Ressocialização em risco e populismo político-criminal na execução da pena
3 de maio de 2024, 15h18
Vivemos em uma época em que os meios de comunicação e as redes sociais tornaram o fluxo de informações extremamente rápido. Essa velocidade e amplitude da comunicação a respeito da violência acaba por criar um verdadeiro alarme coletivo a respeito do crescimento da delinquência que, por sua vez, faz surgir um fenômeno que é cada vez mais influente no âmbito político-criminal: o populismo punitivo.
Este movimento consiste na busca de uma resposta rápida e muitas vezes superficial às demandas sociais por segurança, impulsionada por reações emocionais a crimes de grande visibilidade. Frequentemente, tais respostas legislativas emergem como soluções apressadas, mais focadas em acalmar o clamor público do que em endereçar as raízes complexas da criminalidade.
Isso é particularmente visível em um país de dimensões continentais e complexo como o Brasil, onde o consenso legislativo é ainda mais difícil devido à heterogeneidade na composição das casas legislativas. Tal consenso demandaria maiores debates e, portanto, mais tempo. As respostas legislativas não podem ser feitas com pressa.
O trágico caso do homicídio do sargento Roger Dias por um detento beneficiado por saída temporária catalisou uma dessas respostas legislativas, culminando na aprovação da Lei nº 14.843 de 2024, que reformulou significativamente algumas questões na execução penal, propondo a restrição das saídas temporárias.

Essa mudança legislativa, embora motivada por uma necessidade compreensível de rediscussão das políticas de segurança pública, levanta questões cruciais sobre o equilíbrio entre a necessidade de punição e a importância da reintegração social como um componente essencial na prevenção da reincidência criminal.
Aqui não se trata de qualquer insensibilidade em relação ao lamentável e grave crime que vitimou o valoroso sargento da Polícia Militar de Minas Gerais, mas está claro que a ocasião reacendeu o debate sobre o instituto. Em uma resposta legislativa rápida, a lei impôs restrições mais severas às saídas temporárias e reintroduziu a necessidade do exame criminológico para progressão de regime.
A justificativa para tais medidas foi fundamentada na busca por maior controle e segurança. Contudo, essa abordagem parece ter conteúdo emocional, que instrumentaliza a tragédia ocorrida, enquanto negligencia a importância da ressocialização.
Sem eficácia
Esse tipo de mudança na Lei de Execução Penal reflete uma tendência de endurecimento que, embora sejam populares no discurso político e acalmem a exigência pública, não necessariamente se traduzem em eficácia na prevenção da reincidência ou na melhoria da segurança pública.
As saídas temporárias são fundamentais no processo de ressocialização dos detentos. Implementadas com o objetivo de estimular o convívio fora do ambiente prisional, e como estratégia para facilitar a adaptação do condenado à vida em liberdade, permitem aos detentos manter e fortalecer laços familiares e sociais.
Dados da Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais indicam uma taxa de evasão de cerca de 3%, demonstrando que a maioria dos beneficiados não apenas cumpre com as condições, mas também mostra potencial reduzido de reincidência.
No entanto, a nova lei impõe restrições severas a essas saídas, inclusive buscando restabelecer a indispensabilidade de exames criminológicos, que, apesar de terem como objetivo aumentar a segurança na concessão de benefícios, acabam por limitar excessivamente a eficácia de qualquer ferramenta de reinserção social, até pela grande dificuldade em sua realização.
As mudanças legislativas deveriam buscar maior equilíbrio entre a segurança e a eficácia nos mecanismos de ressocialização, garantindo que essas políticas públicas não apenas atendam às necessidades imediatas do anseio popular, mas efetivamente contribuam para a redução da criminalidade a longo prazo.
Embora as saídas temporárias sejam eficazes para a reintegração do detento, com uma taxa de retorno de cerca de 97% em Minas Gerais, por exemplo, o entendimento popular comum é de que são inefetivas e perigosas, o que se baseia em fatos que, apesar de lamentáveis, são isolados e também eventualmente praticados por quem não está em cumprimento de pena. Com tamanho índice de retorno de presos, está claro que o benefício otimiza a execução da pena, ao invés de comprometê-la.
Todo esse contexto constitui um marco claro do clamor público, criado pela sensação de insegurança que a comunicação constante de eventos trágicos acaba criando. Isso deve levar à discussão técnica e fundamentada sobre importantes questões a respeito da tensão entre a justiça retributiva e as medidas de reintegração social.
Reintegração
Ao restringir-se benefícios e intensificar o rigor na execução da pena, apesar da intenção de mitigar riscos, inadvertidamente, a lei acaba comprometendo fundamentos de justiça reparadora e reintegração eficaz.
Além disso, com o veto presidencial que manteve a possibilidade de visita a familiares, deu-se ampla discricionariedade aos juízes para determinar o prazo das saídas temporárias. Esta flexibilidade pode resultar em uma aplicação inconsistente da lei, variando significativamente de um caso para outro, de uma comarca para outra, o que pode vir a diminuir a previsibilidade e uniformidade.
O baixo índice de evasão nas saídas temporárias, que entre 2019 e 2023, em todo o país, foi de no máximo 5% (dados do Senappen) é sinal de que as decisões judiciais que concedem o benefício estão sendo criteriosas. Mas, se passar a depender excessivamente de avaliações subjetivas pode não só agravar as disparidades regionais como também dificultar a avaliação da eficácia sobre as políticas de ressocialização.
Toda a modificação legislativa, portanto, apesar de suas boas intenções, requer uma reflexão cuidadosa sobre seu alinhamento com os direitos fundamentais e as melhores práticas em políticas penais. É essencial que as reformas legais mantenham um compromisso equilibrado com a segurança pública e dignidade dos detentos, evitando soluções que, embora atendam ao clamor público, possam perpetuar ciclos de criminalidade e violência, negligenciando a reabilitação.
É crucial que a eficácia das medidas seja sempre avaliada continuamente, à luz de seus impactos na execução da pena, mas também em relação à sua repercussão social, isso não se nega. Só que quanto ao último, deve-se ter cuidado, pois não se deve modificar a legislação baseando-se apenas em um discurso emocional e imediatista, sob pena de cometer equívocos fundamentais na política pública.
Afinal, a reintegração eficaz dos detentos não apenas contribui para a segurança pública, mas também reforça o tecido social e os valores de justiça e humanidade que devem fundamentar todas as políticas penais. Para usar uma expressão própria do funcionalismo jurídico-penal, partindo da ideia de que a pena também é reafirmação de vigência da norma, a reintegração ajuda a reforçar a expectativa social quanto à segurança normativa.
Neste contexto, a legislação deve sempre evoluir com base em uma análise criteriosa das práticas correntes e da racionalidade, ajustando-se conforme as necessidades reais da sociedade e as melhores práticas internacionais em justiça criminal.
O diálogo entre os setores da sociedade, incluindo juristas, legisladores, profissionais da segurança pública, acadêmicos e a sociedade civil, é essencial para moldar um sistema que não apenas pune, mas educa e reabilita. Legislar sem o franco e amplo debate, inclusive com os setores técnicos, não parece ser o caminho mais adequado.
Pensando no futuro, devemos buscar um sistema de justiça penal que equilibre as expectativas da sociedade, até mesmo em relação aos anseios emocionais, à segurança jurídica e justiça social, garantindo que as leis sejam mais que meros instrumentos de punição ou remédios para acalmar o alarme social, mas que sejam também verdadeiras ferramentas de transformação social e reconciliação.
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