumento de contrariedade ao interesse público, porque tornaria “difícil a fiscalização tributária” com elevada “probabilidade de ocorrência de elisão fiscal ou, até mesmo, evasão”. Custa a crer que contraria o interesse público uma norma aprovada por ampla maioria do Congresso Nacional [3]. E, mais ainda, que seria mais difícil fiscalizar uma operação tributada do que fiscalizar a transferência do crédito de uma operação anterior. Mas, certamente contraria a lógica dizer que “tributar” uma operação, em regra não tributada, seria medida de sonegadores. Em todo caso, caberá ao Congresso Nacional deliberar sobre o veto. A sua derrubada contribuiria muito para conferir mais segurança para as transferências e reduziria bastante as possibilidades de litígio em torno desse tema.

O que se percebe é que o cenário atual é de muitas normas e poucas certezas. Até porque as normas do Convênio ICMS nº 178/2023 não necessariamente dialogam com as normas da LC 204/2023. O resultado é que os contribuintes ficam com muitas dúvidas em relação ao tratamento tributário que devem aplicar às transferências. Deve ou não haver o destaque de ICMS sobre essas transferências? Por qual valor essa transferência deve ser feita? Com base no custo? Com base no valor da operação final? O que fazer em casos de incentivos fiscais com créditos presumidos ou de outros regimes especiais?

A verdade é que precisamos evoluir para um patamar tributário em que não deveria haver esse nível de insegurança jurídica por conta de normas editadas de última hora. A falta de um debate maior sobre a legislação tributária, antes de sua entrada em vigor, faz com que tenhamos que lidar com dúvidas básicas ao mesmo tempo que já temos que cumprir a nova legislação. Esperamos que a reforma tributária, recentemente promulgada, leve-nos a uma evolução nesse ponto. Enquanto esse dia não chega, vamos em busca de alguns caminhos em meio ao cenário geral de incertezas.

Com relação à incidência do ICMS, parece-nos que a questão é incontroversa: não há fato gerador nas transferências interestaduais, seja na ADC 49, seja no Convênio ICMS nº 178, seja na LC 204/2023. Por isso, aqueles contribuintes que simplesmente transferem mercadorias sem destaque do imposto não deveriam ser cobrados, quer pelo Fisco de origem, quer pelo Fisco de destino.

Também é igualmente certo que o crédito de ICMS na operação de origem se mantém. Questão mais controversa é se pode ou se deve haver essa transferência do crédito. Para nós, como mencionado anteriormente, é claro, na decisão proferida pelo STF na ADC 49, que a transferência do crédito de ICMS é um direito do contribuinte. Portanto, tal transferência deve ser facultativa, e não obrigatória. A LC 204/2023 segue nessa linha quando “assegura” o direito ao crédito tanto no estado de origem, quanto no estado de destino. Mais do que isso, diz a LC 204/2023 que essa transferência se dará pelo valor atribuído à transferência. Quem atribui esse valor? O contribuinte.

Esse valor deve ser atribuído com base no custo da mercadoria? Parece-nos que não necessariamente. Mesmo porque, o artigo 13, § 4º, da LC 87/1996, que dispunha ser o custo a base de cálculo das transferências, foi revogado pela LC 204/2023. Não cabe ao convênio dispor sobre base de cálculo de operações. A rigor, sequer há que se cogitar de uma base de cálculo se não há fato gerador de ICMS.

E a questão específica dos incentivos fiscais? Afinal, há muitos Estados que concedem tratamentos tributários especiais em que se gera um crédito presumido a partir das saídas realizadas, inclusive transferências interestaduais. Evidentemente que as particularidades de cada contribuinte têm que ser analisadas.

No entanto, na nossa visão, a regra geral é de que não há fato gerador nas transferências de mercadorias. Todavia, isso não impede os estados de criarem, por meios constitucionais próprios, incentivos fiscais em que haja concessão de créditos presumidos, inclusive em transferências interestaduais. O próprio Convênio ICMS nº 178/23 dispõe que os estados observarão os incentivos fiscais, não havendo o cancelamento ou a modificação do tratamento tributário diferenciado concedido pelo estado de origem.

Ora, se esses créditos presumidos são válidos, o que impediria sua transferência para o estado do destino? Ou mesmo o destaque do ICMS nessas transferências em contrapartida do registro dos créditos presumidos? Por qualquer ângulo que se analise a questão, se há o destaque do ICMS na operação, por força do princípio da não cumulatividade, o estado de destino deveria reconhecer o direito ao crédito de ICMS correspondente.

Não se alegue que o estado de destino poderia glosar o crédito de ICMS pelo simples fato de haver incentivo fiscal no estado de origem. O STF decidiu, em repercussão geral, no julgamento do Tema nº 490, que a glosa unilateral de créditos de ICMS só se aplica no caso de incentivos fiscais concedidos igualmente de forma unilateral, em situações de “guerra fiscal”.

A contrario sensu, no caso dos incentivos fiscais concedidos regularmente ou ditos “convalidados” ou “confazados”, o estado de destino fica obrigado a respeitar o crédito de ICMS apropriado pelo contribuinte com base no valor do imposto destacado na operação. O próprio artigo 5º da LC 160/2017, no caso dos incentivos fiscais convalidados, afasta expressamente a aplicação do artigo 8º, I, da LC 24/1975, que prevê o estorno nas hipóteses em que não há convênio interestadual autorizando o incentivo.

O ponto é que o tema do ICMS nas transferências interestaduais parece eterno. Vai e volta, constantemente, e quando tudo parece caminhar para uma grande mudança, a surpresa é que nada mudou. Essa circularidade nos faz lembrar a história de Sísifo. Na mitologia grega, dizia-se que Sísifo era um dos mais astutos mortais. Com sua inteligência, havia conseguido, inclusive, enganar a morte algumas vezes. Isso, todavia, fez despertar a ira dos deuses e levou Sísifo a ser castigado e condenado a, por toda a eternidade, ter que rolar uma pesada pedra montanha acima. Mas, ao chegar próximo ao cume da montanha, a pedra rolaria ribanceira abaixo, levando Sísifo a ter que voltar e reiniciar toda sua penosa subida novamente.

O mito de Sísifo desperta variadas interpretações. Em certa medida, pode-se fazer um paralelo entre todo o esforço de Sísifo e o trabalho dos contribuintes para afastar a tributação de ICMS sobre as transferências interestaduais. Quando parece que finalmente atingirá o seu objetivo, com a decisão do STF, o contribuinte depara-se com as medidas implementadas pelo Fisco para continuar exigindo o destaque do ICMS nessas transferências, tal como a pedra rolando morro abaixo novamente.

Esse círculo vicioso só pode ser interrompido com uma mudança de paradigma. O Poder Judiciário já invalidou a cobrança do ICMS sobre essas transferências. O Poder Legislativo trouxe um tratamento tributário razoável para a matéria com a versão original do PLP 204/2023. Caberia ao Poder Executivo acatar essas deliberações dos demais poderes para que pudéssemos seguir adiante nesse tema, sem ter que voltar todas as casas desse jogo.

A experiência internacional tem demonstrado que as administrações tributárias de sucesso são aquelas que criam as condições para uma cooperação entre contribuinte e Fisco: regras claras e estáveis, carga tributária moderada para cobrir gasto público controlado e diálogo com o contribuinte. Esse é a verdadeira receita para o equilíbrio fiscal. Caso contrário, não é só Sísifo que deixa de alcançar seu objetivo — tudo que ele sustenta vem abaixo junto.


[1] Na ADI 5.929, o STF já decidiu que convênios editados pelo Confaz possuem natureza “meramente autorizativa ao que imprescindível a submissão do ato normativo que veicule quaisquer benefícios e incentivos fiscais à apreciação da Casa Legislativa”.

[2] O seguinte excerto do voto do min. Roberto Barroso é bastante elucidativo: “Observe-se que há uma situação bastante peculiar no caso em questão. Não restam dúvidas sobre a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular. Ao mesmo tempo, essa declaração de inconstitucionalidade em si gera um vácuo normativo, já que inexistem normas que disponham sobre a transferência de créditos entre tais estabelecimentos, tal como ocorria na sistemática anterior. Esse fato gera uma nova inconstitucionalidade, em decorrência da violação à não cumulatividade do ICMS. (…) É essencial, com efeito, que este Supremo Tribunal Federal, além de conferir prazo para que os Estados adaptem a legislação para permitir a transferência dos créditos, reconheça que, uma vez exaurido esse marco temporal sem que os Estados disponham sobre o assunto, os sujeitos passivos têm o direito de transferir tais créditos, tal como a sistemática anterior permitia”.

[3] Foram 395 votos favoráveis à sua aprovação na Câmara dos Deputados e 62, no Senado.

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